Aprendendo com os povos originários: ciências e taxonomia sob uma perspectiva cultural
Emili Amaral Nunes Botelho
Mestra em Ensino de Educação Básica (PPGEB/UERJ), especialista em Ensino de Biologia (FFP/UERJ), licenciada em Ciências Biológicas (Unisuam), professora da rede particular
Maria Beatriz Dias da Silva Maia Porto
Doutora e mestra em Física (UFRJ), bacharel e licenciada em Física (UERJ), professora da UERJ
A integração da cultura dos povos originários nas aulas de Ciências do segundo segmento do Ensino Fundamental, em temas como a classificação dos seres vivos e a taxonomia, oferece uma oportunidade enriquecedora para o aprendizado. Além de proporcionar contato com práticas e saberes tradicionais, essa abordagem permite que os alunos compreendam a biodiversidade e o meio ambiente de forma ampliada, considerando diferentes perspectivas culturais.
Este trabalho apresenta um relato reflexivo da prática pedagógica que surgiu em uma aula de Ciências de uma turma de 8º ano em uma escola particular localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Durante uma lição sobre classificação biológica e taxonomia, foi solicitado aos alunos que trouxessem coleções pessoais para explorar o conceito de táxon. De acordo com Amorim (1994), "táxon (do grego taxi, disposição, boa ordem, ordenação) é qualquer agrupamento de organismos biológicos, construído com base em uma definição". Após a apresentação do conceito, os alunos foram incentivados a criar critérios de classificação para suas coleções, e essa atividade despertou discussões sobre diversidade e organização.
Em determinado momento do trabalho de classificação das coleções, um aluno da turma trouxe a seguinte reflexão:
Professora, estudar Ciências nos ajuda de muitas formas e em muitas coisas em nossas vidas. Já que estamos falando de diferentes grupos, eu conheci um pajé na última viagem que fiz com meus pais. E ele me disse que nós enxergamos o mundo de uma maneira diferente da cultura deles e classificamos a vida de forma muito complicada. E não respeitamos sua diversidade desde sempre (Aluno, 2024).
Esse relato gerou um debate sobre a importância da cultura indígena e sua contribuição para a sociedade. A reflexão levou os alunos a considerar como a história e a realidade brasileiras poderiam ter sido diferentes se os povos originários tivessem sido respeitados como protagonistas.
O objetivo deste trabalho é proporcionar aos alunos uma visão mais crítica e respeitosa da cultura indígena, promovendo o entendimento da biodiversidade por meio do conhecimento tradicional. Espera-se que essa abordagem desenvolva nos estudantes um olhar crítico sobre a História, incentivando o respeito cultural e uma compreensão ampliada do meio ambiente.
A atividade é fundamentada em normativas como a Constituição Federal Brasileira de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996, a Lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino das culturas afro-brasileiras e indígenas, e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que orienta o desenvolvimento de competências interculturais. Essas diretrizes reforçam a importância de inserir a cultura indígena nas aulas, promovendo uma educação que valoriza a diversidade.
As próximas seções detalharão a metodologia e os resultados da atividade.
Metodologia
Após a contribuição do aluno, a professora de Ciências passou a integrar a cultura dos povos originários nas aulas subsequentes. Com esse propósito, é proposta uma análise crítica sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, contextualizando e discutindo a História e cultura dos povos originários. A atividade inclui leituras de material elaborado pela docente e de textos de autores indígenas, oferecendo aos estudantes a oportunidade de conhecer a perspectiva desse povo. A seguir, apresentamos o conteúdo fornecido pela professora aos alunos em formato de texto acadêmico.
A chegada dos portugueses
A chegada dos portugueses ao Brasil trouxe consigo a exploração das riquezas naturais, a colonização do território e a violência contra os povos indígenas, seus rios e seu modo de vida, moldando a história de maneira distinta daquela que poderia ter sido. Como relata Nadil Krenak, indígena da tribo Krenak:
Nosso povo habitava por ali: entrava por Guimarães, Itabira, mas quando se lembrava do Rio Doce voltava pra cá, porque o Rio Doce era o Pai Nosso, que fornecia comida e suporte pra nossa vida, ele era nosso pa trimônio. E, por isso, nós não tínhamos limite. No passado, nosso povo saía da aldeia Krenak e vinha a pé pelas matas, vinha pra cá, ficava aqui algum tempo caçando. Então eles seguiam viagem e ficavam em outros lugares. E, depois, voltavam para o território Krenak. Como antes não existiam donos, o lugar era livre para os índios andarem, caçarem e pescarem. E, hoje, já não se faz mais isso, porque se um índio for a um lugar caçar, os brancos não deixam, porque eles são os donos agora. Quando os brancos vieram pra cá acabou isso tudo, foram sendo donos da Terra. O ín dio ficou sem o seu espaço para caçar e pescar (Nadil Krenak em Krenak; Itamar, 2009).
De acordo com a professora Maria Regina Celestino Almeida (2010), antes da invenção do Brasil, neste território viviam cerca de 2 a 4 milhões de habitantes, segundo estimativas de John Manuel Monteiro, estudioso de negros e indígenas na terra brasileira. Esses habitantes, verdadeiros donos da terra que hoje chamamos Brasil, viviam de acordo com seus costumes e cultura, sem interferência externa. Cuidavam da terra de maneira sustentável e praticavam a medicina de forma natural, muito antes desses conceitos serem formalmente introduzidos.
O território brasileiro era ocupado por diversos grupos indígenas, que estabeleciam suas comunidades em respeito e harmonia com o meio ambiente. Com a chegada dos portugueses em 1500, o solo foi tomado, e os indígenas passaram de protagonistas a coadjuvantes, tendo sua história gradativamente apagada para dar lugar à narrativa europeia.
Segundo autores indígenas, como D. Munduruku e C. Wapichana (2019), a resistência dos povos originários à escravidão e à imposição dos portugueses se manifestou em confrontos e lutas. Na atividade foi realizada a leitura de um trecho da obra Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas, desses dois autores.
Quando, em tempos antigos, os portugueses tentaram escravizar os indígenas estes não aceitaram aquela imposição. Trabalhar, para o português colonizador, era acumular. Acumulação é uma das dimensões do futuro. Acumula-se, poupa-se, guarda-se com a intenção de utilizar depois, amanhã (Munduruku; Wapichana, 2019, p. 40).
Quando da chegada dos portugueses, houve muitas mortes, muita dor e muitas perdas em vários sentidos. De acordo com Kopenawa e Albert, sendo Kopenawa índio de origem Yanomami,
no começo, seduzidos pela beleza da floresta, mostraram-se amigos de seus habitantes. Em seguida, começaram a construir casas. Foram abrindo roças cada vez maiores para cultivar seu alimento e plantaram capim por toda parte, para o seu gado. Suas palavras começaram a mu dar. Puseram-se a amarrar e a açoitar as gentes da floresta que não seguiam suas palavras. Fizeram-nas morrer de fome e cansaço, forçando-as a trabalhar para eles. Expulsaram-nas de suas casas para se apoderar de suas terras. Envenenaram sua comida, contaminaram-nas com suas epidemias. Mataram-nas com suas espingardas e esfolaram seus cadáveres com facões, como caça, para levar as peles para seus grandes homens (2015, p. 252).
Assim, quando os portugueses chegaram, houve o silenciamento das vozes que antes protagonizavam a história neste Brasil, antes mesmo de ele ser conhecido assim. Segundo Campos, estudioso dos povos originários, houve
silenciamento da expressão oral e perda de conhecimentos e de formas de conhecer o mundo dos grupos humanos habitantes há séculos na América, além de outros grupos, obrigados pela violência a deixar seus territórios, seus modos de viver e expressar (1998, p. 72).
Com a chegada da cultura europeia, a história dos povos originários passou a ser escrita através da força, da imposição e da crueldade. O trecho a seguir é de autoria de Daiara Tukano e corrobora o que vem sendo abordado:
Aos povos originários foram impostos a língua, os costumes e os saberes do colonizador [...]. A cultura do colonizador nos foi imposta sob ameaça de morte para ser minimamente reconhecidos como humanos, e nos reservou apenas os espaços periféricos sempre em desvantagem diante daqueles que tomaram nossas riquezas e continuam se reservando o po derio econômico e cultural (Tukano, 2019).
Ao final da leitura, deve ser esclarecido que muitos pesquisadores e educadores lutam, hoje, em busca de um novo olhar para a história desses povos, um olhar de respeito, de zelo e de cuidado. Que esse desafio é lançado a nós, docentes, discentes e toda a sociedade, para que cada povo tenha sua voz e o direito de contar a sua história. E essa parte da atividade é encerrada com a leitura e com comentários acerca do trecho a seguir, escrito por Paulo Freire:
Todos os povos têm cultura, porque trabalham, porque transformam o mundo e, ao transformá-lo, se transformam. A dança do Povo é cultura. A música do Povo é cultura, como cultura é também a forma como o Povo cultiva a terra. Cultura é também a maneira que o Povo tem de andar, de sorrir, de falar [...]. Cultura são os instrumentos que o Povo usa para produzir. Cultura é a forma como o Povo entende e expressa o seu mundo e como o Povo se compreende nas suas relações com o mundo. Cultura é o tambor que soa pela noite adentro. Cultura é o ritmo do tambor. Cultura é o gingar dos corpos do Povo ao ritmo dos tambores (1982, p. 83-84).
Aprendendo com os povos originários
Após a revisão crítica e as leituras sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, tradicionalmente ensinada de forma ingênua nos anos iniciais do Ensino Fundamental, e considerando o comentário trazido pelo aluno do 8º ano acerca do que foi dito pelo pajé sobre as diferenças culturais existentes e das visões de mundo, a professora busca fortalecer o conhecimento dos estudantes sobre a cultura indígena. O objetivo é explorar quanto se pode aprender com esses povos e, em particular, como sua relação com a natureza pode enriquecer as aulas de Ciências.
Dando continuidade à leitura dos fragmentos de textos de autoria dos povos originários, a professora destaca aos estudantes que estudos revelam que a cultura indígena é riquíssima e que ensina grandes valores. Os indígenas se relacionam com sua comunidade e com o ambiente de forma muito diferente da sociedade majoritária. Sobre esses aspectos, são realizadas novas leituras dos indígenas Mundukuru e Wapichana. Mais uma vez, um excerto do livro Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas é enfatizado.
Viver o presente é olhar para si a cada dia e saber a necessidade daquele momento para o bom andamento da comunidade, e fazer o que for bom para ela e não para si. É dar mais atenção ao coletivo do que ao indivi dual. E isso exige um esforço e um treinamento do corpo e da mente tão intensos que torna o jovem indígena uma pessoa integral (Mundukuru; Wapichana, 2019, p. 40).
Em seguida, a professora promove uma discussão sobre o estilo de vida indígena e o compromisso com a comunidade. Estudar a cultura dos povos originários abre portas para a decolonização de práticas que, de outra forma, segregam, silenciam e apagam pessoas e histórias.
O próximo texto, de Wajãpi Ajãreaty, exemplifica o respeito indígena pela natureza e é lido e discutido com os alunos:
Antigamente a casa falava, o fogo falava, a cerâmica falava. E aí nosso dono tirou a fala deles, por isso não ouvimos mais. Por isso que hoje em dia as plantas, as casas, o machado, a panela, a massa de mandioca e a nossa comida não conversam mais. Acho que nossas comidas e nossas plantas falaram alguma coisa que o nosso dono não gostou e então ele tirou a fala delas. As caças também falavam, todos falavam. A floresta também falava antigamente. Se a gente vai derrubar a árvore, ela grita: "Ai!". Se a gente vai matar a caça, ela grita também: "Ai, não me mata!". Por isso que eu acho que o dono deles falou para Janejara (nosso dono) retirar a fala deles. Eu acho que foi assim, mas não tenho certeza. Até mandioca também gritava antigamente. Quando a gente vai arrancar ela da terra, aí ela grita: "Aaaai!". É por isso que hoje em dia, antes de arrancar a mandioca, temos que conversar com ela para poder puxar: "Cuidado, eu vou te arrancar". Aí que ela vai saber que a gente vai arrancar, minha mãe sempre falou. Todas as plantas que estão em uma roça nova a gente tem que conversar com elas antes de tirar, para elas não ficarem chatea das, porque têm seus donos [e eles também podem ficar chateados] (Ajãreaty, 2017).
Ainda na mesma aula foi abordado que as práticas colonizadoras trouxeram muita dor, mas não apagaram as histórias que eram passadas entre as gerações e como os povos deveriam manter sua comunidade. Os indígenas respeitam o dia e a noite pela sua importância e tudo que podem oferecer; a orientação dos mais velhos, pois eles trazem a sabedoria ancestral; cuidam dos animais e das plantas, pois são seus recursos e devem ser sempre respeitados; reconhecem a importância dos rios, é nesse lugar que a vida nasce e se mantém, além de levar muitas histórias, dores, alegrias e esperança.
A leitura do fragmento que segue, que traz parte da rotina da tribo Pataxó, também foi debatida por estudantes e professora:
Saída da noite: 05h30 às 06h00. As famílias levantam cedo porque o raio do Sol não pode passar por cima da gente. Com os raios do Sol, os mais velhos benzedores conversam com as plantas. É hora de tomar empres tadas as partes da planta para fazer remédio. A manhã: 06h00 às 10h40: A partir das seis horas a natureza já começa a se movimentar. Os orvalhos sobem para o ar. Os mais velhos diziam que beber o orvalho dá força para nosso corpo, porque é a água da noite. É hora de as pessoas contarem e liberarem seus sonhos da noite. Tudo se movimenta na manhã, todos os caminhos se movimentam, até os caminhos que o céu tem, pois é hora de o Sol caminhar. Tinindo do Sol: 10h40 às 12h00: Na natureza, tudo está descansando como os pássaros, os bichos, os rios as árvores, a terra, o céu, ou seja, tudo que é vivo. O descanso é um horário sagrado para a natureza. A quebrada do tinindo do Sol: 12h00 às 13h00: A terra fica quente, saindo vapor e o ar fica um pouco parado e quente. O vento também dá uma descansada. A tarde: 13h00 às 14h00: Hora de sentar na sombra para fazer artesanato. Tardinha caída: 16h30 às 17h30: É a hora do respeito pela natureza, pois é o momento de o Sol ir embora e descansar. Hora de conversar com as plantações. A caída do dia - boca da noite: 17h30 às 18h30: É o momento de encontro da aldeia, pois as pessoas já sabem que a fogueira é a escola da aldeia, é onde saem histórias de antigamente. A noite caída: 18h30 às 19h30: Nessa hora a brisa rasteira vem chegando dos rios e da mata, a escuridão já começa a ficar com força e o céu mostra a sua cultura através das estrelas. A noite fechada: 19h30 às 23h30: As árvores já não balançam mais, estão dormindo. E alguns apreciam as estrelas para ver os segredos que os velhos ensinam. Noite velha: 23h30 às 2h00: Apenas alguns seres estão acordados. Quebrada da madrugada: 2h00 às 04h00: É nessa hora que fazemos grandes viagens através dos nossos sonhos buscando força e sabedoria. Barra do dia: 04h00 às 05h30: O dia e a claridade vêm abrindo no céu (Pataxó, povo, 2012b).
Nesse momento, enfatiza-se que, embora não possuam a tecnologia avançada que predomina na sociedade majoritária, os indígenas vivem de maneira organizada e com profundo respeito pelos recursos naturais. Como afirma Munduruku, “cada coisa existente, seja ela uma pedra, uma árvore, um rio ou um ser humano, é possuidora de um espírito que a anima e a mantém viva” (Munduruku, 2016, p. 27).
A turma leu nessa fase um trecho de Munduruku e Wapichana que explora a visão do homem branco em relação à natureza:
O ser humano se colocou acima da natureza e passou a contar a história tendo como referência a si mesmo e deixando os outros seres vivos à margem. As consequências disso estão sendo notadas, diariamente, por meio de teorias equivocadas a respeito dos outros seres humanos que não aceitaram essa visão dominadora e truculenta (Munduruku; Wapichana, 2019, p. 35).
Com base nas discussões, os estudantes foram levados a refletir sobre a interferência humana na natureza e os impactos potenciais na sociedade. Nessa abordagem, reforça-se a visão integral da educação e a valorização das experiências culturais e ambientais indígenas como fonte de aprendizado e inspiração.
Ao término da aula, sugeriu-se que os estudantes aplicassem os valores discutidos, integrando-os a ações diárias que respeitem a sociedade, o meio ambiente e todos os povos. A professora destacou a importância de uma educação integral, que promove uma transformação nas vidas e na realidade dos alunos. A atividade é finalizada com a leitura deste trecho de Sonia Guajajara:
Nós, povos indígenas, acreditamos em uma educação que dialogue com o movimento da vida, com o viver no território, pois o território também ensina. Consideramos o aprender por meio dos conhecimentos tradici onais como um “aprender sem se prender”, sem prender os corpos no lugar único da sala de aula, pois quando cercamos os corpos limitamos a mente (Guajajara, 2019).
Essa reflexão final incentivou todos os alunos da sala de aula a transcender fronteiras e silenciamentos, permitindo uma construção de saberes que forma cidadãos ativos e competentes.
O ensino de taxonomia e a inserção da cultura indígena
O conhecimento dos povos originários foi inserido na aula de taxonomia para o 8º ano do Ensino Fundamental após a introdução da taxonomia científica tradicional. Em seguida, apresentou-se a classificação dos povos indígenas para os seres vivos, considerando suas utilidades, características espirituais e seu papel na comunidade e no ambiente. O conhecimento ancestral indígena leva muitos povos a agrupar plantas e animais com base em observações específicas, como o uso medicinal, a função alimentícia ou o papel ecológico, em vez de se concentrar apenas nas características físicas formais.
Recomendou-se então a leitura de O banquete dos deuses, de Daniel Munduruku, que explora, entre outros aspectos, a visão indígena dos seres vivos. Para os povos indígenas, os seres vivos não são meros recursos naturais; eles são considerados parentes, integrados a um sistema interligado. Cada planta, animal e elemento da natureza possui um espírito e um propósito que transcendem o uso material, orientando uma relação de respeito e reciprocidade com o meio ambiente.
A floresta e seus habitantes são vistos como seres com os quais os povos indígenas mantêm uma conexão espiritual, e sua classificação é fundamentada nessa interdependência e respeito, ao invés de uma separação científica baseada apenas em características biológicas.
O conhecimento tradicional indígena está profundamente enraizado na espiritualidade e na ecologia, formando uma cosmovisão que valoriza cada ser pelo seu papel no equilíbrio ambiental e na vida comunitária.
O ensino de Ciências e a valorização da cultura indígena
Nas seções anteriores, foram compartilhadas abordagens que ressaltam a importância da valorização da cultura indígena e como essa valorização contribui para transformar formas de pensar, de ser e de agir. O conhecimento dos povos originários é amplamente reconhecido, inclusive na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No contexto das Ciências, o documento observa:
Todos os dias, em suas aldeias, os indivíduos de uma comunidade indígena observam muitos fenômenos. O nascer do sol; [...] os diversos ruídos; o aquecimento gradual ao longo do dia [...]. Os povos indígenas são capazes de descrever com riqueza de detalhes o comportamento dos animais; a diversidade das plantas; o movimento das águas [...]. Esses importantes conhecimentos, inclusive, têm sido utilizados na pesquisa científica atual, contribuindo para o melhor conhecimento dos ambientes brasileiros (Brasil, 1998, p. 253).
O processo de colonização deixou marcas e impactos profundos que ainda hoje repercutem em nossa sociedade, incluindo as instituições de ensino. Além desse trecho, a BNCC, como documento norteador para o desenvolvimento de aprendizagens essenciais, estabelece competências que se conectam diretamente com a valorização da cultura indígena e de outras culturas. Entre elas, destacam-se:
- "Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva”;
- "Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural”;
- "Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários”.
Essas diretrizes sublinham a importância de estimular a valorização das diferentes culturas, promovendo uma perspectiva inclusiva e empática, além de tantas outras qualidades que contribuem para a formação integral dos alunos.
Considerações finais
O relato reflexivo da prática pedagógica desenvolvida explorou a chegada dos portugueses ao Brasil e os impactos de invasão, silenciamento e desrespeito sofridos pelos povos indígenas, ressaltando também a resiliência e a transmissão cultural desses povos ao longo das gerações.
Ao incluir a taxonomia de uma forma que abrange o conhecimento indígena, espera-se promover nos estudantes uma visão ampliada e respeitosa sobre a biodiversidade e o meio ambiente. A partir de uma taxonomia que considera as classificações indígenas baseadas em utilidade, espiritualidade e papel ecológico, a proposta visa enriquecer o ensino de Ciências com uma perspectiva cultural integradora e inclusiva.
As reflexões aqui apresentadas estão alinhadas com o pensamento de Krenak sobre o respeito à cultura e à história indígenas e demonstram como é possível ensinar Ciências de forma mais ampla, integrando conhecimentos ancestrais. Dessa forma, o ensino de taxonomia e outras áreas científicas pode contribuir para a formação de cidadãos conscientes e atuantes.
Integrar a cultura indígena ao currículo escolar, especialmente no ensino de Ciências, transforma o aprendizado em uma experiência relevante e significativa. Ao trazer o conhecimento indígena para as aulas de taxonomia, esta proposta contribui para que o cotidiano escolar seja preenchido de sentido, formando alunos que compreendem e respeitam a diversidade.
Como afirma Severo (2021), “o mundo demanda rupturas profundas em nossos modos de ser e experimentar as relações com as outras pessoas e com o meio ambiente”. É essencial que rompamos com o ensinar por ensinar, estabelecendo diariamente um processo educativo que faça sentido, permitindo que os alunos compreendam o mundo em sua diversidade dentro e fora da sala de aula.
Assim, o ensino de taxonomia e de Ciências pode tornar-se uma ponte para uma educação inclusiva e transformadora, que respeita as diferenças culturais e contribui para uma sociedade mais empática e consciente.
Referências
ALMEIDA, M. R. C. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010.
AMORIM, D. de S. Elementos básicos de sistemática filogenética. São Paulo: Sociedade Brasileira de Entomologia, 1994.
AJÃREATY WAJÃPI (WAJÃPI). Conversamos com o que a gente cultiva. In: RICARDO, B.; RICARDO, F. Povos indígenas no Brasil: 2011-2016. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2017. p. 23-25.
BAIÃO, J.; BARREIROS, C.; SANTOS, M. “Eu aprendi a ler no final”: reflexões sobre diferentes tempos e processos de aprendizagem. Revista Digital Formação em Diálogo, nº 1, 2019.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Brasília, 2008. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/ato2007-2010/2008/lei/111645.htm. Acesso em: 5 jul. 2023.
BRASIL. MEC. Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. Brasília: MEC/Secadi, 1998.
BRASIL. MEC. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 20 jul. 2023.
BRASIL. MEC. Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CAMPOS, R. C. Não aponte o dedo para Aquarinã. In:MINAS GERAIS. Secretaria Estadual da Educação. BAY: A educação escolar indígena em Minas Gerais. Belo Horizonte: Seduc, 1998.
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1982.
GUAJAJARA, S. Educação indígena: esperança de cura para tempos de enfermidade. In: CÁSSIO, F. (org.). Educação contra a barbárie:por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu:palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, I. Uatu Hoom. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG; Cipó Voador, 2009.
MUNDURUKU, D. O banquete dos deuses. São Paulo: Global, 2016.
MUNDURUKU, D.; WAPICHANA, C. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas.São Paulo: SME/Coped, 2019.
SEVERO, J. Pedagogia da ruptura: ocupando as margens do ensino remoto para criações didático-curriculares. Revista Espaço do Currículo, v. 14, nº 1, 2021.
TUKANO, D. Apropriação cultural, antropofagismo, multiculturalidade, globalização, pensamento decolonial e outros carnavais. In: RIBEIRO, O. A.; NOGUEIRA, C. M.; GARCIA R. C.; NASCIMENTO, W. F. Tecendo redes antirracistas, Áfricas, Brasil, Portugal. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 99-108.
Publicado em 19 de novembro de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
BOTELHO, Emili Amaral Nunes; PORTO, Maria Beatriz Dias da Silva Maia. Aprendendo com os povos originários: ciências e taxonomia sob uma perspectiva cultural. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 44, 19 de novembro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/44/aprendendo-com-os-povos-originarios-ciencias-e-taxonomia-sob-uma-perspectiva-cultural
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.
