Os livros infantojuvenis podem ser considerados literatura. Uma proposta de análise do livro ilustrado "Carolina Maria de Jesus"

Lívia Rodrigues Cordeiro

Pós-graduada em Leitura e Produção de Textos (UFF)

Segundo Abreu (2006), os conceitos “alta literatura”, “grande literatura” e “literatura erudita” são definidos não apenas por características linguísticas (literariedade, figuras de linguagem, gêneros literários), mas também, principalmente, por critérios de ordem política e social. Nesse sentido, percebe-se o tipo de literatura valorizado por críticos, especialistas e centros acadêmicos, o que, consequentemente, exclui outras obras que apresentam características literárias e que, por isso, deveriam ser concebidas como literatura. A prática desse tipo de avaliação, fundamentada em critérios eruditos, evidencia que a literatura infantojuvenil é relegada a uma posição inferior e marginalizada, assim como a literatura popular e a literatura feminina. A desvalorização e a desqualificação dos livros infantojuvenis ilustrados estão associadas não apenas ao fato de que não apresentam uma linguagem considerada “difícil”, mas também à concepção de que se destinam a um público encarado como infantilizado e desprovido de senso crítico e bagagem cultural.

Tendo isso em vista, é urgente reconhecer as obras infantojuvenis como literatura, dado que elas carregam características literárias e atuam de forma benéfica na formação do pequeno leitor, valorizando sua imaginação e ampliando sua criatividade e conhecimento de mundo. Pensando nessas questões, utiliza-se a obra Carolina Maria de Jesus (2022), com vistas a compreender como se apresentam características literárias no livro, conferindo-lhe o rótulo de literatura. Para tanto, fundamenta-se a análise nas reflexões teóricas de Culler (1999) acerca de algumas perspectivas sobre o que é literatura.

Além disso, o presente trabalho compromete-se a propor uma atividade de leitura crítica a ser desenvolvida nas aulas de Literatura, com a finalidade de levar o aluno a aprimorar suas habilidades de leitura e escrita, ampliar seu conhecimento de mundo e amadurecer sua postura crítica frente ao preconceito racial. Para alcançar tal objetivo, apoia-se em ponderações de Zilberman (1997), que se debruça sobre questões relativas à leitura, buscando observar como esse tipo de obra pode impactar a formação de leitores infantojuvenis e atuar como instrumento de educação emancipatória para esse público.

O reconhecimento do livro ilustrado infantojuvenil como literatura

Inspirado na obra Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus, o livro Carolina Maria de Jesus, de Navarro e Borges (2022), apresenta a história da personagem a partir do diálogo entre texto e ilustrações que ocupam as páginas quando abertas. Nascida em Sacramento, interior de Minas Gerais, em 1914, Carolina teve uma infância marcada por muitas dificuldades e conviveu com as consequências do processo de escravatura no Brasil, que havia sido recentemente abolido. O livro destaca o grande apreço da jovem pela leitura e apresenta toda a trajetória da personagem, desde as dificuldades na favela onde morava com seus filhos até a publicação de sua famosa obra, na qual denuncia a fome e a precariedade enfrentadas pelas pessoas que viviam em comunidades carentes. A obra infantojuvenil enfatiza a problemática da falta de amparo de instituições públicas para essas pessoas e sugere que a favela pode ser concebida, metaforicamente, como um quarto de despejo, conforme retrata o seguinte trecho da obra:

Em 1947, Carolina foi levada pela Prefeitura de São Paulo para a Favela do Canindé, uma das primeiras favelas da cidade. Era para onde os pobres eram mandados naquela época, uma espécie de quarto de despejo da cidade, como diria Carolina anos depois (Navarro, 2022, p. 16).

Segundo Culler (1999), uma das características literárias presentes em uma obra é o teor narrativo, que apresenta uma lógica de acontecimentos e transformações. Assim, a narrativa configura-se como uma sequência lógica de eventos, cujo principal requisito da história é o enredo. O autor, ao tratar desse critério, retoma Aristóteles e afirma que o enredo é o fundamento da narrativa, apresentando início, meio e fim, o que confere à história um ritmo próprio de desenvolvimento. Essa característica é evidente na obra Carolina Maria de Jesus (2022), pois apresenta uma narrativa que projeta o início da história da personagem, sua trajetória marcada por diversas dificuldades e o desfecho de sua vida. Dessa forma, é possível compreender a história de Carolina como uma narrativa que denuncia marcas do processo opressor colonial, evidenciando a sobrevivência de uma mulher negra, mãe, favelada e à margem da sociedade.

Todo esse processo narrativo se desenvolve por meio do diálogo entre texto e imagem, dado que o trabalho conjunto entre texto e ilustração confere à obra seu caráter narrativo. Segundo Fittipaldi (2008, p. 99), “uma simples virada de página, o lapso, o movimento que acontece entre a leitura das páginas e o intervalo entre uma imagem e outra, num livro ilustrado” são fatores importantes para a construção narrativa, já que esse movimento das páginas pode se assemelhar à passagem do tempo, evidenciando uma narrativa em curso, ou seja, em acontecimento. Assim, a passagem das páginas 12 e 13 para as páginas 14 e 15 marca a virada no tempo: da infância de Carolina à vida adulta. A virada dessas páginas permite observar, por um lado, uma criança livre pelo campo, apesar das dificuldades, e, por outro, uma adulta oprimida pela polícia, aparelho do Estado que deveria garantir sua segurança, mas não o faz. Percebe-se, portanto, que os livros ilustrados possibilitam uma leitura para além da escrita, já que as ilustrações também contribuem para a construção de sentido do texto.

Outra característica das obras literárias refere-se à atenção de que o leitor precisa dispor para compreender seus desdobramentos. Nesse sentido, segundo Culler (1999, p. 32), a literatura “é também, ela própria, um contexto, que promove ou suscita tipos especiais de atenção. Por exemplo, os leitores atentam para potenciais complexidades e procuram sentidos implícitos”. A literatura infantojuvenil possui essa característica de provocar curiosidade no pequeno leitor, de modo que ele procure, no interior da obra, elementos implícitos. Em Carolina Maria de Jesus (2022), é possível notar a figura do contador de histórias, o avô da personagem, chamado Benedito. Sua função é preservar e manter viva a memória de sua ancestralidade, suas origens e sua cultura. Essa prática de contação de histórias pode chamar a atenção do leitor para essas narrativas, questionando se são reais, de onde vêm e qual sua significação. Outro aspecto que exige atenção do leitor é o momento em que o narrador estabelece diálogo com ele por meio de perguntas, como é possível observar no seguinte trecho:

Naquela época [início do século XX], o racismo era muito pior... Carolina se sentia humilhada, rejeitada pelos demais e não entendia por que as pessoas poderiam ser consideradas melhores ou piores em razão de sua cor. Também não entendia por que os negros tinham menos direitos e oportunidades que os brancos. Você consegue entender isso? (Navarro, 2022, p. 12, grifo meu).

Essa dinâmica do diálogo desperta a curiosidade no leitor, de modo a induzi-lo a refletir sobre situações que envolvem preconceito e racismo. Nesse sentido, ele é levado a compreender que contextos como esses podem ferir, socialmente, as pessoas que são alvos das consequências deixadas pelo processo opressor de colonização.

Proposta de atividade de leitura crítica

Além dessas características que permitem conceber a obra Carolina Maria de Jesus (2022) como literatura, ela se configura como um material rico para o trabalho da leitura literária em sala de aula. Conforme destaca Zilberman (1997), a leitura literária emancipatória pode proporcionar ao leitor uma experiência sem “amarras”, ou seja, que lhe permita refletir livremente sobre os acontecimentos que atravessam a vida social humana. Para completar, Jauss (1975, p. 148) defende que a função social da literatura

só se manifesta em sua genuína possibilidade ali onde a experiência literária do leitor entra no horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-forma sua compreensão do mundo e, com isso, repercute também suas formas de comportamento social.

A obra aqui analisada pode ser concebida como um livro a ser trabalhado dentro dessa perspectiva, em que o leitor pode explorar a sua imaginação sem estar pressionado pelo ensino restrito e mecanizado dos livros didáticos, cujas questões limitam a prática reflexiva do leitor. Além disso, o livro Carolina Maria de Jesus (2022) constitui-se como uma estratégia de impactar a vida do leitor em formação, dado que apresenta diversos problemas sociais originados no período colonial e que se perpetuam nos dias atuais. O referido livro pode atuar no combate ao racismo estrutural ainda presente no Brasil, pois convoca o leitor a refletir sobre essa questão.

Assim, com base no compromisso de propiciar a prática de leitura crítica, emancipadora e sem “amarras” nas aulas de literatura, propõe-se que os alunos do Ensino Fundamental II realizem uma leitura individual do livro Carolina Maria de Jesus (2022) e, em seguida, registrem em seus diários de leitura impressões, apontamentos, críticas e dúvidas sobre o texto. O professor pode mostrar aos alunos a importância do gênero diário, uma vez que a obra é uma adaptação do próprio diário escrito por Carolina Maria de Jesus, que se tornou um livro denunciando a realidade violenta brasileira em relação às pessoas negras. Essa primeira etapa da atividade permitirá que o aluno aprimore habilidades de leitura e escrita, conforme prevê a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no campo de atuação da vida pública, pois é necessário

o desenvolvimento de habilidades e aprendizagem de procedimentos envolvidos na leitura/escuta e produção de textos pertencentes a gêneros relacionados à discussão e implementação de propostas, à defesa de direitos e a projetos culturais e de interesse público de diferentes naturezas (Brasil, 2018, p. 147).

Além disso, é importante destacar que essa atividade dinâmica com os alunos tem respaldo na Lei nº 11.645, que assegura o ensino obrigatório da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no Ensino Básico, uma vez que esses povos contribuíram significativamente para a formação da cultura brasileira.

Na segunda etapa dessa atividade, o professor pode se reunir com os alunos em uma sala de leitura, biblioteca ou outro espaço em que se sintam confortáveis, para formar uma roda de leitura. O docente também poderá convidar uma pessoa com formação em outra área do conhecimento, por exemplo, um professor de outra disciplina, um assistente social ou um psicólogo, para participar dessa atividade, trazendo contribuições de sua área, mas sem se afastar dos limites da proposta do livro ilustrado.

Com base nessa organização, os alunos poderão ler seus apontamentos e reflexões sobre a obra Carolina Maria de Jesus (2022), registradas em seus diários de leitura. Essa dinâmica cria condições para que o estudante assuma um papel ativo em seu processo de ensino-aprendizagem. Além disso, o professor atuará como mediador da leitura, ouvindo e orientando os alunos em suas impressões. O docente poderá provocá-los com perguntas como: “O que você achou da personagem?”; “Você consegue relacionar a vida da personagem a pessoas do seu cotidiano que são alvo de preconceito racial?”; ou “Você já presenciou alguma situação em que alguém tenha sofrido racismo?”. Essas questões estimulam a reflexão sobre os desdobramentos da história apresentada no livro, levando-os a compreender que a narrativa pode ser concebida como um retrato da formação do Brasil e que essa história não deve ser esquecida.

Esse trabalho dinâmico com os alunos proporcionará diferentes visões e opiniões sobre a obra. Nesse sentido, permitirá combater determinadas visões estereotipadas sobre as pessoas negras e suas histórias. Os alunos poderão refletir ainda sobre o conceito de sabedoria, a partir do seguinte trecho:

Todos os parentes de Carolina eram analfabetos, inclusive seu avô, que, apesar de não saber ler, era muito conhecido naquela cidadezinha por ser um grande contador de histórias, por sua sabedoria e seu carisma. Diziam, brincando, que ele era como Sócrates (Navarro, 2022, p. 6).

Durante toda a trajetória do Ensino Básico, os estudantes são levados a uma visão limitada de que a sabedoria pertence apenas aos grandes filósofos e escritores europeus, devido ao fato de que a educação brasileira ainda é fortemente influenciada pelo ensino europeu. A referida obra ilustrada pode contribuir para ampliar a bagagem de conhecimento dos alunos para além dessa perspectiva eurocêntrica da literatura e da filosofia, permitindo-lhes compreender que pessoas negras também podem ser reconhecidas como detentoras de saberes e conhecimentos, especialmente figuras como o personagem Benedito, avô de Carolina, que era um grande contador de histórias e, por meio delas, buscava preservar a memória de seus antepassados africanos da etnia cabinda. Dessa forma, é possível valorizar essa figura, que guarda um vasto conhecimento sobre sua história. Ao se atentarem a esse detalhe, os alunos poderão refletir sobre a importância de respeitar e valorizar a história de cada povo e de cada cultura, ampliando, assim, sua visão de mundo. Os livros didáticos ainda se prendem à literatura eurocêntrica, o que limita a percepção dos estudantes, ao transmitir a ideia de que existe apenas esse tipo de literatura. Portanto, ao realizar esse tipo de trabalho com os pequenos leitores, o professor estará criando condições, ou seja, contextos, em que os estudantes poderão vivenciar uma prática de leitura emancipatória, como propõe Zilberman (1997), proporcionando-lhes a experiência de refletir sobre acontecimentos presentes na sociedade.

Considerações finais

Com base na análise da obra infantojuvenil Carolina Maria de Jesus (2022), foi possível observar que o livro apresenta características marcantes que o tornam uma obra literária. O desenvolvimento da história a partir do diálogo entre texto e imagem possibilita o desdobramento narrativo, o qual carrega um tom de denúncia sobre a realidade brasileira, que ainda promove práticas violentas de racismo. A lógica de acontecimentos, conforme discutida por Culler (1999), é perceptível, pois tais desdobramentos delineiam o retrato de um Brasil em que o racismo estrutural ainda impera.

Tendo em vista todo esse trabalho crítico-reflexivo promovido pela obra Carolina Maria de Jesus (2022), é de fundamental importância incluí-la nas aulas de literatura, pois isso pode fazer diferença na formação do leitor. Segundo Freire (1965), a práxis da liberdade é essencial na sala de aula, uma vez que constitui um caminho que possibilita uma relação dialógica entre professor e aluno, permitindo-lhes atuar de forma conjunta na construção do conhecimento e do saber. Baseando-se nessa concepção metodológica, a mediação da leitura da obra Carolina Maria de Jesus (2022) pode ser uma prática que favorece maior participação do aluno, garantindo-lhe autonomia de análise e motivação para desenvolver um olhar mais sensível a problemas sociais, como o racismo, além de mostrar a importância de valorizar diferentes grupos, povos, culturas e a ancestralidade de cada um. Todo esse trabalho pode impactar de forma significativa a vida de um leitor crítico, capaz de construir autonomia e apresentar suas questões. Assim, a literatura cumpre seu papel social, concedendo ao aluno liberdade para refletir sobre preconceitos e até combatê-los com posicionamentos críticos.

Referências

ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Brasília, 2008.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.

CULLER, Jonathan. O que é Literatura e tem ela importância? In: CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999. p. 26-47.

CULLER, Jonathan. Narrativa. In: CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999. p. 84-94.

FITTIPALDI, Ciça. O que é uma imagem narrativa? In: OLIVEIRA, Ieda de (org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008. p. 93-120.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1965.

JAUSS, Hans Robert. Literaturgeschichte als provokation der literatur wissenschaft. In: WARNING, Rainer. Reseptionsasthetik: theorie und práxis. Munchen: Fink, 1975.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960.

NAVARRO, Adriana de Almeida. Carolina Maria de Jesus. Il. Bill Borges. São Paulo: Ciranda Cultural, 2022.

ZILBERMAN, Regina. Leitura literária e outras leituras. Gragoatá. Niterói, nº 2, p. 143-157. 1º sem. 1997.

Publicado em 01 de outubro de 2025

Como citar este artigo (ABNT)

CORDEIRO, Lívia Rodrigues. Os livros infantojuvenis podem ser considerados literatura. Uma proposta de análise do livro ilustrado "Carolina Maria de Jesus". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 37, 1º de outubro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/37/os-livros-infantojuvenis-podem-ser-considerados-literatura-uma-proposta-de-analise-do-livro-ilustrado-carolina-maria-de-jesus

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