As escrevivências de Conceição Evaristo no Ensino Médio: um olhar sobre as práticas de letramento literário em um contexto de escola pública
Maeli Fernandes Mota
Mestra em Ensino (UNIC), docente da rede pública de ensino
Rosemar Eurico Coenga
Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGEN/UNIC), doutor em Teoria Literária e Literatura (UnB)
Este artigo advém da dissertação Letramento crítico-literário no itinerário formativo de Língua Portuguesa: um estudo da recepção de escrevivência de mulheres negras no Ensino Médio, defendida em março de 2023. Muito se tem falado e produzido sobre a obra de Conceição Evaristo e seu conceito de escrevivência. O objetivo aqui é discutir o protagonismo das mulheres negras, evidenciando em nosso estudo questões de desigualdades e preconceitos raciais e de gênero. A proposta interventiva aconteceu por meio dos contos Di lixão, Maria, Ana Davenga e Beijo na face, selecionados da coletânea Olhos d’água (2020), com jovens estudantes do Ensino Médio de uma escola pública estadual; a partir daí, analisamos a recepção e a percepção dessas narrativas, que muitas vezes são pouco debatidas na escola, razão pela qual consideramos importante proporcionar reflexões e construções de práticas para abordagem da temática selecionada, em conformidade com a Lei nº 11.645/08, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e dos Povos Indígenas no Ensino Básico.
As reflexões que orientam o presente texto são decorrentes das nossas experiências em docência e pesquisa em articulação com a Educação Básica. Assim, nossa escolha considera as consequências da aplicação da referida lei. Por essa razão, resolvemos realizar uma pesquisa a fim de investigar a recepção e as experiências produzidas com alunos do Ensino Médio acerca do conceito de escrevivência, de Conceição Evaristo.
São consideradas, neste estudo, as contribuições do paradigma literário, de Rildo Cosson (2006; 2014; 2020), da Estética da Recepção, de Hans Robert Jauss (1979), da Teoria do Efeito Estético, de Wolfgang Iser (1996), com destaque para as discussões críticas feministas de bell hooks (2017; 2022) e da teoria crítica de Paulo Freire (2006). Vale lembrar que bell hooks tem seu nome escrito com iniciais minúsculas por desejo da própria autora. A escolha do arcabouço teórico de bell hooks e Paulo Freire possibilita um olhar sobre a pedagogia da transgressão. Também nos apoiamos em Antonio Candido (2011), quando problematiza a questão da aproximação entre literatura e direitos humanos. Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo, do tipo pesquisa-ação, com aplicação da sequência expandida proposta pelo pesquisador Rildo Cosson.
No entanto, antes de explicitarmos os procedimentos e resultados obtidos com a pesquisa, apresentaremos na próxima seção os fundamentos teóricos nos quais nos apoiamos para a realização desta investigação.
O paradigma literário e o paradigma social-identitário
Assumimos, neste texto, os pressupostos teóricos de Rildo Cosson (2006; 2014; 2020) e desse autor e Graça Paulino (2009), divulgadores dos pressupostos conceituais. Conforme os autores,
propomos definir letramento literário como o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos. Aqui, convém explicitar, em primeiro lugar, que considerar o letramento literário um processo significa tomá-lo como um estado permanente de transformação, uma ação continuada, e não uma habilidade que se adquire, como aprender a andar de bicicleta, ou um conhecimento facilmente mensurável, como a tabuada de cinco (Cosson; Paulino, 2009, p. 67).
Para tratar dos principais suportes teórico-conceituais, nos embasamos na obra Paradigmas do ensino de literatura,de Rildo Cosson (2020), na qual o autor trata dos paradigmas do ensino de literatura, sendo dois caracterizados como tradicionais: moral-gramatical e histórico-nacional. Focaliza quatro paradigmas contemporâneos: analítico-textual, social-identitário, formação do leitor e letramento literário. Com essa obra, Cosson tem como interesse analisar o ensino de literatura em uma perspectiva mais ampla, que acresce a suas obras anteriores ‒ Letramento literário: teoria e prática (2006) e Círculos de leitura e letramento literário (2014) ‒ acerca da caracterização dos modelos do ensino escolar da literatura.
Dentre os paradigmas apontados, prescritos pelo autor, elegemos o do letramento literário e o social-identitário como melhor opção para a discussão proposta. Elucida o autor que, nos termos do letramento literário,
deve-se ter sempre em mente que o desenvolvimento da competência literária dos alunos é uma construção pedagógica a ser proposta e executada por uma comunidade de leitores historicamente determinada, ou seja, de uma escola específica, com professor e alunos específicos e em condições específicas de letramento literário (Cosson, 2020, p. 182).
Cosson (2020, p. 179) enfatiza que “a promoção do letramento literário na escola deve ter como objetivo desenvolver a competência literária do aluno”. Nessa perspectiva, o autor explicita as implicações pedagógicas e literárias a partir da acepção dos verbos desenvolver e aprimorar:
Aqui “desenvolver” como objetivo educacional diz respeito a ampliar e aprimorar. Ampliar porque, consoante ao letramento como processo, o aluno já traz consigo alguma competência literária; logo, o ponto de partida (e de chegada) é sempre o aluno e não um saber escolar previamente determinado. [...] Aprimorar porque, mesmo não havendo uma linha única e reta a seguir, é possível interferir de modo positivo no repertório literário do aluno, apresentando experiências literárias não apenas mais diversificadas, mas também progressivamente mais complexas, a fim de que se torne um leitor literariamente competente (Cosson, 2020, p. 180).
Nesse paradigma, ele defende que a leitura literária precisa ser ensinada na escola, assim como qualquer prática cultural. O paradigma tem como “conteúdo do ensino de literatura a linguagem literária, compreendida como um repertório de textos e práticas de ler e produzir obras literárias” (Cosson, 2020, p. 183).
Tomando como base as contribuições desses autores é que propomos trazer à baila considerações sobre letramento literário e interculturalidade a partir do paradigma social-identitário; esse paradigma tem como “orientação e base de sustentação o multiculturalismo, os estudos de gênero, o desconstrucionismo, o pós-estruturalismo, os estudos culturais e a teoria queer” (Cosson, 2020, p. 122). Também buscamos o respaldo da Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade no Ensino Básico do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, e da Lei nº 11.645/08, que altera a anterior para inclusão dos povos indígenas.
Paulo Freire e bell hooks: contribuições para uma pedagogia crítica
Para embasar as ideias de uma pedagogia crítica, humanizadora e transgressora, estabelecemos um diálogo com Paulo Freire (2019), bell hooks (2017; 2022) e Antonio Candido (2011) e suas considerações sobre humanização, direitos e literatura.
A proposta de Freire assenta-se na criticidade, representa uma aposta na conscientização no terreno educativo e social. Sua vasta produção científica atesta seu compromisso com a educação humanística, crítica e consciente, sendo geradora de uma postura de resistência contra toda forma de opressão e dominação.
Procuramos discutir a temática dos direitos humanos sob a ótica dos ensinamentos de Paulo Freire, a partir da obra Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (2019), acerca de sua proposta educativa centrada na responsabilização do educando pela própria aprendizagem, sustentada pelas ideias de liberdade e de decisão. Nessa perspectiva, Freire (2019, p. 58) enfatiza: “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”.
Na mesma obra, Freire (2019, p. 59) se refere à ética de eticidade, entendida como a dialogicidade verdadeira,
em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por esses seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos.
Segundo as palavras de Freire (2019, p. 60),
qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever, por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com esse saber.
As proposições de bell hooks levam a ampliar nossos horizontes e a repensar a prática pedagógica, especialmente na sala de aula, para que assim possamos ao menos minimizar as múltiplas diferenças existentes no contexto da sala de aula. Para compreender melhor qualquer situação, é preciso olhá-la de perto, aproximar-se dela; somente assim se pode perceber com clareza qualquer estranhamento, como desinteresse, rebeldia ou algum outro fator que cause a desmotivação dos alunos nos estudos.
bell hooks (2017, p. 97) fala da importância de criar uma teoria que consiga promover a luta de movimentos renovados, que intensifique a oposição do feminismo ao sexismo e, ainda, à opressão sexista. Como ativista feminista, faz-se necessário afirmar o compromisso com movimentos feministas renovados, cujo objetivo principal seja a transformação da sociedade.
Em outro trabalho, bell hooks (2022, p. 25) reconhece que, enquanto as pessoas em geral falam sobre a “força” das mulheres negras, de como elas lidam com a opressão, “ignoram a realidade de que ser forte diante da opressão não é o mesmo que superá-la, que resistência não deve ser confundida com transformação”. Essas questões muitas vezes acabam ficando implícitas, o que demonstra uma tendência romantizada sobre a vida da mulher negra.
Logo mais adiante, bell hooks (2022, p. 47) reforça que, por desinteresse, acadêmicos relutam em debater a opressão da mulher negra escravizada, em investigar o impacto da opressão sexista e racista contra a mulher negra, o que “subestima a experiência da mulher negra escravizada”, e que racismo e sexismo só aumentaram o sofrimento das mulheres negras e a opressão contra elas.
bell hooks (2022) diz ainda que, durante toda a história da mulher escravizada, e mesmo depois, quando já alforriada, sempre houve um distanciamento entre mulheres brancas e negras, por estarem em desacordo, principalmente a mulher branca, por evidenciar interesses de cunho racista. Em toda e qualquer luta por mudança, faz-se necessária a união, o acordo pelos mesmos interesses; caso contrário, qualquer movimento estará fadado ao fracasso. Pensando assim, bell hooks (2022) sinaliza que, para acontecer de fato uma mudança na sociedade contemporânea,
o processo começa com ação, com a recusa da mulher, individualmente, de aceitar quaisquer mitos, estereótipos e pressupostos falsos que negam a natureza compartilhada de sua experiência humana; que negam a capacidade dela de recuperar os abismos criados pelo racismo, sexismo ou classismo que negam a habilidade dela de mudar (hooks, 2022, p. 249).
Ainda segundo bell hooks (2022, p. 249), para haver uma verdadeira revolução feminista, devemos exercer o compromisso de unir as mulheres em uma verdadeira solidariedade política; “isso significa dizer que devemos assumir responsabilidade por eliminar todas as forças que separam mulheres. Racismo é uma dessas forças”. Acreditamos que a escola é um espaço de transformação, e essa é a hora de levantarmos a bandeira da união, em busca por igualdade entre as mulheres brancas e negras; dessa maneira, teremos mais oportunidade de vencer os obstáculos que nos separam.
Como ativista negra, bell hooks dedica seus estudos aos temas de gênero, raça e ensino, os quais, no que lhe concernem, apontam uma relação com a obra de Paulo Freire na luta por uma educação transformadora, pois, quando adquirimos conhecimento, deixamos para trás a ignorância e começamos a ver o mundo por outros ângulos, com um ponto de vista diferente; assim, conseguimos aceitar as diferenças e a diversidade cultural.
É importante considerar que Antonio Candido (2011, p. 172), em seu ensaio O direito à literatura, discorre sobre a barbárie relacionada ao máximo de civilização. O teórico nos leva à reflexão sobre o movimento pelos direitos humanos, dizendo que é possível encontrar uma solução para as desavenças que geram a injustiça:
Penso que o movimento pelos direitos humanos se encontra aí, pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade à busca, não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça, em correlação a cada momento da história (Candido, 2011, p. 172).
A esse respeito, Candido (2011, p. 173) afirma ainda que a barbárie continua, portanto, não mais da forma como se fazia no passado, a ponto de celebrar as atrocidades, e isso já é um bom sinal, uma vez que “o mal é praticado, mas não proclamado”. Dessa maneira, a sociedade vai sendo transformada e já não se veem, como antes, nos discursos de ideologias ou problemas sociais, autoridades, como políticos e empresários, discursarem contra a necessidade de promover uma distribuição de renda mais justa e mais igualitária, uma vez que a sociedade da atualidade já não tolera a má distribuição de renda.
Nesse sentido, surge uma nova atitude em relação ao pobre, ao desprovido, ao discriminado, segundo o teórico, “seja por culpa ou por medo”. Nas palavras de Candido (2011, p. 173),
nas caricaturas dos jornais e das revistas o esfarrapado e o negro não são mais tema predileto das piadas, porque a sociedade sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de coisas, e o temor é um dos caminhos para a compreensão.
Candido (2011) ressalta que os direitos humanos são bens incompreensíveis, não apenas os que asseguram a sobrevivência física, mas aqueles que também garantem a integridade espiritual. Em virtude disso, em sua perspectiva,
são incompreensíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, à resistência à opressão etc., e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não dizer, à arte e à literatura (Candido, 2011, p. 176).
Portanto, compreende-se por literatura toda manifestação universal de todos os homens, em todos os tempos. Antonio Candido (2011, p. 176-177) assegura que
não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável desse universo, independentemente da nossa vontade.
Nessa perspectiva, o autor assegura que, durante a vigília, toda criação, seja ela ficcional, seja poética, sendo essa a mola da literatura em todos os seus níveis e também em todas as modalidades, está presente em cada indivíduo, independentemente de ser
analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance (Candido, 2011, p. 176-177).
Finalmente, a literatura é instrumento indispensável de humanização, já que ela consegue atuar tanto no inconsciente quanto no subconsciente do ser humano. Nesse sentido, as atividades de inculcamento intencional são de grande relevância para a humanidade. Finalmente, vale dizer que, conforme Candido (2011, p. 177), “cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles”.Sendo assim, consoante com o autor, a literatura tem dado grande contribuição para a nossa sociedade, entrando nas grades curriculares e sendo instrumento transformador para uma educação mais justa e igualitária.
Aproximação metodológica e contexto de pesquisa
Elegemos a metodologia da pesquisa-ação, ou pesquisa participante, por ser um tipo de pesquisa social de caráter empírico, concebida e realizada em estreita conexão com uma ação ou com a resolução de um conflito coletivo. Os participantes de determinado grupo social desempenham papel ativo na resolução dos problemas encontrados, no acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas a partir da sua autorreflexão, de maneira a melhorar práticas comportamentais. Essa metodologia é defendida por Thiollent (2000, p. 15), para quem “os pesquisadores desempenham papel ativo no equacionamento dos problemas encontrados, no acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas em função dos problemas”.
Como na pesquisa-ação o pesquisador executa papel ativo na resolução dos problemas encontrados e na avaliação dos dados emersos, tem sido muito útil e apreciada nas investigações científicas. Segundo Thiollent (2000, p. 22),
consideramos que a pesquisa-ação não é constituída apenas pela ação ou pela participação. Com ela é necessário produzir conhecimentos, adquirir experiência, contribuir para a discussão ou fazer avançar o debate acerca das questões abordadas.
Nessa perspectiva, a pesquisa-ação, para Thiollent (2000), consiste em dois momentos: o primeiro é a ação dos participantes para o melhor equacionamento da pesquisa; o segundo caracteriza-se pelo conhecimento adquirido a partir das informações obtidas, às quais, de outra maneira, os participantes teriam dificuldade de acesso.
A respeito desse assunto, a pesquisadora Vera Lúcia Menezes de Oliveira Paiva (2019) diz que a realização de uma pesquisa-ação consiste em um planejamento das ações em que tanto o problema seja identificado quanto as mudanças que se deseja alcançar sejam estabelecidas, bem como seja esboçado o delineamento das ações para esse processo. Por fim, a ação, a observação e a reflexão dos efeitos descritos podem levar os pesquisadores a iniciar, inclusive, novo ciclo de ação e reflexão.
Portanto, pensando em uma pesquisa qualitativa, uma pesquisa-ação de caráter interpretativo, é que este trabalho se define e pretende explicitar os dados obtidos, a partir da subjetividade e das possibilidades de leitura, mediante as informações colhidas na realização da sequência expandida de Cosson (2006).
Os espaços do campo de pesquisa
O local escolhido para desenvolver a pesquisa foi uma escola pública estadual situada na Avenida Fernando Correa da Costa, 3610 – Shangri-lá, Coxipó, em Cuiabá, capital de Mato Grosso. Devido à pesquisa-ação, e como profissional atuante nessa escola, acreditamos que, por certo, o desenvolvimento das atividades fluirá de modo positivo, bem como o relacionamento com todos os profissionais que atuam ali. Para alcançar os objetivos da pesquisa, trabalhamos com uma turma com 30 alunos, com idades entre 14 e 15 anos, sendo 17 meninas e 13 meninos, estudantes de 1º ano do Ensino Médio, no período vespertino. Entre os meninos, apenas dois não apresentam características da negritude, enquanto seis das meninas são brancas; as demais evidenciam traços negros.
Os dados analisados foram obtidos a partir do desenvolvimento das atividades em sala com esses alunos, sob a perspectiva do letramento crítico-literário e da sequência expandida de Rildo Cosson (2006), perfazendo as seguintes etapas: motivação, introdução, leitura, primeira interpretação, contextualização (teórica, histórica, estilística, poética, crítica, presentificadora e temática), segunda interpretação e expansão.
A experiência de escrevivência literária: o desenvolvimento das oficinas
Nesta seção, descrevemos e analisamos as experiências de leitura realizadas por alunos e refletimos sobre a noção de escrevivência no itinerário de Língua Portuguesa no Ensino Médio. Por isso, optamos por aplicar a proposta de intervenção em uma turma de 1º ano da mencionada escola pública estadual durante o primeiro semestre de 2022, após a aprovação no Comitê de Ética, protocolada sob n.º 51811721.9.0000.5165, que permitiu nosso ingresso no campo de pesquisa.
Apoiados na pesquisa qualitativa interpretativa, tendo como base as observações, anotações e as construções e formulações de pensamentos nos momentos de discussão, bem como o debate, as produções textuais e o questionário aplicado com todos os participantes da leitura de textos literários referentes à temática racial, foi possível contemplar o conceito de escrevivência por meio de sequências didáticas organizadas em oficinas, na perspectiva do paradigma literário e social identitário.
É pertinente ressaltar que não intencionamos apresentar uma proposta aplicável a qualquer turma do Ensino Médio, porque carecemos considerar o perfil de leitores no tocante à maturidade de leitura e a suas condições de acesso.
Algumas ações subsidiaram nossa proposta de intervenção: a primeira etapa teve por objetivo a motivação dos alunos, com a canção Negra Tinta, de Bia Ferreira. Além da canção, levamos para a sala de aula o filme Estrelas além do tempo, do produtor Theodore Melfi, que retrata o preconceito tanto da ocupação de cargos de representações importantes por mulheres quanto pela cor da pele. Também adotamos os diários de leitura com o intuito de os alunos registrarem suas impressões e interpretações sobre as ações desenvolvidas.
A motivação consiste em uma atividade que proporciona à turma um momento de descontração, preparação, uma apreciação para ser introduzido o objeto de conhecimento – no caso, os textos literários selecionados.
Com a realização desse exercício, o aluno pode perceber a importância da leitura e sua relevância dentro do processo de letramento. No encontro seguinte, todos sentados em semicírculo, com uso do datashow, apresentamos Conceição Evaristo, professora e escritora brasileira com muita evidência na contemporaneidade, que nasceu em 29 de novembro de 1964, em Minas Gerais, e atualmente vive no Rio de Janeiro, sendo ativa nos movimentos da luta negra.
Idealizadora do projeto de escrevivência, que, segundo a escritora, parte do lugar de sua fala, de sua escrita e de suas próprias vivências e quer dizer a escrita de nós ou a escrita das próprias vivências. É, portanto, a escrita de uma mulher negra comprometida com a condição da mulher negra em uma sociedade marcada pelo preconceito.
Conceição Evaristo utiliza a literatura e a ficção como meio de registrar as injustiças, as dores e os silêncios dos afrodescendentes brasileiros, principalmente mulheres, que, de outra maneira, permaneceriam ocultos, como ocorre às pessoas que não são ouvidas. Entre suas obras mais importantes estão os romances Ponciá Vicêncio e Becos da memória e o livro de poesia Poemas da recordação e outros movimentos.Além disso, Conceição Evaristo publicou também três coletâneas de contos: Insubmissas lágrimas de mulheres (2017), Olhos d`água (2020) e Histórias de leves enganos e parecenças (2016). Ela é, portanto, uma das principais escritoras brasileiras deste século, e ler suas obras é mergulhar na história do Brasil. É, mais ainda, conhecer as vivências de mulheres negras inseridas nas grandes cidades brasileiras, onde realidade e ficção se mesclam, causando inquietações em seus leitores e levando-os à reflexão social.
Em seguida, apresentamos a obra Olhos d’água, uma coletânea com 15 contos publicada pela Pallas Editora em 2020. Para as atividades sobre esse material, distribuímos a obra entre os alunos e pedimos para folhearem o livro, observando o desenho gráfico, o ano em que a obra foi publicada, o total de páginas e a editora que publicou. Dados esses minutos para o primeiro contato com a obra, solicitamos abrir o livro na página 77, para darmos início à leitura do conto intitulado Di lixão; nas aulas seguintes, foram lidos mais três contos: Maria, Ana Davenga e Beijo na face.
Destacamos, neste ponto, a curiosidade dos alunos pela história da escritora Conceição Evaristo e pela forma como usa a sua escrita para denunciar as desigualdades sociais em que vive a maioria dos afrodescendentes no Brasil.
Para compreender sua obra, é necessário, portanto, destacar as questões sociais, raciais e de gênero na ficção literária da autora. Como mencionado, é indiscutível a importância de Conceição Evaristo para a literatura de autoria negra feminina e sua aproximação com jovens leitores.
Desse modo, as atividades desenvolvidas com as obras literárias de Conceição Evaristo ampliaram o universo do aluno/leitor, favoreceram o incentivo à leitura do texto literário e a compreensão dos diversos aspectos que envolvem as relações sociais por meio de leituras, discussões, debates, produções textuais, troca de experiências e do compartilhamento de suas próprias vivências, estimulando a compreensão dos diversos aspectos que envolvem as relações sociais, como o preconceito, a discriminação, a desigualdade social e a vulnerabilidade dos menos favorecidos. Podemos dizer, ainda, que a leitura das obras literárias propiciou a desconstrução de ideias preconceituosas em relação ao negro e, principalmente, à mulher negra.
São múltiplas as experiências e significações que emergem da leitura dos contos discutidos em sala de aula. Isso se torna perceptível quando, em um primeiro momento, os alunos tiveram que responder à seguinte questão: qual impressão sobre os contos lidos e debatidos em sala de aula? De qual deles gostou mais? Por quê?
Participante Élida: Eu gostei muito; um dos contos de que gostei bastante foi o Beijo na face porque eu achei bem impactante a história.
Participante Geni: Gostei mais do conto Maria, pois consegui associá-lo a uma situação real.
Participante João Pedro: A real situação da negritude no Brasil. O conto que mais me cativou foi Maria.
Participante Romeu: É que, apesar de toda a evolução, pessoas ainda são colocadas em situações difíceis devido à cor ou gênero. Beijo na face retrata a dificuldade de uma pessoa em sair de um relacionamento, principalmente com filhos, ela continua adiando e adiando até que os anos passem e passem.
Participante Thaís: No começo achei que seria chato porque não gosto muito de ler livros, mas quando li os contos de Conceição Evaristo me apaixonei.
Depois foi perguntado: em sua opinião, é importante trazer para a sala de aula debates sobre a luta antirracista e antimachista. Por quê?
Participante Élida: Sim, porque a escola tem o papel fundamental na busca por uma educação justa e consciente para fazer com que os alunos, professores, pais e o próprio ambiente escolar compreendam melhor as questões de racismo e machismo.
Participante Geni: Sim, pois em breve seremos adultos, constituiremos uma família. É bom sabermos sobre esses assuntos para, no futuro, sabermos debater de forma correta.
Participante Geane: Sim, para que a geração futura não continue com hábitos preconceituosos como ainda vemos na atualidade.
Participante João Pedro: Sim, é de extrema importância trazer essas questões para debatermos em sala de aula para podermos entender melhor e não compartilharmos comportamentos racistas nem machistas.
Participante Romeu: Sim, por mais que a sociedade tenha melhorado em relação ao preconceito, algumas atitudes preconceituosas ainda persistem. Ensinando na escola, podemos tentar conscientizar outras pessoas.
Ainda sobre o preconceito e discriminação, pedimos que os alunos respondessem: durante a discussão dos contos, você percebeu a marginalização baseada na cor da pele e no sexismo?
Participante Bianca: Sim, o racismo era claro em cada um deles, tanto quanto o sexismo.
Participante Geane: Sim, pois todos os contos apresentavam algo baseado na cor e no sexismo.
Participante Jessica: Sim, como no conto Maria, em que a discriminação ocorria dentro do ônibus, pelos usuários do transporte coletivo.
Participante João Pedro: Sim, infelizmente, na sociedade brasileira sempre ocorreram casos de preconceito pela cor da pele e de sexismo.
Participante Romeu: Sim, os personagens dos contos se encontravam em situações vulneráveis e favoráveis à marginalização e ao sexismo.
Participante Thaís: Sim, na sociedade as atitudes são preconceituosas e discriminatórias, ocorre sempre, como, por exemplo: negro tem que trabalhar para os brancos, ter bocão é feio, bem como nariz chato e cabelos crespos.
O questionário segue com a pergunta: você acha que um trabalho com textos literários favorece discussões sobre direitos humanos e valorização do outro em sua diferença? Por quê?
Participante Geni: Com certeza. Essa temática sendo discutida dentro de sala de aula abre portas para mudanças de ideias e pensamentos. Mudar as ações e saber quando algo não está certo, saber se posicionar perante isso.
Participante Geane: Sim, porque fala de fatos semelhantes ao que muitas vezes vimos na realidade e quando isso é lido a gente se envolve muito mais.
Participante Jessica: Sim, porque sabemos que esses acontecimentos ainda estão presentes. Temos que alertar isso para as pessoas para conseguirmos ver mudança em nosso Brasil e entendermos que todos somos iguais como seres humanos.
Participante Romeu: Com certeza, pode não mudar 100% os pensamentos errados da pessoa, mas pode pelo menos fazer com que ela reflita um pouco sobre esses assuntos.
Participante Thaís: Sim, porque assim tanto os jovens como os adultos adquirem conhecimentos de outras culturas e conhecem também sobre outras religiões. Até porque a literatura vem para podermos também aprender com a história.
Sobre as perguntas seguintes – como você vê o papel da mulher negra na sociedade? Em que medida o trabalho desenvolvido com a obra de Conceição Evaristo ajudou a ter um olhar crítico? –os alunos responderam assim:
Participante Bianca: Vejo como algo poderoso. Os contos ajudaram a termos um olhar mais realista sobre a sociedade.
Participante Geane: A mulher negra precisa ter mais oportunidade na sociedade.
Participante Jessica: O papel da mulher negra na sociedade é muito discriminado, tanto nas ruas, como nas chances de empregos, que na maioria das vezes são subalternos. Os contos deixaram cientes disso.
Participante Romeu: Sinto que o lugar delas na sociedade ainda é instável, por serem mulheres e ainda mais por serem mulheres de cor. Esse tipo de obra nos ajuda a lembrar que isso ainda é um grande problema na sociedade.
Participante Thaís: No olhar do mundo, uma mulher negra é vista como empregada pobre e sem poder nenhum. Mas uma mulher, seja ela negra ou não, ela pode tudo. Nós, mulheres, merecemos igualdade. Na atualidade, já não se pode mais olhar para a mulher negra e relacioná-la como empregada doméstica, faxineira ou coisa parecida. O que todas as mulheres precisam, principalmente a mulher negra, é de oportunidades, de políticas públicas que garantam seus direitos.
Nesse sentido, os alunos participantes puderam se posicionar frente à leitura das obras discutidas em sala de aula e responderam às questões do questionário com desenvoltura e criticidade. Demonstraram, nas participações em sala de aula, nos debates e na escrita, que conseguiram atribuir significado por meio do texto literário; desse modo, acreditamos que o letramento literário foi relevante na vida dos participantes.
Mediante as nossas percepções, faz-se necessário que a escola amplie o estudo e a apreciação do texto literário em seu espaço educacional, favorecendo, assim, o envolvimento ativo do aluno/leitor com a obra e o autor na construção de conhecimento.
Com base nas obras literárias, nas atividades realizadas em sala de aula com os alunos desta pesquisa, foi possível perceber a interação entre os participantes na construção de conhecimentos, o que possibilitou ampliar o processo comunicativo nas relações sociais dos participantes.
Considerações finais
Consideramos que a escritora Conceição Evaristo contribui para uma tomada de consciência, pois, por meio da reflexão sobre o texto literário, foi possível perceber que é necessário o respeito ao outro. Nessa perspectiva, o projeto literário sobre a escrevivência, de Conceição Evaristo, como ela mesma esclarece, parte do lugar de sua fala, quer dizer, “a escrita de nós” ou a escrita das próprias vivências. Desse modo, a escrevivência de Evaristo foi uma luz para compreendermos a voz do outro e mergulharmos no universo de sua escrita, da escrita de mulheres negras e mulheres em geral, bem como para compreendermos a voz dos marginalizados da sociedade na totalidade.
Os contos selecionados para esta pesquisa nos possibilitaram uma jornada de leitura, uma vez que foi possível identificar as muitas faces do preconceito e da discriminação, bem como perceber que a pobreza, a falta de moradia e de um trabalho que oportuniza o sustento do indivíduo ou da família promovem o abandono social das pessoas. Assim, pelo trabalho realizado com a turma, em que o aluno/leitor se viu como parte integrante da história, houve muitas reflexões e relatos de suas vivências. Nesse diálogo em torno das questões identitárias voltadas para um viés multicultural e antirracista, os alunos participantes puderam fazer relatos de pessoas que sofriam atos de violência racial; às vezes, eram pessoas do mesmo bairro onde esses estudantes vivem; outras vezes, eram de pessoas próximas. Houve momentos em que essas narrativas emocionaram todos os presentes.
Os alunos participaram efetivamente desta pesquisa, das atividades propostas nas diversas etapas da sequência expandida aplicada neste estudo. Percebemos que os textos motivadores ajudaram muito nesse sentido, pois os preparam para um aprofundamento a respeito da leitura e da escrita. Para muitos dos participantes, era a primeira vez que realizavam a leitura de uma obra literária e isso despertou, na maioria, o gosto pela leitura, fato percebido por professores de outras disciplinas.
Referências
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Publicado em 08 de outubro de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
MOTA, Maeli Fernandes; COENGA, Rosemar Eurico. As escrevivências de Conceição Evaristo no Ensino Médio: um olhar sobre as práticas de letramento literário em um contexto de escola pública. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 38, 8 de outubro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/38/as-escrevivencias-de-conceicao-evaristo-no-ensino-medio-um-olhar-sobre-as-praticas-de-letramento-literario-em-um-contexto-de-escola-publica
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