Literatura de Mulher Preta: uma prática pedagógica na perspectiva da educação antirracista
Rayanne Luiza Quirino de Lima
Licenciada em Educação Física (UFPE), especialista em Educação Física Escolar (UPE) e em Educação Profissional e Tecnológica Inclusiva (IFTM), mestranda em Educação, Culturas e Identidades (UFRPE/Fundaj), professora da rede estadual de Pernambuco, professora tutora da Licenciatura em Educação Física da UFGD
Carlos Eduardo Marques Thompson
Graduado e mestre em Administração (UFPE), especialista em Gestão de Instituições Públicas (IFRO), em Educação Profissional e Tecnológica Inclusiva (IFTM), em Educação Empreendedora (PUC-Rio) e em Educação a Distância (IFPR), professor do Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas, da UFRPE
A hegemonia encontrada nos currículos educacionais eurocêntricos é um processo de apagamento da produção intelectual da ancestralidade de uma população que é fortemente marcada por questões étnico-raciais, por sua formação social historicamente construída envolvendo a cultura negra.
Silva (1999, p. 101-102) traz um olhar para o currículo e suas preposições sobre isso:
O texto curricular [...] está recheado de narrativas nacionais, étnicas e raciais. Em geral, essas narrativas celebram os mitos da origem nacional, confirmam o privilégio das identidades dominantes e tratam as identidades dominadas como exóticas ou folclóricas. Em termos de representação racial, o texto curricular conserva, de forma evidente, as marcas da herança colonial.
As discussões sobre negritude ultrapassam o contexto de um discurso meramente folclórico e inserido, como nos currículos, apenas em datas comemorativas e festivas. Além disso, a ancestralidade da negritude faz parte da história do povo brasileiro, que ainda é fortemente marcada por essa cultura. De acordo com Munanga (2015), o Brasil é o melhor exemplo de um país que nasceu do encontro das diversidades étnicas e culturais, compreendendo influências dos nativos indígenas, dos aventureiros e colonizadores portugueses, dos imigrantes europeus e asiáticos e, principalmente, dos africanos que foram deportados e escravizados, estes últimos formando a raiz cultural negra.
A literatura desempenha papel crucial na educação, especialmente quando se trata de promover a inclusão e a diversidade cultural. Portanto, a representação da cultura negra na literatura não só enriquece o currículo escolar, mas também serve como aparato poderoso para a construção de identidades.
Nesse contexto foi pensada e executada, como atividade proposta para o Dia Internacional das Mulheres numa escola estadual situada no município de Cabo de Santo Agostinho/PE, uma prática pedagógica a partir do olhar de uma educação antirracista, apropriando-se do conhecimento da história e de obras de mulheres pretas na literatura.
Além disso, essa aula buscou assegurar o que é instituído pelas Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 (Brasil, 2003; 2008), que tornam obrigatória a inclusão da História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena no currículo escolar. Apesar dos avanços que essas leis representam no currículo, sua efetivação ainda enfrenta resistências práticas. A carência de formação continuada para os docentes e de materiais pedagógicos que valorizem a pluralidade racial dificulta a incorporação de perspectivas realmente plurais no cotidiano escolar. Como argumenta Gomes (2005), a aplicação dessas leis precisa ser compreendida como um compromisso político-pedagógico com a justiça social e com o combate ao racismo estrutural. Essa reflexão também se alinha ao objetivo central deste estudo: evidenciar as possibilidades de práticas que permitam que alunos e alunas negros se sintam pertencentes e representados nos conteúdos vistos em sala de aula.
Portanto, quando os professores incorporam textos literários que apresentam uma variedade de vozes negras e experiências, eles criam oportunidades para que os discentes participem de discussões significativas sobre identidade, cultura e sociedade. Essa prática não apenas enriquece o ambiente de ensino como também promove a empatia e a compreensão intercultural entre os alunos.
Pinheiro (2023) afirma que é necessário que alunos e alunas tenham representatividade para que consigam reconhecer e projetar suas identidades. Essa necessidade de representatividade está diretamente ligada à forma como os sujeitos constroem suas identidades no ambiente escolar. A presença de referências negras na literatura permite não apenas o reconhecimento de si, mas também a ressignificação da própria trajetória em meio a um currículo historicamente excludente.
Hall (2006) compreende identidade cultural como uma construção dinâmica, moldada pelas experiências históricas e relações de poder. Nesse sentido, a exposição dos alunos à produção literária negra contribui para a reconstrução de uma identidade positivamente vinculada às suas raízes. Diante disso, refletir sobre práticas pedagógicas que valorizem a literatura de mulheres negras torna-se fundamental para a promoção de uma educação antirracista e plural.
Este artigo tem como objetivo relatar uma experiência desenvolvida no Ensino Médio que evidenciou como o contato com produções literárias de autoras negras pode fortalecer a identidade dos estudantes, promover representatividade e transformar o ambiente escolar em um espaço mais equitativo e inclusivo.
Relato de experiência
Professores e professoras atualmente têm se preocupado cada vez mais com uma prática pedagógica mais inclusiva ao inserir obras literárias de representação da cultura negra para discutir temas necessários e legitimados à cultura.
Além disso, é importante que alunas e alunos negros se sintam representados em práticas pedagógicas afirmativas, que exponham a história da sua ancestralidade com outra perspectiva que não a da escravidão. Pinheiro (2023) ressalta a importância da nutrição das potencialidades da negritude, e não o enaltecimento da negação de imagens criadas por uma perspectiva ocidental de que “vidas negras não importam”.
Gomes (2003) destaca a importância da cultura negra no processo de identidade cultural:
A cultura negra possibilita aos negros a construção de um “nós”, de uma história e de uma identidade. Diz respeito à consciência cultural, à estética, à corporeidade, à musicalidade, à religiosidade, à vivência da negritude, marcadas por um processo de africanidade e recriação cultural. Esse “nós” possibilita o posicionamento de negro diante do outro e destaca aspectos relevantes da sua história e de sua ancestralidade.
Considerando a importância da representatividade da cultura negra e de vozes negras no processo de ensino-aprendizagem, este trabalho se permeia por uma educação antirracista.
A experiência relatada neste trabalho aconteceu em uma escola estadual de ensino regular no Estado de Pernambuco, situada no bairro de Pontezinha, município de Cabo de Santo Agostinho. A proposta de abordagem pedagógica foi feita com a turma do 2º ano do Ensino Médio em homenagem ao Dia Internacional da Mulher.
Os alunos e alunas da turma, divididos em grupos de até cinco pessoas, pesquisaram mulheres negras da literatura. A sugestão era de que cada grupo pesquisasse pelo menos duas escritoras e que não repetissem em sala as autoras escolhidas, para que pudesse haver diversidade. Após a escolha, os alunos pesquisaram as histórias de vida delas, suas trajetórias e suas obras. Além disso, os alunos trouxeram histórias sobre premiações importantes e participação em eventos literários de destaque para as literatas.
No segundo momento, os estudantes, em uma apresentação expositiva, compartilharam com os colegas de turma toda a pesquisa exploratória que tinham feito sobre as literatas negras, além de mostrar suas obras em imagens achadas por eles mesmos. Alguns estudantes expressaram entusiasmo e curiosidade ao compartilhar histórias como a de Djamila Ribeiro, Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo e Maria Firmino dos Reis.
Depois que todos os grupos puderam compartilhar seus achados importantes (Figura 1), iniciamos um debate sobre a importância da representatividade daquelas mulheres para a sociedade. Alguns depoimentos foram voltados para a curiosidade de saber mais sobre as autoras, outros falaram de como eram invisibilizados aqueles conhecimentos. Alguns alunos e alunas falaram de já terem ouvido falar de algumas literatas de que falamos, mas que não conheciam suas obras e a ascendência delas, como Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Alguns alunos se emocionaram ao falar sobre a invisibilidade dessas mulheres escritoras.
Durante o debate, os estudantes expressaram sentimentos de pertencimento, surpresa e emoção. Um dos alunos afirmou: “Achei que só existiam escritoras brancas. Agora quero ler mais sobre essas mulheres”. Comentários como esse evidenciam o impacto da atividade na ampliação do repertório cultural e na valorização da identidade negra. Além disso, observou-se engajamento durante o uso do Kahoot: mais de 80% dos alunos acertaram questões relacionadas às autoras pesquisadas, demonstrando retenção dos conteúdos.

Figura 1: Exposição da pesquisa pelos alunos
Fonte: Acervo dos autores.
Em seguida, como forma de enaltecer o momento pedagógico, foi utilizado o Kahoot, um aplicativo interativo baseado em jogos de perguntas (Figura 2). As perguntas contidas no quiz eram sobre obras de mulheres negras, seus rostos, história de vida, suas obras e prêmios literários importantes ganhos por elas.

Figura 2: Vivência com o Kahoot
Fonte: Arquivo dos autores.
O uso da ferramenta tecnológica educativa baseada em jogos teve um efeito significativo no engajamento dos alunos, que se mostraram participativos e demonstraram alegria no processo de ensino-aprendizagem.
Considerações finais
Pensar propostas pedagógicas, como a inclusão de vozes que representam a cultura negra no currículo, é um passo significativo para uma educação equitativa e inclusiva. Práticas pedagógicas como as descritas neste relato de experiência não apenas enriquecem o currículo como trazem representatividade para alunos e alunas negros, e muitas vezes periféricos, além de promover a valorização da diversidade cultural existente na sociedade.
Apoiado pela proposta pedagógica aqui descrita, com a turma do 2º ano do Ensino Médio, formada por alunos e alunas com diversidade étnica, especialmente estudantes negros, foi possível perceber a participação crítica e curiosa na pesquisa exploratória sobre a história de vozes de mulheres negras, oportunizando a representatividade identitária em sala de aula.
Diante dos resultados obtidos por meio das práticas aplicadas, ficou evidenciada a eficácia da estratégia pedagógica com abordagem múltipla para problematizar a questão antirracista na Educação Básica, com pesquisa, discussão, apresentação de trabalhos, uso de ferramenta tecnológica baseada em jogos, mas principalmente por fazer os alunos trazerem para suas vivências conhecimentos sobre história e obras de mulheres pretas na literatura, gerando a formação de atitudes positivas que poderão carregar para suas vidas.
Segundo Gomes (2005), a educação antirracista é uma prática intencional e crítica que reconhece o racismo estrutural presente nas instituições escolares e busca enfrentá-lo por meio de ações pedagógicas afirmativas que valorizem a história, cultura e identidade de povos historicamente marginalizados.
Isso reforça a importância de que professores e professoras tenham um olhar crítico sobre suas práticas pedagógicas, abandonando uma educação tradicionalmente eurocentrada e excludente.
Referências
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394/96 para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, 10 jan. 2003.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394/96, modificada pela Lei nº 10.639/03, para incluir a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, 11 mar. 2008.
GOMES, Nilma Lino Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Belo Horizonte: UFMG, 2023.
GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores. In: GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 59-72.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MUNANGA, Kabengele. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 62, p. 20-31, 2015.
PINHEIRO, B. C. S. Como ser um educador antirracista. São Paulo: Planeta, 2023.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
Publicado em 03 de setembro de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
LIMA, Rayanne Luiza Quirino de; THOMPSON, Carlos eduardo Marques. Literatura de Mulher Preta: uma prática pedagógica na perspectiva da educação antirracista. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 33, 3 de setembro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/33/literatura-de-mulher-preta-uma-pratica-pedagogica-na-perspectiva-da-educacao-antirracista
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