Do pensar ao fazer nas relações pedagógicas entre os profissionais da Educação e os estudantes surdos: estudo de caso na escola de Cachoeiro de Itapemirim/ES
Camila do Espírito Santo Ornelas Passos
Mestra em Ensino, Educação Básica e Formação de Professores (PPGEEDUC/UFES), docente na Educação Básica e de alunos com deficiência, tutora EAD da Licenciatura em Letras/Libras da UNIASSELVI, designer educacional
Aline de Menezes Bregonci
Doutora em Educação, professora adjunta da UFES, professora do PPGEEDUC/UFES
Por décadas, pessoas surdas e outros grupos marginalizados têm buscado expandir sua participação na sociedade, promovendo, dessa forma, a redução da desigualdade. As dificuldades no acesso a bens culturais e intelectuais são um dos grandes empecilhos para seu desenvolvimento e inclusão na comunidade (Martins, 1997).
Essa realidade culminou no aumento da demanda por medidas sociais que ampliassem a democratização desses bens e, com isso, auxiliassem na redução do abismo entre esses grupos e sua efetiva participação na sociedade (Candau, 2008).
Diversos movimentos sociais, cujo propósito era conscientizar a sociedade sobre as necessidades e capacidades das pessoas com deficiência e garantir direitos capazes de promover sua inclusão, ocorreram pelo mundo. Dentre eles, destacam-se a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (1975), a Declaração de Salamanca (1994), a Convenção da Guatemala (1999), a Carta para o Terceiro Milênio em Londres (1999), a Declaração Internacional de Montreal sobre Inclusão no Canadá (2001) e a Convenção Internacional para a Proteção e Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (2006) (Ferreira; Cabral Filho, 2013).
Os movimentos sociais propuseram diretrizes para a construção de uma sociedade igualitária e contribuíram para o fortalecimento de um novo contexto social, valorizando a diversidade e a dignidade humana, incluindo as pessoas com deficiência (Damasceno, 2015).
No âmbito da educação, com foco no Brasil, destacam-se a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei nº 9.394, de 1996 – e a Política Nacional de Educação Especial (2008). Segundo Vianna (2005), a educação surge como um instrumento capaz de auxiliar na redução da desigualdade. Ainda de acordo com esse autor, a Educação Inclusiva não envolve apenas pessoas com deficiência, mas todos os que foram historicamente excluídos. Corroborando Vianna (2005), Pacheco (2007) afirma que a educação vem sendo vista como um instrumento capaz de promover a redução da desigualdade.
Durante as décadas de 1990 e 2000, o Brasil avançou significativamente em relação às políticas públicas voltadas à inclusão de pessoas com deficiência, tanto no âmbito escolar como em diversos setores da sociedade. Focando nas pessoas surdas, tema central deste trabalho, destacam-se as seguintes iniciativas do Estado:
- Capítulo III, Art. 4º, inciso III da LDBEN (1996), que estabelece o dever do Estado de garantir atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino (Brasil, 1996);
- LDBEN, que trata da formação de professores, currículos, métodos, técnicas e recursos para atender às necessidades das crianças com deficiência, instituindo a Educação Especial como modalidade de ensino (Brasil, 1996);
- Lei Federal nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão, dotada de sistema linguístico com modalidade visual-gestual e estrutura gramatical própria;
- Decreto Federal nº 5.626/05, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei Federal nº 10.436/02, abordando, entre outros aspectos, a inclusão de Libras na Educação Básica e nos currículos de formação de professores (Brasil, 2002a; Brasil, 2002b).
No que diz respeito à legislação, percebe-se um compromisso com estudantes surdos, ou seja, indivíduos que atendam aos requisitos legais para usufruírem do apoio pedagógico específico. Essa conclusão se baseia na observação da evolução das leis brasileiras relacionadas ao tema.
Ainda que a legislação e as propostas educacionais voltadas aos surdos tenham como foco o pleno desenvolvimento de suas capacidades, esse desenvolvimento continua limitado (Lodi, 2013). Muitos estudos demonstram preocupação com a realidade escolar do surdo no Brasil, buscando identificar fatores negativos e positivos em seu ensino e apontar caminhos de melhoria na prática pedagógica (Lacerda, 2006).
Ao longo de mais de dez anos de atuação na educação, diretamente com estudantes surdos, foi possível acumular considerável conhecimento empírico. Esse conhecimento, somado ao adquirido por meio da leitura de estudos e pesquisas, sugere a existência de situações-problema que vão desde a precariedade das relações pedagógicas entre os profissionais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem até a fragilidade no domínio de Libras por diversos tradutores-Intérpretes de Língua de Sinais/Língua Portuguesa (TILSP).
Para verificar tal hipótese, estabeleceu-se a seguinte questão de pesquisa: como se constituem as relações pedagógicas entre os profissionais da Educação de Surdos (professores do atendimento educacional especializado (AEE), instrutores surdos, intérpretes de Libras e estudantes surdos)? Compreender essas relações permite aproximar-se da confirmação ou refutação da hipótese de que elas impactam no desenvolvimento do estudante surdo.
Para alcançar esse objetivo, definiram-se os seguintes objetivos específicos:
- identificar como ocorrem os principais aspectos das relações pedagógicas entre professores, TILSP e profissionais do AEE (professores do AEE e instrutores de Libras) na escola pesquisada;
- investigar como o planejamento interfere no atendimento aos estudantes; e
- compreender, a partir do depoimento dos estudantes, pistas sobre a articulação pedagógica e sua contribuição para a aprendizagem.
O levantamento de dados recentes sobre o objeto de estudo incluiu entrevistas com os profissionais e estudantes mencionados na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Presidente Getúlio Vargas, localizada em Cachoeiro de Itapemirim/ES.
Contextualização as discussões sobre a educação dos surdos
Inicialmente, faremos uma breve contextualização dos principais tópicos relacionados ao problema de pesquisa discutido aqui. Optamos por realizar essa contextualização recorrendo à literatura disponível sobre o tema da pesquisa.
A fim de tornar a leitura deste trabalho menos cansativa e repetitiva, selecionamos, dentre os artigos e pesquisas científicas encontrados, aqueles que melhor descrevem os conceitos e sujeitos centrais deste estudo.
Por fim, reforçamos que o intuito deste trabalho é averiguar como ocorrem e quais são as implicações das relações pedagógicas existentes entre os envolvidos no processo de educação do surdo, considerando a perspectiva dos próprios participantes do processo.
Prosseguindo na contextualização, é importante destacar a compreensão adotada para a expressão “relações pedagógicas”. Para Ferreira (1999, p. 1.735), o termo remete à presença de dois ou mais elementos que, dotados de alguma especificidade, têm ações que perpassam pelos sujeitos, atraindo-os e permitindo-lhes encontrar novas possibilidades para seu ser.
Vale destacar que a descrição dada por Ferreira (1999, p. 1.735) para “relações pedagógicas” retrata um cenário rico em significados no contexto da Educação de Surdos, envolvendo não apenas o conhecimento, mas todo o movimento contínuo de intencionalidade presente nas ações de ensinar, aprender e estabelecer relações sociais.
Outro ponto a ser ressaltado é o objetivo desta pesquisa, de debater os desafios identificados no processo de ensino-aprendizagem da criança surda na Educação Básica, considerando o trabalho do docente em salas com estudantes surdos inclusos e as estratégias e metodologias sob a perspectiva do ensino inclusivo.
Retornando ao foco das relações pedagógicas, Ranghetti (2013), em sua dissertação, salienta a importância dessas relações ao favorecer a aprendizagem, criando possibilidades positivas para todos os sujeitos incluídos no processo educativo.
De acordo com a autora, a relação entre docente e discente deve ser pautada em parceria e compreensão do conhecimento, por meio da partilha de responsabilidades. Além disso, reforça a necessidade de que os profissionais envolvidos possuam formação adequada e específica, conforme disposto no art. 4º do Decreto nº 5.626/05.
Na visão de Vargas e Shirley (2014), a preocupação com o ensino e aprendizagem nas escolas regulares para estudantes com deficiência motivou investigações sobre situações envolvendo estudantes surdos. Em seu trabalho, os autores analisam interações entre estudantes surdos, professores e TILSP, abordando o papel desses sujeitos no processo de inclusão do estudante surdo. Os resultados evidenciam que somente os intérpretes interagem efetivamente com os estudantes surdos, havendo pouca colaboração com pessoas que não dominam a Língua Brasileira de Sinais.
Silva (2020) defende que existem contradições no âmbito educacional relacionadas à classe de trabalhadores denominada tradutor e intérprete de Libras-Português (TILSP). O autor enfatiza o conceito de trabalho, considerando os TILSP como elementos fundantes do ser social.
Segundo Silva, a profissão de TILSP é recente e, sob uma perspectiva histórica, o trabalho é imaterial, possibilitando acesso aos bens culturais e históricos dos indivíduos e configurando-se como serviço público de direito no âmbito educacional. Entretanto, apresenta crescente precariedade devido a contratos inadequados e instáveis, condicionados à conjuntura política e econômica do sistema capitalista.
Santos e Farias (2021) destacam que as relações entre docentes e intérpretes de Libras no processo de ensino e aprendizagem do estudante surdo podem ser compreendidas como um discurso de prática. Segundo os autores, o TILSP atua com certa complexidade no contexto escolar, compondo uma tríade de deveres: intérprete de Libras, professor(a) de Matemática e estudante surdo. Eles concluem que o intérprete de Libras atua como mediador nas aulas de Matemática.
Ao analisarmos os trabalhos sobre o tema, não apenas os aqui brevemente comentados, mas diversos outros que não foram listados nesta pesquisa, verificamos que o exposto por Guarinello et al. (2006) ainda se mantém relevante. Segundo os autores, a surdez precisa ser reconhecida como diferença, considerando os aspectos linguístico-discursivos, uma vez que muitos indivíduos surdos enfrentam barreiras linguísticas na família e na escola, com implicações para a inclusão social.
O cenário educacional atual continua oferecendo aos estudantes surdos desafios que vão além da superação de barreiras físicas e adaptações curriculares. As conclusões de Guarinello et al. (2006) sobre as barreiras linguístico-discursivas, que impactam a comunicação, a participação e o aprendizado desses estudantes, continuam sendo observáveis.
Metodologia
Este trabalho é uma pesquisa de cunho qualitativo, do tipo estudo de caso. O conceito do termo qualitativo envolve uma interação com diferentes indivíduos, locais e acontecimentos. Todos esses fatores decorrem da pesquisa (Chizzotti, 2003).
Segundo Fine et al. (2000), a pesquisa qualitativa tem se mostrado com certa amplitude e diversidade, o que nos traz a ideia de diferentes filosofias e tendências epistemológicas. Como exemplo, os autores destacam algumas direções de pesquisa, sob o viés da entrevista, da observação participante, da história de vida etc.
O objetivo principal é realizar a análise de como se constituem as relações pedagógicas entre os profissionais envolvidos (professores e TILSP) na educação dos estudantes surdos em uma escola do município de Cachoeiro do Itapemirim.
A fim de levantar informações acerca do que foi citado anteriormente, será realizada uma pesquisa de campo, permitindo assim o “levantamento de dados no próprio local onde ocorrem os fenômenos” (Lakatos; Marconi, 1992, p. 43).
Os estudos de campo ocorreram na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Presidente Getúlio Vargas, fundada em 9 de abril de 1973. A escola está localizada na Rua João Franklin Machado, s/nº, no bairro Aquidabã, atendendo a todos os estudantes das redondezas (bairros Village da Luz, Abelardo Machado, Praça da Bandeira, Novo Parque, Ferroviários). Atualmente, a EEEFM Presidente Getúlio Vargas oferece o Ensino Médio regular nos períodos matutino e vespertino. Além disso, a instituição oferece cursos técnicos concomitantes ao Ensino Médio e subsequentes nas seguintes áreas: informática, recursos humanos e administração. Essas aulas ocorrem no período noturno e são presenciais. Na época deste trabalho, essa era, dentre as escolas regulares do município, aquela que possuía o maior número de estudantes surdos.
A pesquisa foi realizada com um grupo de professores do ensino médio, composto por professores do AEE, instrutores surdos, intérpretes de Libras, estudantes surdos e professores das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.
A pesquisa foi desenvolvida no formato presencial, seguindo todos os protocolos de biossegurança (consulte o protocolo) previstos na Portaria Conjunta SEDU/SESA nº 1-R/2020.
Foram selecionados profissionais habilitados e licenciados em Português, Matemática e Pedagogia. De acordo com a Secretaria Estadual da Educação do Espírito Santo (SEDU/ES), professores habilitados e licenciados são aqueles que já concluíram cursos de licenciatura.
A escolha das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática ocorreu de forma empírica, tomando como base os anos de atuação das autoras no ensino regular. Embora alguma exclusão linguística possa ocorrer em todas as disciplinas, Língua Portuguesa e Matemática são as de maior carga horária.
Para a coleta dos dados, foi utilizado como instrumento de pesquisa a entrevista semiestruturada. Gaskell (2014) e Minayo (2010) comentam que a entrevista é uma técnica amplamente utilizada na pesquisa qualitativa para coletar dados nas ciências sociais.
Isso ocorre porque a interação, as experiências cotidianas e a linguagem comum durante a entrevista são condições essenciais para o sucesso da pesquisa qualitativa.
A entrevista é uma forma de obter informações sobre a subjetividade de uma pessoa, por meio de suas opiniões e experiências pessoais. Isso ajuda a compreender como essa pessoa vê e analisa o mundo ao seu redor, incluindo seu contexto histórico, social e cultural.
Ao extrair informações subjetivas, é possível compreender melhor as relações que se estabelecem ou se estabeleceram nos grupos sociais dos quais a pessoa entrevistada participa ou participou em determinado momento e lugar (Duarte, 2004).
Na pesquisa qualitativa, é importante lembrar que existem vários tipos de entrevista, que variam de uma conversa informal a um roteiro padronizado. É necessário definir o grau de formalidade de acordo com os objetivos da pesquisa, o tema a ser tratado e a cultura do grupo pesquisado. Uma pesquisa pode incluir diferentes tipos de entrevistas (Haguete, 2001).
O modo como a entrevista foi aplicada considerou aspectos escritos adaptados para os estudantes surdos e tradução e interpretação em Libras. Vale ressaltar que, antes de realizar as investigações de campo, foi necessário obter autorização da SEDU. Somente após a liberação por escrito desenvolveu-se a pesquisa, prezando pelo anonimato das respostas e seguindo as orientações do CEP de Alegre (Parecer nº 668.125).
O roteiro da entrevista é semiestruturado, dividido em duas partes: a primeira com perguntas fechadas, cujo objetivo é traçar o perfil dos entrevistados, e a segunda com perguntas abertas.
As entrevistas foram aplicadas em quatro grupos: o primeiro formado por professores da sala de aula regular; o segundo por professores do AEE; o terceiro por TILSP; e o quarto por estudantes surdos.
Essas entrevistas foram aplicadas em duas etapas: a primeira no ano de 2022 e a segunda em 2023, para levantamento de dados adicionais. As visitas à escola permitiram captar impressões e, em seguida, realizar a apuração das respostas. Após o levantamento das entrevistas, os dados foram analisados seguindo o critério de análise de conteúdo e das experiências.
As entrevistas com os estudantes surdos foram divididas em duas etapas. Na primeira, perguntas e respostas foram realizadas em Libras e gravadas. Na segunda, foram traduzidas oralmente para o português e posteriormente transcritas também em português.
Durante as perguntas aos sujeitos surdos, foi necessário adaptá-las para facilitar o entendimento, uma vez que alguns apresentaram dificuldades com certas palavras. As entrevistas foram gravadas em áudio com os ouvintes e em vídeo com os surdos, utilizando Libras.
Após a coleta de dados, as entrevistas dos ouvintes foram transcritas utilizando a ferramenta online Reshape, seguindo os seguintes passos: cadastro com login e senha, carregamento dos arquivos de áudio e seleção da opção de transcrição de duas pessoas. Dessa forma, as transcrições foram baixadas em formato de documento, com as falas separadas de cada pessoa. As entrevistas dos surdos foram traduzidas para áudio em língua portuguesa e, em seguida, transcritas no mesmo software para análise.
A pesquisa utilizou a técnica de análise de conteúdo defendida por Bardin (2010), estruturada em três fases:
- pré-análise;
- exploração do material, categorização ou codificação; e
- tratamento dos resultados, inferências e interpretação.
A comprovação da pesquisa resulta da coerência interna e sistêmica entre essas fases. Sua consistência se encontra na organização da investigação, evitando ambiguidades e constituindo-se como fato.
A primeira etapa da análise de conteúdo é a pré-análise, na qual o pesquisador inicia a organização do material de forma favorável à pesquisa. Nessa fase, é necessário sistematizar ideias em quatro etapas: leitura flutuante, definição dos documentos, reformulação de objetivos e hipóteses e formulação de indicadores. Assim, o material terá um norte em sua preparação (Bardin, 2010).
Nessa etapa, conduzi a pré-análise do material coletado nas entrevistas, organizando-o conforme a divisão em quatro grupos: professores do ensino regular, instrutor surdo, estudantes e TILSP.
A segunda fase consiste na exploração do material, cujo objetivo é a codificação, ou seja, a descrição analítica orientada pelas hipóteses e referências teóricas (Mozzato; Grzybovski, 2011). A definição das categorias na pesquisa baseia-se no desmembramento e reagrupamento das unidades de registro no texto. A repetição de palavras pode ser adotada como estratégia no processo de codificação, para criar unidades de registro e, posteriormente, categorias de análise iniciais (Bardin, 2010). Nessa etapa, reuni informações pertinentes a cada grupo, seguindo as perguntas e respostas das entrevistas.
Além disso, busquei enaltecer as respostas com base nas referências teóricas citadas nesta qualificação, respeitando o perfil de cada participante, transcrevendo-as no capítulo das considerações acerca das relações pedagógicas, preservando a originalidade, a fim de validar reflexões e relatos da prática escolar citados por cada participante.
A terceira e última etapa aborda o tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Essa fase busca a significação das mensagens, sendo o momento da intuição e da análise reflexiva e crítica, com o objetivo de captar as informações contidas em todo o material coletado pelos instrumentos.
Análises das relações pedagógicas no processo educacional
Como resultado de todas as informações relatadas nas análises das entrevistas, é possível constatar que, nos eixos levantados e que perpassaram as relações entre professores e estudantes, há evidências de fragilidade.
Envolvimentos desde a comunicação, planejamento e interação perpassaram estudantes e professores, gerando sentimento de frustração entre os envolvidos (estudantes, professores, instrutor surdo e TILSP), pois as falhas identificadas trouxeram influências negativas para o desenvolvimento do estudante surdo.
Os estudantes se sentiram prejudicados pela precariedade da comunicação e por não serem fluentes na Libras. Também tiveram dificuldades em seu desenvolvimento durante as avaliações, nos momentos de interação e intervalos das aulas e em trabalhos e grupos realizados em sala de aula.
Lodi (2013) afirma que o objetivo da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) é estabelecer sistemas educacionais que deem importância tanto à igualdade quanto à diversidade como princípios fundamentais da sociedade.
Nesse sentido, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva propõe a adoção de medidas educacionais que visam eliminar a exclusão tanto no ambiente escolar quanto na sociedade como um todo.
Todavia, as escolas precisam promover essa inclusão a fim de romper a barreira da impermanência da comunicação e fortalecer toda a estrutura metodológica avaliativa e curricular que os estudantes surdos necessitam.
Os docentes também demonstraram não ter conhecimento em Libras e admitiram despreparo para adaptar conteúdos e avaliações. Contudo, a maioria apresentou interesse em receber formação bilíngue, ao reconhecer a necessidade, e deseja contribuir para o desenvolvimento de seus estudantes.
A ausência de comunicação, planejamento e interação entre os envolvidos gerou um sentimento de frustração, afetando negativamente o desenvolvimento dos estudantes surdos.
Guarinello et al. (2006) afirmam que a ausência de conhecimento sobre estratégias educacionais para surdos prejudica ainda mais a interação e a comunicação em Libras. Além disso, a inclusão de surdos no ensino regular vai além de criar vagas e disponibilizar recursos materiais.
Para promover a inclusão, é necessário que as instituições de ensino e a sociedade garantam igualdade de oportunidades para todos os estudantes surdos. Isso demanda contar com uma equipe de professores capacitados e comprometidos com a educação de todos, independentemente de suas necessidades e características.
O instrutor surdo também relatou não participar do planejamento junto aos outros docentes, demonstrando frustração por se sentir sozinho nesse processo. Além disso, ele não é fluente em Libras, o que suscita alguns questionamentos: como estabelecer relações com seus estudantes? Como os estudantes surdos poderão exigir interação em Libras com outros docentes se quem deveria ser fluente na língua não é? E como os surdos irão aprender Libras?
Miranda (2005) afirma que o professor é fundamental na mediação do conhecimento, considerando a importância do planejamento para as práticas pedagógicas que visem auxiliar os estudantes na apropriação de conteúdos culturalmente desenvolvidos e compartilhados no espaço escolar.
De acordo com Vargas e Shirley (2014), há uma inquietação em relação ao ensino e aprendizagem dos estudantes surdos nas escolas regulares, pois o objetivo da escola precisa estar voltado para esses estudantes e determinar o apoio necessário para que eles sejam realmente incluídos e façam parte da escola.
Outra afirmação de Vargas e Shirley (2014) refere-se à necessidade de se buscar alternativas pedagógicas que atendam às necessidades educacionais dos estudantes, considerando suas características individuais.
No contexto das características individuais, Vygotsky (1998) acredita que a linguagem é uma atividade fundamental para os seres humanos; é por meio dela que nos tornamos "humanos", assimilando a cultura e adquirindo conhecimentos ao longo da vida. Isso ocorre por meio da internalização das culturas, que envolvem transformações qualitativas no modo individual de agir e pensar, mediadas por atividades (Lacerda, 1998).
É justamente nessa relação com a linguagem que os conhecimentos são adquiridos e construídos, pois, quando há troca de experiências envolvendo o sistema de signos constitutivos de uma língua, os indivíduos podem expressar seus sentidos pela linguagem e estabelecer relações (Góes, 1999). Por fim, os TILSP também expressaram suas angústias ao relatarem a ausência de participação nos planejamentos.
Os TILSP e os profissionais especialistas na educação de surdos devem participar dessa mediação juntamente com os docentes, a fim de promover uma educação bilíngue em conjunto (Farias; Bartolanza, 2013).
Diante disso, Vygotsky (2010) afirma que a escola é um espaço importante para o desenvolvimento intelectual dos estudantes, pois oferece a oportunidade de aprender conceitos científicos, usando a ciência e a comunicação como ferramentas.
Portanto, para que o estudante surdo possa, de fato, se desenvolver em seu aprendizado, não pode haver lacunas. O processo de escolarização depende de que a relação pedagógica entre todos os envolvidos ocorra como deveria.
Podemos comparar o desenvolvimento educacional a um ciclo: seu sucesso depende de que o fluxo funcione corretamente; quando algum ponto desse fluxo é interrompido, seu funcionamento para. Da mesma forma ocorre com o estudante surdo.
Considerações finais
As análises da pesquisa evidenciaram que a falta de fluência em Libras por parte de alguns profissionais da educação prejudica os estudantes surdos, impactando não apenas sua inclusão escolar, mas também suas relações sociais. A fragilidade na relação pedagógica tem efeito direto no aprendizado desses estudantes, sublinhando a necessidade de maiores investimentos em políticas públicas voltadas para a formação desses profissionais.
Apesar dos avanços legislativos e das pesquisas sobre surdez, persistem práticas inadequadas nas escolas, como a inclusão de estudantes surdos em turmas regulares sem preparo docente ou suporte especializado, comprometendo sua educação. A pesquisa revelou que a fragilidade nas relações pedagógicas é mais grave do que se supunha, evidenciando problemas em desacordo com as Políticas Públicas para surdos e de Educação Especial.
A ausência de comunicação efetiva, planejamento adequado e interação resulta em frustração, afetando negativamente a inclusão e o aprendizado dos estudantes surdos. Vygotsky (1998) já alertava sobre a segregação de estudantes com deficiência e defendia soluções práticas para sua inclusão. Concorda-se com Vygotsky, pois, se as escolas tivessem recursos humanos e pedagógicos adequados para a inclusão dos estudantes surdos, muitas das dificuldades mencionadas pelos professores não estariam presentes no dia a dia escolar.
É essencial que as instituições se preparem, oferecendo metodologias, formação e adaptação de recursos para atender às necessidades dos estudantes surdos, promovendo sua inclusão por meio da comunicação, interação e mediação. Goldfeld (2001) reforça que a comunicação em Libras não deve ser vista como limitação, combatendo a discriminação e a marginalização, e que a colaboração entre as comunidades surda e ouvinte favorece o crescimento qualitativo.
Preocupações surgem quanto à capacitação de professores surdos em Libras, sua participação em planejamentos com outros docentes, o suporte da escola a esses professores e o impacto da precariedade na comunicação sobre a relação com os tradutores e intérpretes de Libras/Português (TILSP). Essas questões apontam para fragilidades nas relações pedagógicas e com instrutores surdos, destacando o prejuízo da comunicação deficiente em Libras, que afeta negativamente o planejamento e as interações sociais.
A participação dos TILSP no planejamento é vital para que possam oferecer sugestões, sanar dúvidas e acessar previamente o conteúdo. Além de mediar a comunicação, os TILSP promovem a inclusão. Vygotsky (2007) enfatiza que a escola deve criar oportunidades para a comunicação.
Muitas iniciativas para o desenvolvimento de estudantes surdos nas escolas precisam ser repensadas e reorganizadas. No ambiente escolar, a equipe pedagógica tem papel determinante no sucesso ou fracasso do estudante, podendo contribuir para o desenvolvimento de suas potencialidades e habilidades, como já salientado por Goldfeld (2001).
Diante desses fatores, é fundamental direcionar mudanças para que os estudantes surdos se desenvolvam plenamente e se sintam mais incluídos e satisfeitos no ambiente de ensino.
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Publicado em 27 de agosto de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
PASSOS, Camila do Espírito Santo Ornelas; BREGONCI, Aline de Menezes. Do pensar ao fazer nas relações pedagógicas entre os profissionais da Educação e os estudantes surdos: estudo de caso na escola de Cachoeiro de Itapemirim/ES. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 32, 27 de agosto de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/32/do-pensar-ao-fazer-nas-relacoes-pedagogicas-entre-os-profissionais-da-educacao-e-os-estudantes-surdos-estudo-de-caso-na-escola-de-cachoeiro-de-itapemirimes
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