Cabelo: currículo, chapinha e secador: imagens e narrativas de cabelo na perspectiva dos currículos em redes

Paloma Bernardo de Queiroz Pereira

Graduada em Pedagogia (UNIRIO), professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede privada do Rio de Janeiro

Maria Luiza Süssekind Verissimo

Doutora em Educação (ProPEd/UERJ), magister scientiae (CPDA/UFRRJ), licenciada em História (PUC-Rio), estágio pós-doutoral em Curriculum Studies (Universidade da Columbia Britânica, Canadá) com o professor emérito William Pinar, professora do Departamento de Didática e coordenadora do PPGEdu/UNIRIO

A partir de um incômodo pessoal e do sentimento de ausência da temática na universidade, os cabelos viraram uma questão insistente durante o curso de Graduação. Não sendo o foco do curso e nem dos professores que passaram pela minha jornada, o assunto se tornou um buraco negro na minha trajetória acadêmica. Então, curiosa, comecei a buscar disciplinas optativas que abordassem o assunto. Assim, dei início a uma pesquisa que se tornou tão íntima de meus princípios e convicções que senti a necessidade de contribuir com o meu ponto de vista junto às teceduras de textos, livros e vídeos que fundamentam e conversam com as linhas ideológicas que exponho aqui.

Influenciado pela escritora bell hooks, este trabalho discute o tema proposto em primeira pessoa. Pretendo deixar a linguagem acadêmica, difícil e complicada, e usar uma linguagem mais cotidiana e acessível na tentativa de tornar a leitura deste texto mais leve e inclusiva, trazendo você, leitor, para um diálogo com a pessoa humana do outro lado que sou eu.

Durante anos, cabelos de milhares de pessoas foram negados e escondidos por serem crespos ou "rebeldes" demais; cabelos chamados de feios, sujos e descuidados. Muitas vezes, é inadmissível ir a uma entrevista de emprego, à escola, a um casamento ou a uma formatura com o cabelo crespo natural. Usar o cabelo cacheado ou ondulado até hoje parece uma ofensa para quem vê. Frases como: "Como pode achar esse cabelo bonito?", "Um absurdo não ter penteado o cabelo", "Você é tão bonito, por que não se cuida?" são recorrentes e servem como ferramentas de discriminação aos que usam cabelos cacheados e/ou crespos. Essas pessoas passam a rejeitar seus fios, criando "uma sensação de inferioridade e de baixa autoestima" (Gomes, 2000, p. 47).

Trazendo essa conversa para o cotidiano, há um relato que pode ser encontrado no aplicativo de vídeos TikTok, em que a jovem "Nicole Karateca", cozinhando com sua mãe, é criticada por sua suposta falta de higiene. Nicole, então, responde em um novo vídeo, dizendo:

Como assim, gente, eu não estou descuidada, cara. Eu sou adolescente ainda. É claro que vão aparecer esses tipos de espinha, meu cabelo é assim... Eu penteio ele e ele volta pro jeito que é. [...] É esses tipos de comentários que me deixam triste. Eu sei. Obrigado pelo elogio, mas como assim eu preciso se cuidar mais? Eu já me cuido, eu escovo os dentes, penteio o cabelo, limpo o ouvido... coisa normal, natural. Então eu me cuido, minha gente. E ai, esses comentário que ofende. Como se eu estivesse descuidada, como se eu não tomasse banho e não penteasse o cabelo e não escovasse o dente [sic].  

Figura 1: Frame do vídeo de Nicole Karateca, com um comentário dizendo "Não liga. Você é muito bonita só tá precisando se cuidar eu também era aqui na vez de cuidar de mim eu cuidava da casa"

Fonte: Internet.

Nicole é julgada principalmente por seu cabelo estar solto e sem touca. Seu cabelo é considerado, pelos que comentam, como sujo, quando na verdade está ótimo e cuidado, segundo ela própria afirma em seu vídeo-resposta. Notamos que "o corpo humano é o primeiro motivo de estética, de beleza, possuidor de um elemento maleável que, tal como a madeira e o barro, possibilita diferentes recortes, detalhes e modelagens: o cabelo" (Gomes, 2017, p. 9). De filamento proteico com função de proteger a cabeça do calor e do frio, os cabelos se tornaram motivo de constrangimento e alvo de preconceito, mas, também, ele é um elemento construtor de identidade, de luta, de resistência e de currículo. É ancestralidade, evolução e desenvolução do nosso DNA: são saberes e histórias.

O que o cabelo tem a ver com a Pedagogia?

Nesta pesquisa serão analisadas e discutidas questões que englobam nossos cabelos e como elas se relacionam com a sala de aula. Partindo da visão da escritora e orientadora deste trabalho, Maria Luiza Süssekind, tomarei o campo do currículo como um campo de "produção coletiva, constituída de saberes pessoais, sociais e culturais, e enredados colocando diferentes conhecimentos em diálogo, enfrentando a monocultura do saber formal que está na base das injustiças cognitivas e sociais" (Merladet; Reis; Süssekind, 2020). Isso é defender currículos que vão além de um papel pré-determinado, padrão e único. Para isso, discutiremos esses currículos e essas redes interpessoais no chão da escola, suas interferências na formação de identidades e as consequências da autoestima no que se refere ao cabelo no desempenho escolar.

Mesmo que o intuito não seja entregar respostas, mas questionamentos e estranhamentos em relação ao tido como normal ou hegemonicamente estabelecido – partindo do pressuposto de que a "escola se silencia diante das atitudes discriminatórias" (Cruz, 2006, p. 13) –, acredito que um currículo humano, inclusivo e compartilhado seja um caminho para a criação de conhecimentos, identidades e sujeitos cidadãos que respeitam suas subjetividades e individualidades, além de promover uma escola antirracista, que garanta os direitos da sua comunidade.

Ao voltar no tempo em minhas memórias, lembro-me de dormir poucas horas à noite, já que precisava alisar o cabelo e deixá-lo o mais próximo do padrão e do estilo dos anos 2000. A moda era um cabelo extremamente liso, com mechas grossas e loiras e pontas totalmente picotadas. Mas gastar tanto tempo alisando, pintando e falhando miseravelmente para deixá-lo igual ao cabelo da Britney Spears ou da Hannah Montana – que nem eram cabelos de verdade, pois a personagem usava peruca – resolvi me rebelar e aderir a um estilo alternativo denominado emo. A atitude consistia em usar roupas pretas e vermelhas, saia xadrez, corpetes e franjas laterais que quase cobriam os olhos... mas com os cabelos lisos e pele muito pálida. Novamente, me saboto e caio em outro padrão. De novo alisando com prancha, escova progressiva, escova indiana, escova chinesa ou guanidina. "No Brasil, esse padrão ideal é branco, mas o real é negro e mestiço" (Gomes, 2017, p. 3).

Andei constantemente fugindo de minhas origens e realidade, camuflando meus cachos. Cedendo à pressão estética, adotei o estilo de Patrícia. Loiríssima, cabelo longo e liso, com cachos falsos do modelador de cachos nas pontas, sem contar as lentes de contato verdes, pois "o cabelo crespo sempre fez parte da imagética das representações raciais, sendo imprescindível na [...] construção de estereótipos negativos associados aos fenótipos negros" (Figueiredo; Cruz, 2002, p. 10 apud Oliveira, 2019, p. 4). Foi assim que ingressei na faculdade e assim me encontro na foto da carteira de identidade, simplesmente irreconhecível.

"Nosso cabelo é ruim, não é liso nem cacheado. É feio, é fofo. Não dá para usar". Minha mãe dizia e eu concordava plenamente. Que cabelo era esse que seus fios não eram lisos e também não formavam cachos perfeitos e brilhosos? Por que eu preciso prender o cabelo enquanto as pessoas de cabelos lisos eram completamente aceitas e consideradas normais?

A cada fase da vida me vi mudando de cabelo, tanto para me incluir quanto para me excluir propositalmente na intenção de me rebelar. Mudar a textura, o penteado, a cor e o formato podiam dizer mais do que eu poderia expressar em palavras. Estar triste ou estar feliz era um reflexo do corpo. No meu caso, em particular, se refletia em meu cabelo.

Cortar o cabelo, alisá-lo, raspá-lo, mudá-lo pode significar não só uma mudança de estado dentro de um grupo, mas também a maneira como as pessoas se veem e são vistas pelo outro; o cabelo compõe um estilo político, de moda e de vida (Gomes, 2000, p. 50).

Como exemplo, destaco a youtuber Laura Brito e seu vídeo, "Tentei me transformar em Luísa Sonza e fiquei igualllll". Nele, Laura compra um modelador de cabelo que deixa os fios ondulados. Esse tipo de textura é muito usado pela cantora pop brasileira Luísa Sonza e é a sua marca no meio artístico, por isso a youtuber Laura Brito coloca o nome da cantora no título de seu vídeo. Dito isso, ao dar o play no vídeo, percebemos que o cabelo de Laura é alisado quimicamente, então ela usa o modelador de cabelo para frisá-lo, provavelmente voltando à textura que seu cabelo tinha antes de ser tratado com alisantes. Ao falar isso em voz alta, o fato parece esquizofrênico, mas é completamente comum no Brasil. A "moda" capilar é totalmente instável. Entretanto, quando é a vez do "cacheado", o cacho aceito é o irreal, ou seja, o cacho que só um cabelo liso é capaz de ter ao fazer uso de modeladores de cachos.

Nos últimos anos, os movimentos de empoderamento tanto feministas como negros vêm lutando para normalizar os cabelos naturais ondulados, cacheados ou/e crespos. É uma guerra constante por espaço. Quem sou e quem quero parecer ser? "Ao longo da história, o corpo se tornou um emblema étnico e sua manipulação tornou-se uma característica cultural marcante para diferentes povos. Ele é um símbolo explorado nas relações de poder e de dominação" (Gomes, 2003, p. 174). O paradigma da estética capilar pode parecer fútil; no entanto, ao ser analisado com um olhar mais cauteloso, torna-se uma pauta que engloba riqueza de saberes e genocídios (Nascimento, 1978). Universalizar a estética branca como a bem-vista e como a única bela é deixar todas as demais estéticas que diferem da europeia branca de fora. "Quando não é destruída, a diferença foi 'capturada' e transformada no 'mesmo', pela catequização, pela língua, pelos costumes. A diferença foi negada em seu caráter 'multi e plural'" (Cruz, 2006, p. 4), assim como aconteceu com Laura, que precisou alisar para depois cachear, deixando seu cabelo ainda mais longe do natural.

Ao fazê-lo, povos e histórias estão sendo colonizados. Os cuidados e os tratamentos com os cabelos de texturas não-lisas são passados de geração em geração, contendo saberes adquiridos de séculos que vão de acordo com suas geografias e suas culturas. Tranças, turbantes, dreadlocks são historicamente e socialmente constituídos, já que não nasceram de meros modismos, por isso é desvalorizar saberes que não se encaixam no saber "universal" cartesiano. Segundo Queiroz (2000, p. 28), "o estado dos cabelos pode revelar a trajetória de vida de uma pessoa, sua condição de existência e o momento vivido no interior de um determinado grupo social" (Gomes, 2000, p. 49).

Não serei mentirosa afirmando que amo meu cabelo todos os dias e que não julgo a estética alheia, rejeitando o diferente. Ainda passo por momentos em que prendo meu cabelo com vergonha de seus traços. A desconstrução é um movimento contínuo, não linear. Todos os dias preciso manter a escolha de continuar com a textura natural. É uma forma de passar uma mensagem de autoaceitação e de resistência contra hegemônica, uma vez que "os cabelos rebeldes, soltos e descuidados podem expressar independência ou mesmo relutância às normas sociais, como é o caso de líderes religiosos, profetas, rastafaris" (Gomes, 2000, p. 49, grifo da autora).

Por outro lado, quando tenho recaídas e aliso o cabelo por entretenimento, tomo uma surra de elogios. "Nossa, ela se arrumou hoje". É o que mais escuto. Entretanto, eu me arrumo todos os dias e geralmente gasto muito mais tempo arrumando meu cabelo cacheado do que quando o aliso. Não obstante, ao lavar o cabelo sei que as madeixas escondidas ali não terão olhares de aprovação. "Essa festa é informal. Olha ela, por exemplo, que nem penteou o cabelo para vir" – foi uma frase que já ouvi, mesmo tendo arrumado o meu cabelo. São palavras que doem por motivos de ego e doem por saber que corpos e "corpas" de cabelos crespos são milhares de vezes negados e ridicularizados. Cabelos são violentados e assassinados pelas ruas todos os dias. Destaco que o cabelo não é o único fator de discriminação, mas um deles.

Trazendo a conversa para o chão da escola: ao fazer parte da sociedade e sendo um pilar essencial para o seu funcionamento, a escola também produz a hegemonia, impondo "padrões de currículo, de conhecimento, de comportamentos e também de estética. Para estar dentro da escola é preciso apresentar-se fisicamente dentro de um padrão, uniformizar-se" (Gomes, 2000, p. 45).

É comum cortar ou raspar os cabelos por ocasião dos ritos de passagem, o que também é comum entre nós quando do ingresso na universidade, em prisões, em instituições militares ou religiosas. Há, também, uma relação entre cabelo, poder e potência sexual. Por isso, cortá-lo ou raspá-lo pode equivaler, simbolicamente, à castração. Essa é a condição dos novatos, dos recém-admitidos em determinadas instituições (Gomes, 2000, p. 49).

Por fazer parte dessa cultura que demoniza as diversidades, a escola é mais do que um local de padronizações: um lugar e meio padronizador. Todavia é importante ressaltar que os padrões não são suficientemente limitantes. As pessoas acham brechas para expressar suas individualidades e posicionamentos. Nas escolas não é diferente, "mesmo com a intenção niveladora dos uniformes, as estudantes se apresentam com corpos envergados para esconder os seios, calças folgadas pra disfarçar a bunda, blusas da farda escolar amarradas pra exibir a barriga negativa" (Oliveira, 2019, p. 5). Dentro das instituições escolares há pessoas descobrindo seus corpos(as), suas individualidades e construindo suas identidades. É comum ver atos de micro rebeliões contra o sistema homogeneizador, mesmo que também haja a intimidação hegemônica do outro lado.

Defendo que a forma e a textura de um cabelo podem interferir no êxito escolar. Perder horas alisando e escondendo o cabelo, perdendo aulas e com a autoestima baixa, são perdas à criança e ao adolescente que precisam de um esforço mental e de um esforço emocional maiores para seguir estudando.

Figura 2: Postagem na rede social Twitter

Fonte: Twitter.

Uma branca querendo falar de racismo

Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagem ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam (Almeida, 2018, p. 25).

A supremacia branca vem tentando, ao longo dos anos, inferiorizar os não brancos, tanto físico como epistemologicamente (Cruz, 2006). "Foi a comparação dos sinais do corpo negro [...] com os do branco que serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais" (Gomes, 2000, p. 21), impondo "ao negro uma série de conotações negativas que o afetam social e subjetivamente" (Gomes, 2000, p. 49), assim como esteticamente são exóticos e irracionais os saberes não brancos caracterizados como emocionais, místicos e não científicos. É uma linha ideológica baseada na razão cartesiana quando para ser ciência precisa ser racional, pois as emoções são "humanas demais". Sabedorias milenares como, por exemplo, a da magia natural são consideradas extraordinárias. Dependendo do contexto social e histórico, uma bruxaria em seu sentido negativo.

Desse modo, o conhecimento da ciência moderna postula ser o único conhecimento verdadeiro, sendo profundamente hierárquico e maniqueísta em sua perspectiva monocultora (Santos, 2004, p. 777). Trata-se de uma forma de pensamento que, através de linhas imaginárias, divide o mundo e todas as coisas, numa polarização (Santos, 2010, p. 33), assim criando hierarquias de credibilidades (Becker, 1963) que organizam o mundo crível e visível, valores, atitudes, sentimentos belos, aceitos e válidos, e seus desvios (Süssekind; Santos, 2016, p. 278).

A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (Dussel, 2005, p. 64), entendendo que as outras formas de viver são "primitivas, bárbaras e rudes" e que, por isso, precisam ser "civilizadas". Como parte desse processo civilizador, "a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização" (Dussel, 2005, p. 64).

Essa dominação produz vítimas em virtude de diferentes formas de violência civilizatória, interpretada como um ato inevitável e sacrificial, seja esta violência física ou deslocada como coação interna (Süssekind; Pereira, 2020, p. 504).

Universalizando a cultura do dominador "produzimos um 'Outro' desqualificado, não há possibilidade de diálogo, apenas a afirmação sutil de que não há espaço para o reconhecimento e respeito às diferenças, pelo contrário, culpamos a vítima" (Süssekind; Pereira, 2020, p. 501). Homogeneizar é "um movimento que potencializa a hierarquização da diferença, o apagamento dos conhecimentos outros, a invisibilização da diversidade e o silenciamento das experiências locais. Coloniza as práticas" (Prestes; Süssekind, 2017, p. 13).

Em minha trajetória pessoal e acadêmica, dei o máximo para me esquivar do tema do racismo e de qualquer outro que tivesse uma tangente racial. Sempre foi muito complicado, já que em meu meio relacional há pessoas conservadoras e racistas. Eu não teria com quem conversar e debater, já que o diálogo se tornaria um monólogo de ódio e ignorância. Contudo, a pauta dos cabelos se tornou muito forte para mim. E concordo com Gomes (2000), de que, "ao falarmos sobre o corpo e cabelo, inevitavelmente, nos aproximamos da discussão sobre identidade negra". Mesmo entrando na universidade e vendo que eu poderia discutir minhas ideias com quem tinha estudo e conhecimento do assunto, fiquei insegura, pois só saberia na teoria. Sou uma mulher de pele branca, por isso nunca fui discriminada por meu tom de pele. Não sofro racismo cotidiano. No entanto, o racismo não é um problema só dos negros. Ele é estrutural e mexe com toda a sociedade em todos os níveis. Não adianta apenas o oprimido se rebelar. Os opressores ou potenciais opressores precisam ter conhecimento para entrar nessa luta, uma vez que "o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo" (Almeida, 2018, p. 40). 

Quando os opressores se sentem ameaçados, acusam os oprimidos de quererem subverter a ordem, afirmando que eles querem virar opressores. O Movimento Sem Partido defende a ideia da universalidade; assim, quem for contra isso está impondo uma ideologia. O universal é uma forma de imposição, como já dito neste trabalho. Eles não estão errados, visto que a "questão racial sempre será política e ideológica, quer queiramos ou não, pois se contrapor ao racismo é contrapor práticas, posturas e ideologias. Exige mudança de comportamento" (Gomes, 2017, p. 12). Assim como a implementação da epistemologia "universal" é imposição ideológica, uma educação antirracista também será. Mas é urgente a decolonialidade proposta pela Lei n°10.639/03 (Brasil, 2003). Quando temos em mente que "as instituições são racistas porque a sociedade é racista" e que "a única forma de uma instituição combater o racismo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas", almejamos alcançar esse objetivo.

Mudanças radicais para a justiça nas sociedades dependem, em parte, de mudanças radicais feitas em universidades e escolas – geralmente realizadas por movimentos sociais liderados por estudantes –, mas lembremos que esses estudantes são inspirados por teorização/escrita/conscientização crítica feitas por professores – muitos professores dentro da universidade ou escola, mas também muitos fora da universidade ou escola que ativam uma educação de raiz, um projeto de autodeterminação e amor. Isso é tão vital para o trabalho curricular e digno de nossa compreensão como qualquer outro meio de produção do conhecimento (Baszile; Süssekind; Porto; Shaw, 2017, p. 173).

Conclusão

Ao perguntarem o tema do meu TCC e ouvirem "cabelo" como resposta, a expressão é de confusão e desentendimento. "O que 'cabelo' tem a ver com currículo escolar?", questionam. A pergunta que eu faço é: "Como ou por que os cabelos ainda não são uma pauta relevante na escola?".

As instituições escolares são organismos vivos. Seus espaços físicos são preenchidos por pessoas humanas perfeitas em suas imperfeições. Seres humanos que passaram por uma história individual e por um contexto histórico coletivo. Cada um tem ancestralidades, saberes e virtudes diversas. Sem isso, tudo se resume a tijolos empilhados que abrigam matéria morta, como diz a música do Pink Floyd.

Nas escolas, além do conhecimento adquirido e construído pelo ser humano ao longo de sua existência, há estudos e pautas que regem a comunidade humana como um todo. Elas são indispensáveis! "Lamentavelmente, a escola não aparece entre esses espaços de revalorização da estética, do corpo e do cabelo crespo" (Gomes, 2003, p. 173). As consequências disso são graves e eternas, quando em numerosos relatos há "experiências de preconceito racial que envolvem o corpo, o cabelo [...], que ficam guardadas na memória do sujeito. Mesmo depois de adultos, (...) as marcas do racismo continuam povoando a sua memória" (Gomes, 2003, p. 176).

O desafio está em identificar as linhas abissais, desnudar e desconstruir os mecanismos da necropolítica e permitir espaços tempos para ouvir, sentir, registrar as vozes e reconhecer as revoluções subalternas em nossos cotidianos escolares como um compromisso político (Süssekind; Pereira, 2020, p. 504).

A ideia de currículos serem feitos a partir dos cotidianos como proposta pedagógica tem o intuito de fazer um "currículo a partir de uma matriz que reconhece que as desigualdades raciais provocam desigualdades na escolaridade de sujeitos negros e, por isso, têm buscado entender o que se quer e o que se espera" (Gomes, 2020, p. 4). O compartilhamento de "conhecimento deve ter sua base na valorização da historicidade, mas também na possibilidade de refletir sobre o que acontece hoje na ousadia de projetar futuros" (Gomes, 2020, p. 3). 

Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza. Temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. As pessoas querem ser iguais, mas querem respeitadas suas diferenças. Ou seja, querem participar, mas querem também que suas diferenças sejam reconhecidas e respeitadas (Süssekind; Santos, 2016, p. 281).

As alternativas para encontrar soluções estão na

superação das lógicas monoculturais ou modos de produção de inexistências, propostos por uma sociologia das ausências (Santos, 2004) parece-nos ser um caminho para a revalorização dessas experiências que, a partir do seu compartilhamento, podem ser ampliadas e tornadas concretas como projeto de futuro (Merladet; Reis; Süssekind, 2020, p. 4).

"Viver o presente, construindo nele, cotidianamente, uma educação solidária e democrática, educando na cidadania, na solidariedade, pode nos permitir viver uma educação solidária e democrática" (Merladet; Reis; Süssekind, 2020, p. 8), pois "só há morte e disputa quando não há consciência de classe, não há solidariedade e não há compaixão" (Süssekind; Pereira, 2020, p. 497).

Mais uma vez destaco que o orgânico das relações dentro das escolas não é uma abstração teórica freiriana. Todos os dias

os educadores também lidam com o corpo de seus alunos e de seus colegas. Esses corpos são tocados, sentidos. A relação pedagógica não se desenvolve só por meio da lógica da razão científica mas, também, pelo toque, pela visão, pelos odores, pelos saberes, pela escuta. Estar dentro de uma sala de aula significa colocar a postos, na interação com o outro, todos os nossos sentidos (Gomes, 2003, p. 173).

Será que nossos cabelos são irrelevantes para a abordagem pedagógica?

Pensar e repensar na Pedagogia vai muito além de conteúdos em Língua Portuguesa e equações matemáticas. Quando nossos cabelos, nossos penteados, nossas raízes e os motivos pelos quais precisamos delas em nossas produções intimas de identidade e de resistência entram em pauta, as abordagens são outras, pois

possibilitam uma infinidade de aprenderes que vão além dos textos oficiais, pois professores apropriam-se das ocasiões e das possibilidades encontradas nas escolas e tornam-se autores, autônomos e legítimos produtores de conhecimentos nos espaços das diferentes escolas por onde passam. Produzem cotidianamente, currículos aproveitando as diferentes ocasiões que aparecem em suas salas de aula para criar o que a circunstância pede e possibilita (Merladet; Reis; Süssekind, 2020, p. 7).

Entendendo ou procurando entender as pluralidades, o sistema vai girando de acordo com as novas demandas e pautas. Somos capazes de burlar o sistema, como já foi feito tantas outras vezes, até mesmo no sentido negativo. Mas a busca por mudanças deve acontecer de uma perspectiva do não-colonizador. Muitas vezes até a desconstrução é realizada a partir do olhar do dominador.

Descolonizemo-nos baseados nos saberes ancestrais, ditos e tidos como não científicos. Trazer o sujeito da luta como seu próprio meio, porquanto,

independentemente da raça, do credo, da cor, do status de classe, da sexualidade – é vital para nossa busca desafiar-nos a nos tornarmos seres humanos mais humanos, em todos os nossos diferentes, mais relacionais, modos de sermos humanos (Süssekind, 2017, p. 173).

Isso posto, que a escolha de como usar os cabelos sejam escolhas individuais, não ligadas às possibilidades de encaixes em lugar nenhum. Chega de passar horas no salão gastando dinheiro para ser quem não somos! Chega de sentimento de vergonha causado constantemente por raízes cacheadas e crespas que lembram de uma realidade outra! Na verdade, não apenas lembram, mas denunciam aos outros a linda história do povo preto.

Alisar, utilizar perucas e outros meios de enfeites de cabelos não é proibido nem deixa ninguém menos "dona de suas verdades". A luta expressa neste texto é para a aceitação e a normalização dos cachos nem sempre brilhosos e/ou sedosos. É trazer para o chão da escola essas pautas que no decorrer da formação são frequentemente silenciadas e excluídas da ementa.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

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Publicado em 29 de janeiro de 2025

Como citar este artigo (ABNT)

PEREIRA, Paloma Bernardo de Queiroz; VERISSIMO, Maria Luiza Süssekind. Cabelo: currículo, chapinha e secador: imagens e narrativas de cabelo na perspectiva dos currículos em redes. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 4, 29 de janeiro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/4/cabelo-curriculo-chapinha-e-secador-imagens-e-narrativas-de-cabelo-na-perspectiva-dos-curriculos-em-redes

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