Jogos, brinquedos e brincadeiras na infância
Idely Strumiello Soletto
Graduada em Pedagogia (FE/USP) e em Educação Física (EFE/USP), professora da Educação Básica da Smesp
O tema jogos, brinquedos e brincadeiras surge a partir do interesse de entender a infância, como se constitui e como é percebida na constituição do sujeito.
Considerar as crianças como sujeitos históricos e de direitos, atores sociais, produtores de cultura é resultado de uma construção social e está relacionada à visão de mundo que a sociedade faz de si e que constrói esses conceitos dentro de um tempo histórico. O reconhecimento de que as crianças constroem cultura se configura sob a ótica de sua dinâmica histórica, cultural e social.
A descoberta do corpo, a corporeidade, a necessidade da criança de conhecer e estabelecer relações e interações linguísticas vai estabelecendo uma consciência corporal e relacional pertencente ao indivíduo em sua totalidade. Essa consciência corporal e relacional revela sentimentos, emoções, experiências, vivenciadas como a possibilidade de construção de sua autoimagem, sua personalidade e identidade; em outras palavras, um desenvolvimento em sua integralidade, um redescobrir-se e descobrir novos mundos na infância por meio da atividade lúdica.
Segundo Agamben (2005), a infância é uma dimensão de experimentação da linguagem na qual os limites da linguagem não são buscados fora da linguagem, na direção de sua referência, mas em uma experiência da linguagem como tal, na sua pura autorreferencialidade: a linguagem como mensagem do iniciar-se no mundo, de onde falamos e como esses fenômenos nos falam, apropriar-se da linguagem para constituir-se como sujeito; assim seria o adentrar no mundo.
Hannah Arendt, quando cita a metáfora da máscara como metáfora do ofício, ligada ao modo como aparecemos no mundo, permite que nos identifiquemos como professores, médicos ou advogados. As profissões são uma espécie de máscara social, assim como a ideia da pessoa pública que faz ressoar sua Voz, na ideia da Persona que, com características da máscara, ressoa essa voz em diferentes tempos e espaços.
A máscara identifica como atuamos nos palcos do espetáculo da vida e do mundo; é algo singular, único, e assim apareceremos como docentes também únicos, singulares. Cada gesto, cada palavra tanto na vida como na escola importa e a escola é interpretada como o espaço cênico do docente.
A criança e o brincar
As crianças, em seus processos de constituição como sujeitos, seres humanos especiais, únicos, em diferentes contextos sociais e culturais, com suas potencialidades, capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais, têm motivado várias reflexões em torno do brincar.
Brincando é que a criança busca as informações desejadas, estabelece conexões, organiza suas ideias, faz verificações, experimenta sensações e é motivada pela necessidade interior, realizada pela própria atividade. Portanto, é muito importante que o adulto e docente valorize e propicie condições para as brincadeiras entre as crianças.
Brougère (2004) destaca as mudanças históricas que acompanham as práticas de jogar e brincar das crianças. Assim, em cada época e em cada lugar diferenciam-se os objetos e os usos que deles são feitos, tendo a indústria cultural papel importante nas escolhas e nas ações que envolvem jogos, brinquedos e brincadeiras.
Todo e qualquer brinquedo ou material pode ser utilizado, desde que proporcione à criança oportunidades reais de trabalho físico ou mental – um caixote, uma caixa, lápis de cor, uma coleção de objetos, uma corda, uma peteca ou quaisquer outros.
O brinquedo faz com que a criança, com sua imaginação e criatividade, transforme antigos significados de objetos quaisquer em outros significados ou funções. O brinquedo, na brincadeira, pode tudo transformar e modificar.
Agamben (2005), ao falar sobre o jogo, o coloca num lugar bem específico, da utopia. A invasão da vida pelo jogo, segundo o autor, tem como consequência a aceleração do tempo, paralisação e destruição do calendário (essencialmente ritmo, alternância e repetição); brincando, a criança se transporta para uma nova linha do tempo. Para compreender esses elementos, o autor constrói um paralelo entre o rito – que fixa a estrutura do calendário, a partir de um tempo que é ritmo e repetição – e o jogo – que altera e destrói essa estrutura. O jogo carrega na sua essência a esfera do sagrado; por meio dele, o homem conserva o passado – com o qual as crianças brincam. São objetos e comportamentos profanos que carregam uma dimensão temporal de uma vez e agora não mais.
As crianças gostam de brincar com objetos antigos porque eles têm essência eminentemente histórica. Desse modo, o que elas fazem é brincar com a história. O jogo transforma e fragmenta toda a estrutura em eventos e rompe a conexão entre o passado e o presente. Por sua vez, o rito acomoda a contradição entre passado e presente, anula o intervalo que os separa e reabsorve todos os eventos em uma estrutura sincrônica.Nesse caso, o rito é uma máquina que transforma diacronia em sincronia – ao contrário do jogo, que transforma sincronia em diacronia. Entretanto, se houvesse uma sociedade na qual o rito fosse tomado pelo jogo – como ocorre no país dos brinquedos de Collodi –, as horas poderiam correr como faíscas, e a alegria, a bagunça, algazarra seriam a diversão espontânea no universo do jogo.
A alegria de poder se expressar na linguagem universal – que é a linguagem corporal, a linguagem dos movimentos, da dança, das brincadeiras, dos gestos, dos pequenos detalhes – faz parte da construção pessoal infantil.
As brincadeiras inventadas, os jogos propostos ou inventados pelas crianças são vistos muitas vezes como territórios educativos, mas, sem que haja o controle de seus corpos, podem propiciar novas aventuras, descobertas, criações e abertura de espaços de livre expressão.
Muito importante é a reflexão de Patricia Prado: “aquilo que é transmitido pelos homens é também criado por eles no conjunto das relações” (Prado, 1999); nesse sentido, as relações entre as crianças pequenas também poderiam ser consideradas como geradoras de cultura.
Segundo Prado (1998), as brincadeiras são realizadas por adultos e por crianças, pertinentes aos dois mundos; a partir dessa afirmação pode-se pensar que, de uma forma ou de outra, essa relação produz “frutos culturais” tanto na fase adulta como na infância. Observar as brincadeiras das crianças pode nos fornecer muitas informações sobre o que de fato é construído e como algumas atitudes e fatos são reproduzidos e produzidos.
Deve-se estar atento não somente às palavras das crianças, mas também a todas as outras expressões: “Não reduzir a capacidade de expressão das crianças somente à fala, mas estar atento aos gestos, movimentos, emoções, sorrisos, choros, silêncios, olhares, linguagens sonoras e outras linguagens” (Prado, 1999).
Dessa forma, como afirma Patrícia Prado,
reconhecer essa criatividade e complexidade é, na verdade, reconhecer o direito das crianças à própria infância e à brincadeira livre, espontânea, em que as crianças não se limitam somente a se apropriar de uma parcela da vida experimentada ou observada, mas também cuidam de alargá-la, condensá-la, intensificá-la, conduzi-la para novos caminhos – caminhos que se revelam quando a criança emerge como protagonista e ganha a cena, voz e ouvidos (Prado, 1999).
Assim, cabe ao professor que está ou estará em contato direto com a criança retomar a sua dimensão brincalhona e valorizar o ser brincante que fomos e que as crianças nos provocam a ser, das e nas múltiplas linguagens, conforme ressalta Sandra Richter (2017, p. 14):
ser brincante da e na linguagem, a partir dos jogos mundanos com objetos, brinquedos, palavras, sonoridades, traços, silêncios, terra, água e muito mais, rompe com convenções de linguagem para abarcá-los novamente com a linguagem do corpo-empatia. Ser brincante implica uma experiência de linguagem exigente e interpeladora, pois somente quando nos deixamos abrir a novas interpretações – rupturas e religações – podemos levar adiante o devir de nós mesmos. Esse é o jogo: a alegria da expansão do pensamento. Jogar e brincar com sentidos alude à força criativa e inventiva daquilo que se faz pelo próprio valor, por nenhuma razão ou prévio “já saber”, mas por estar onde se está – aqui e agora, ou seja, ao “não saber ainda”. Essa é a experiência, essa é a brincadeira.
Retomar a dimensão brincalhona é se deixar envolver com o lúdico e com as diversas linguagens que envolvem a infância, compreendendo os significados e contextos dos jogos, brincadeiras e brinquedos e principalmente abrindo-se à espontaneidade das crianças.
A formação do professor, portanto, requer, além de retomar o seu “ser brincante'', sua espontaneidade da infância, um olhar e uma escuta apurados para deixar-se sensibilizar quanto aos desejos e necessidades das crianças, dando protagonismo e espaço para a livre expressão e as contribuições do universo infantil.
Quanto às práticas relacionadas ao brincar, quando definimos/escolhemos brinquedos, quando vigiamos as práticas, quando as controlamos e dirigimos, o brinquedo, as brincadeiras, os jogos acabam sendo permeados pelo poder.
Há, portanto, necessidade de adequação do brinquedo para que a criança seja levada a brincar com liberdade e livre de pressões exteriores.
Atualmente, é inconteste a importância das brincadeiras para a infância, porém o que geralmente se verifica nas instituições escolares é um brincar dirigido ou um “deixar brincar”, ambos pouco contribuindo para o prazer das crianças e sendo excessivamente pedagogizados, perdendo-se a ideia de prazer que está inerente a cada atividade da criança.
De forma geral, jogos e brincadeiras fazem parte da vida das crianças, seja nas famílias ou nas instituições educativas.
Em casa, os pais e outros adultos da família ensinam jogos, brincadeiras e cantigas, pensando no divertimento e na recreação das crianças. Nas escolas, as brincadeiras e jogos são materiais lúdicos, fontes de ricas experiências de culturas diversas; mas, quando as crianças não encontram algo que desperte sua atenção, elas acabam por inventar ou imaginar sua própria brincadeira, brinquedo ou jogo.
Considerações finais
Para que se possa colocar em prática todas as atividades brincantes para as crianças, é necessário planejamento cotidiano como processo reflexivo em que serão traçados, projetados, programados, elaborados roteiros para empreender uma jornada de conhecimento e interação para e com as crianças; flexível para que permita ao educador repensar, revisar buscando novos significados para sua prática pedagógica, mas que a criança tenha centralidade no processo.
As crianças brincam sempre que atividades lhes são proporcionadas na escola, na sala, no pátio, em casa ou na praça… e que os brinquedos estejam à sua disposição e ao seu alcance.
Que meninos e meninas brinquem, joguem, dancem, se expressem e cuidem de si e dos outros nas suas brincadeiras. Que possam brincar e esse brincar se torne uma forma de se expressar entendendo que têm direito garantido para fazê-lo.
Vivenciar e experienciar o brincar de maneira prazerosa e criativa colabora para o desenvolvimento infantil em todos os aspectos e permite ainda que as crianças vivam a infância de forma mais plena.
Uma criança que conhece a si mesma e ao seu corpo adquire domínio sobre seus movimentos e suas relações com o mundo externo.
O professor imbuído de sua máscara do ofício, consciente de que a educação pelo movimento – através de dança, brinquedo, brincadeira ou jogo –, constitui-se em peça fundamental na construção pedagógica que permite à criança resolver mais facilmente os problemas de sua escolaridade e a prepara, por outro lado, para sua entrada e existência no mundo adulto.
O brincar em jogos, brincadeira e brinquedos não podem mais ficar relegados a um segundo plano, sobretudo porque o professor constatará que esse material educativo não verbal constituído pelo movimento é por vezes um meio insubstituível para afirmar certas percepções e desenvolver formas de atenção, além ser um meio prazeroso de expressão no mundo que acolhe essas crianças e infâncias.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O país dos brinquedos. In: AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005.
ARENDT, H. A dignidade da política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
BROUGÈRE, G. Brinquedos e companhia. Porto Alegre: Artmed, 2004.
PRADO, P.; ANSELMO, V. A brincadeira é o que salva: dimensão brincalhona e resistência na creche/pré-escola da USP. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 46, 2020.
PRADO, P. As crianças pequenininhas produzem cultura? Considerações sobre educação e cultura infantil em creche - um olhar sobre as brincadeiras. In: I CONGRESSO PAULISTA DE EDUCAÇÃO INFANTIL (COPEDI) - Pensando primeiro na criança, 1998, Águas de Lindóia. Programas e Resumos, 1998.
PRADO, P. D. As crianças pequenininhas produzem cultura? Considerações sobre educação e cultura infantil em creche. Pro-Posições, Campinas, v. 10, 1999.
RICHTER, S.; BERLE, S. Pedagogia como gesto poético de linguagem. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 40, nº 4, 2015.
RICHTER, Sandra R. S.; SILVA, Adriana A.; FARIA, Ana Lúcia G. A educação encontra a arte: apontamentos político-pedagógicos sobre direitos e pequena infância. Zero-a-seis, Florianópolis, v. 19, nº 36, 2017.
Publicado em 15 de outubro de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
SOLETTO, Idely Strumiello, Jogos, brinquedos e brincadeiras na infância. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 38, 15 de outubro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/39/jogos-brinquedos-e-brincadeiras-na-infancia
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