Entre contos e tabus: a sexualização infantil em "Pele de asno", de Charles Perrault
Milene Carneiro Reis
Licencianda em Letras - Língua Portuguesa/Literaturas (UNEB)
Thainy Kelly Oliveira Lopes
Licencianda em Letras - Língua Portuguesa/Literaturas (UNEB)
Valquíria Dias de Almeida
Doutoranda e mestra em Educação (UESB), graduada em Filosofia (UESB), em Letras (UESC) e em Artes Visuais (Unimes), docente na UNEB - Campus VI
O conto popular Pele de asno, compilado inicialmente pelo escritor francês Charles Perrault, tem como tema principal o caso incestuoso de um rei com sua filha. Antes de morrer, a rainha o desafia a se casar somente com uma mulher tão espirituosa, bonita e astuta quanto ela. Segura, com certa soberba, de que o rei não encontraria tal pessoa, a rainha falece em paz. Entretanto, com o passar dos anos, o homem encontra essa pessoa: a própria filha. Pela narração da garota, percebe-se a angústia e a aflição da jovem causadas pelos importunos do pai. Assim, com a ajuda de sua fada madrinha, ela foge para outro reino, vestida com uma pele de asno.
Utilizada para disfarçar sua beleza e causar repulsa nos homens, a pele de asno aos poucos a transforma em uma figura tão feia que a garota quase não consegue se reconhecer. Após anos de trabalho como serva, um príncipe de um reino vizinho a avista adornada com os vestidos com que seu pai a presenteara e se apaixona por ela. Por mais que a princesa ainda estivesse disfarçada pela pele de asno, sua beleza interior e sua bondade fazem com que o príncipe desperte ainda mais interesse pela moça e case-se com ela. Por fim, a princesa revê seu pai, que havia sido convidado para o seu casamento, já velho e arrependido dos seus atos. A narrativa finda, deste modo, com o reencontro paterno e com a remissão da filha.
Apesar de se tratar de uma história ficcional, cabe analisar o significado das ações do rei no conto a partir de um viés histórico e social. A literatura também é uma fonte de conhecimento e um retrato da realidade. Segundo Barthes (2004), uma das três forças da literatura é o poder de mimesis, ou seja, de assemelhar-se ao real. Dessa forma, até que ponto a literatura pode se distanciar da verdade? Até que ponto a história da princesa se distancia da vida de tantas outras crianças e adolescentes que sofrem abusos em casa?
Neste estudo, destacaremos inicialmente aspectos da obra e do autor, a perspectiva histórica e jurídica acerca do tema incestuoso e abusivo expresso no conto, além de evidenciar como, na atualidade, crianças e adolescentes sofrem com problemas semelhantes aos da jovem princesa medieval. É essencial, como futuros educadores, salientar o papel da literatura como denúncia e ferramenta de ajuda social em prol dos esquecidos.
Para isso, realizamos uma pesquisa qualitativa, por meio de análise bibliográfica de livros, artigos e leis. Objetivamos não só realizar uma análise crítica do conto, mas, principalmente, expor e desestigmatizar situações não convencionais de abuso, dar voz às vítimas e conscientizar a população em geral sobre a importância da denúncia.
Acreditamos que a escrita deste artigo pode incentivar novas pesquisas sobre este tema tão importante e necessário de ser discutido. A história não ficcional de tantas crianças também pode ter um “final feliz” com o incentivo às denúncias e a conscientização social.
Metodologia
Tendo como base o conto Pele de asno, presente no livro Contos da Mamãe Ganso, do escritor francês do século XVII Charles Perrault, realizamos esta pesquisa qualitativa, revisando materiais bibliográficos, como artigos, livros, estatutos e leis, com o objetivo de observar a historicidade da obra, reconhecer a situação de abuso sexual infantil no conto e estabelecer uma ponte com a realidade, abordando dados atuais sobre o problema, bem como a conduta adequada da comunidade escolar frente a ele.
Conforme Prodanov e Freitas (2013), a pesquisa é um método de interpretação dinâmica e totalizante da realidade, pois considera que os fatos não podem ser analisados fora de um contexto social, político e econômico. Sob essa mesma ótica, observamos a produção da narrativa popular selecionada como objeto de estudo, sem desconsiderar a perspectiva historiográfica presente na obra, mas também analisando os aspectos abusivos e anormais, ainda que para a época retratada.
Para uma melhor compreensão psicológica, social e histórica do conto e do nosso objeto de estudo, baseamo-nos primordialmente nas pesquisas de Stakonski e Silva (2021). A perspectiva jurídica foi analisada a partir da Lei Federal do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do dossiê Violência Sexual. Por fim, o papel docente e escolar frente a tais situações abusivas foi observado a partir da perspectiva de Castelani et al. (2020).
Com esta pesquisa, objetivamos criar pontes para novos estudos sobre o conto e conscientizar docentes e a comunidade em geral sobre os perigos da banalização do abuso sexual. Por fim, como objetivo maior, almejamos promover maior proteção às nossas crianças e incentivar a denúncia, muitas vezes silenciada pelo tabu social, do abuso sexual infantil.
Obra e autor
O escritor francês Charles Perrault (1628-1703), descendente de uma família nobre, é autor de inúmeros contos infantis, dentre eles A bela adormecida, O gato de botas, Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar e um dos mais polêmicos, Pele de Asno. Perrault se tornou muito famoso por ser um dos primeiros escritores franceses a impulsionar e popularizar os contos de fadas, coletados da narrativa popular oral. Sua literatura de contos era destinada a entreter as crianças da nobreza francesa, mas acabou ganhando fama e se espalhou por todas as classes sociais. Sua escrita tornou-se reconhecida mundialmente não apenas por apresentar narrativas simples, mas pela riqueza em despertar imaginação por meio das palavras e por suas lições morais, nas quais cada conto evoca aprendizagem no leitor.
Os contos escritos por Perrault ainda se encontram espalhados pelo mundo todo, adentrando as escolas no ensino de Literatura Infantil e reforçando as práticas de leitura prazerosa. Apesar de grande parte desses contos coletados possuir certa ingenuidade, há também aqueles que revelam um olhar para o lado vil do ser humano. Histórias obscenas, repugnantes e que causam asco no leitor também foram eternizadas pela escrita de Perrault. Pele de Asno, objeto de estudo deste artigo, é uma dessas narrativas.
O conto popular narra a história de um rei viúvo que, após perder sua esposa, desperta interesse pela própria filha. Percebendo isso, a princesa, com a ajuda da fada madrinha, tem a ideia de impor condições para o possível casamento com o pai. Confiante de que seria impossível atender aos pedidos, solicita ao rei vestidos luxuosos com características quase irreais; porém, sempre que pedia, lhe era concedido. Por fim, pede a pele do asno que defecava ouro, símbolo de riqueza do reino. Desesperado pela união com a filha, o rei entrega o couro do animal.
Ao perceber que nada afastaria o rei de sua obsessão, a jovem, com medo, foge com a ajuda da madrinha para um castelo vizinho. Para isso, veste a pele de asno, com o intuito de se esconder e tornar-se repulsiva. Após anos de trabalho como serva, um príncipe de um reino próximo a encontra e se apaixona por ela.
Por mais que ela ainda estivesse disfarçada pela pele de asno, sua beleza interior, sua bondade e seu jeito fazem com que o príncipe se encante ainda mais pela moça e se case com ela. Por fim, a jovem retorna ao reino de seu pai, já velho e arrependido de seus atos.
Abuso sexual infantil e Pele de asno
A concepção de infância hoje presente na sociedade, construída ao longo de séculos, não existia anteriormente. As crianças, por muito tempo, não eram vistas como membros da família, inocentes ou vulneráveis – a ideia de compreendê-las como sujeitos com direitos próprios a serem respeitados sequer existia para os adultos, tampouco para os “miniadultos”. Na Idade Média, os índices de mortalidade infantil eram exorbitantes – quando não morriam ainda no parto, muitos menores pereciam de fome, frio ou pestes não tratadas no período. Dessa forma, essa classe realmente não possuía relevância social ou leis que a protegessem.
Essa falta de importância gerou diversas situações irregulares, hoje observadas como crimes ou como problemáticas sociais. Segundo Stakonski e Silva (2021),
anteriormente aos séculos XVII e XVIII, em épocas de frio intenso, era comum os camponeses dormirem todos na mesma cama, para juntos esquentarem seus corpos. As crianças viam e presenciavam momentos em que seus pais tinham relações sexuais. Esse exemplo exposto por Darnton (2015) mostra a distância dessa representação conferida à infância e em sua relação com a sexualidade presente no período histórico por ele mencionado para a concepção mais difundida atualmente na cultura ocidental. É importante destacar que, ainda que esse tipo de prática ocorra atualmente em algumas famílias e os significados a elas atribuídos possam variar, as representações hegemônicas sobre a relação entre esses processos (infância e sexualidade) são, de fato, diferentes hoje (Stakonski; Silva, 2021, p. 7-8).
Ainda que não houvesse uma lei que punisse e coagisse os indivíduos acerca do incesto e do abuso sexual infantil, tais práticas já eram repudiadas pela Igreja Católica, instituição de grande relevância no período. A prática incestuosa, juntamente com a sodomia, a bestialidade, o adultério, a fornicação e a masturbação, já era vista como um problema. Ainda conforme Stakonski e Silva (2021),
o horror da Igreja ao incesto ou até mesmo como consenso da sociedade atual não é algo inato; foi uma concepção construída ao longo dos séculos através das relações sociais. Mello (2006, p. 121) afirma ainda que, “se houvesse uma repugnância natural, não haveria necessidade de proibi-lo” (Stakonski; Silva, 2021, p. 22).
O abuso sexual infantil ainda é uma problemática no contexto social e educacional, sendo muitas vezes alvo de silenciamento, falta de discussão e desinformação, passando frequentemente despercebido na escola, na sociedade e na família. Segundo o site Movimento de Mulheres, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmam que, dos 204 milhões de crianças com menos de 18 anos, 9,6% sofrem exploração sexual, 22,9% são vítimas de abuso físico e 29,1% têm danos emocionais. Os dados mostram que, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil – no entanto, esse número pode ser ainda maior, já que apenas 7 em cada 100 casos são denunciados. O estudo ainda esclarece que 75% das vítimas são meninas e, em sua maioria, negras.
Sob esse ponto de vista, a obra Pele de asno evidencia, de forma sutil, devido ao contexto em que o conto está inserido, diversos aspectos de tentativas de abuso por parte de um rei para com sua filha, sendo expressos em várias passagens os desejos estranhos de satisfazer todos os pedidos da princesa, a fim de casar-se com ela. Para tentar evadir os sentimentos de posse de seu pai, a princesa vai ao encontro de sua fada madrinha, que a aconselha a fazer pedidos “impossíveis”. Após as tentativas vãs, o que lhe sobra é pedir a pele do asno sagrado da região, que defecava ouro, pois isso faria com que seu pai não se aproximasse. Apesar disso, o rei mata o animal e entrega a pele à filha. A simbologia da pele de asno se instaura nesse instante – para fugir e causar repulsa em seu perseguidor, a princesa torna-se alvo de asco, de rejeição social (fator muito comum entre vítimas de abuso sexual infantil).
Para se tornar irreconhecível, a pele de asno será um disfarce perfeito. Esconda-se bem dentro da pele, que ninguém acreditará, sendo tão feia, poder esconder algo tão belo. Mal a princesa saía assim travestida da morada da fada madrinha, o rei que se aprontava para a celebração do feliz casamento, no frescor da manhã, ficou sabendo do seu funesto destino. Não houve casa, caminho ou bulevar que não fosse revistado prontamente. Mas foi em vão tanta agitação, ninguém podia adivinhar o que acontecera à princesa. Espalhou-se por todos os lados um triste e torpe desgosto (Perrault, 2015, p. 323).
O incesto presente na obra de forma velada, pela ideia do casamento entre o rei e a princesa, pai e filha, remete aos danos psicológicos e emocionais, nos quais começa a acontecer uma relação perturbadora, que causa medo e aflição, gerando assim uma convivência familiar conturbadora e distorcida. Ademais, a obra destaca a necessidade da princesa de uma proteção, tendo que fugir do seu reino, para não cair nos anseios sexuais e emocionais do seu pai, que objetivava encontrar na filha a figura da falecida mãe e, assim, desposá-la.
Perspectiva jurídica
A princesa, angustiada com as ameaças de seu pai de desposá-la, tenta a todo custo fugir daquele que representa, hierarquicamente, alguém de maior poder e prestígio social que ela. Quando, após inúmeras tentativas, não consegue que seu genitor deixe de lado a ideia obsessiva e abusiva, a garota, por fim, foge — disfarçada com a pele de asno. Apesar de não ocorrer, de fato, o ato libidinoso almejado pela figura paterna, o conflito apresentado no conto configura-se como abuso, pois é evidente que a situação vivenciada pela personagem não se aproxima de algo considerado comum em uma família saudável.
A justificativa historiográfica de que o incesto seria fruto de uma normalização histórica também não pode ser aceita, tendo em vista que, caso fosse, a personagem não tentaria esquivar-se a todo custo, já que seria algo tido como “comum” em seu tempo e em sua posição social.
De acordo com o dossiê da Violência Sexual, considera-se abuso sexual infantil todo ato invasivo praticado contra crianças e adolescentes. É importante destacar que não precisa necessariamente haver penetração ou qualquer outra agressão física para que o ato seja considerado violência sexual. O abuso pode ocorrer de várias formas e em diferentes níveis de gravidade, e isso deve ser levado em consideração, inclusive porque a legislação compreende dessa maneira.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê, em seu Art. 241-D, que aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso, tem pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa. Além disso, o simples fato de o pai sentir-se no direito de casar com a filha e, consequentemente, consumar a relação, configura o conflito também como crime, conforme a lei de assédio sexual do ECA, em seu Art. 216-A. De acordo com a legislação, constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, tem pena de detenção de 1 a 2 anos. Segundo o §2º, a pena é aumentada em até um terço se a vítima for menor de 18 anos, como é o caso apresentado no conto.
Sinais de alerta
Pele de asno é um texto ficcional, mas devemos considerar até que ponto a literatura reflete a realidade cotidiana. De acordo com Ferreira (2015), é preciso reconhecer a capacidade inerente aos textos ficcionais de construir afinidades e entrelaces com o real, pois os contos populares podem ser considerados documentos históricos. Segundo Debald, Silva e Oliveira (2013), “o mundo da fantasia reproduz um contexto histórico produzido por pessoas que se utilizam de tal recurso para perpetuar seus costumes e tradições”. Dessa forma, embora a trama ficcional faça parte de um universo cultural próprio de seu tempo, não se deve ser conivente ou leviano com os atos realizados pelo rei no conto. O abuso e o incesto poderiam não ser ilegais no período, mas já eram considerados repugnantes pela Igreja Católica.
Outrossim, a forma como a princesa reage à proposta de casamento e desposamento já induz ao questionamento de que aquilo era algo realmente “correto” aos olhos da época. Séculos após a publicação do conto, ainda se encontram pessoas que consideram o abuso psicológico e o assédio sexual sofridos pela garota como algo “normal”. Tal perspectiva demonstra como situações de abuso sexual infantil são, muitas vezes, ignoradas e camufladas socialmente.
Conforme a Cartilha de Violência Sexual do ECA, as principais vítimas do abuso sexual infantil e adolescente são meninas. Em 2018, foram notificados 32.082 casos de agressão – crimes que aumentam a cada ano –, resultado de uma lástima social cada vez mais alarmante ou, ainda, de um número maior de denúncias decorrentes de campanhas de conscientização. Os principais agressores são pais, padrastos, amigos ou familiares próximos; o local de ocorrência mais recorrente é a própria residência do menor.
Dessa maneira, tudo aquilo que a criança deveria considerar seguro – os genitores e o próprio lar – cai por terra. O menor vê-se vulnerável frente a um mundo que aparentemente não a defende, tal qual a personagem do conto supracitado.
A mensagem deixada pelo conto não é a de que “tudo dá certo no final”, mas sim a de que situações de abuso infantil muitas vezes são disfarçadas em contextos considerados “comuns” para a época ou inocentes, levando-se em conta que não ocorreu o ato libidinoso. Nesse cenário, muitas pessoas se veem encurraladas por desconhecerem o amparo judicial que as protege contra tais atos abusivos. Para que a denúncia seja efetivada, a população em geral precisa ser instruída, especialmente aqueles que têm mais contato com a criança no dia a dia – como profissionais da educação, familiares e até mesmo a própria criança.
No conto, a menina se camufla com a pele de asno almejando tornar-se repulsiva ao seu agressor; quando percebe que isso não basta, foge. Uma das marcas deixadas pelo abuso sexual infantil, por vezes, é justamente o descuido das crianças com a própria higiene e aparência: elas não se preocupam em parecer limpas ou receptivas a outras pessoas. Além disso, é comum que se isolem e se afastem em casos de abuso. A vergonha, o medo e a confusão causados pelo abuso frequentemente levam a criança a se retrair emocionalmente, evitando contatos sociais e expressando sinais de tristeza ou ansiedade. Como esses comportamentos podem indicar abuso doméstico, professores e demais membros da família devem observá-los atentamente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) oferece proteção às vítimas de abuso e violência. Uma dessas estratégias é retirar a criança ou adolescente do convívio familiar quando necessário para protegê-la. Essa medida visa resguardar a vítima de potenciais agressores e possibilitar sua recuperação emocional e física para viver em sociedade.
Papel da escola
O papel do professor e da comunidade escolar no reconhecimento do abuso sexual infantil é essencial. Na grande maioria dos casos, o abusador pertence à família e, por isso, a criança não encontra abertura nem segurança para denunciar o ocorrido. Entretanto, no ambiente escolar, os professores podem perceber diversos sinais. Segundo Castelani et al. (2020), estima-se que apenas 10% dos casos são denunciados no Brasil. Ainda assim, mesmo com uma porcentagem tão baixa de notificações, entre 2011 e 2017 foram registrados mais de 200 mil casos de abuso sexual infantil, o que resulta em uma média de 30 mil ocorrências por ano.
Cabe, portanto, analisar a instituição escolar como agente de transformação, e não como perpetuadora do abuso. Émile Durkheim (1922), sociólogo francês, afirma que a escola é o segundo mecanismo de socialização do indivíduo; assim, é nesse espaço que a criança, além de desenvolver habilidades, descobre-se enquanto pessoa e, consciente ou inconscientemente, expressa marcas de um sofrimento originado no seio familiar. Ainda conforme Castelani et al. (2020, p. 12),
o professor é a figura que está em constante contato com as crianças dentro do ambiente escolar, exercendo sua função de mediador e de agente fundamental para que a plenitude no desenvolvimento infantil seja alcançada. Portanto, é essa figura que será capaz de identificar e pontuar as mudanças de comportamento apresentadas pelos alunos, de fazer a mediação entre suas percepções e a coordenação escolar, levando as questões até a família ou órgão da Assistência Social, quando necessário.
Para que isso de fato ocorra, o professor precisa transparecer segurança e acolhimento ao aluno, além de ser capaz de reconhecer mudanças comportamentais e sinais de alerta do abuso. Infelizmente, as universidades não oferecem conhecimento voltado para isso no processo formativo do professor e, devido a esse fator, a falta de preparo leva muitos a deixar escapar, entre os dedos, vestígios deixados pelas crianças em sala de aula.
Assim, é crucial que haja formação, ainda nas instituições de Ensino Superior, para os docentes, não apenas para reconhecer situações de abuso, mas também para prepará-los para lidar psicologicamente e socialmente com as vítimas. Dessa forma, situações como a do conto Pele de asno tendem a ser menos recorrentes na sociedade brasileira.
Considerações finais
O presente estudo objetivou discutir aspectos relacionados ao abuso sexual infantil no conto popular Pele de asno, de Charles Perrault, adentrando a perspectiva histórica ligada ao incesto e à concepção de infância da época. Além disso, estabelecendo um diálogo com a realidade atual, abordamos as leis relacionadas ao tema retratado no conto e a abordagem adequada por parte dos educadores e da comunidade social em geral frente a tal problemática.
Este estudo não tem um fim em si mesmo. Objetivamos, com ele, não apenas abordar a questão do abuso sexual infantil relacionada ao conto, mas também fomentar novas pesquisas e criar novas linhas de interpretação acerca do tema. Por fim, buscamos contribuir para que a população em geral identifique casos de abuso infantil e realize a denúncia. Práticas normalizadas no passado, a ponto de serem registradas em um conto infantil, não podem ser consideradas comuns e, muito menos, aceitáveis na atualidade.
A partir dessa reflexão, é fundamental que haja um diálogo mais aprofundado sobre a maneira como a literatura pode ser utilizada para abordar questões sociais delicadas, como o abuso infantil. O papel dos educadores, assim como das instituições de ensino, vai além da simples transmissão de conteúdo; é necessário que sejam agentes de transformação, capacitados para identificar sinais de violência e intervir de forma adequada. A literatura, nesse contexto, torna-se uma ferramenta valiosa para provocar debates e promover uma educação que sensibilize a comunidade para a proteção das crianças.
Referências
ABUSO sexual infantil. In: AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Dossiês. [S. l.: s. n.]. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-sexual/tipos-de-violencia/abuso-sexual-infantil/#:~:text=O%20artigo%20213%20tipifica%20o,de%208%20a%2014%20anos. Acesso em: 10 abr. 2024.
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.
CASTELANI, Thaís Moratori et al. A prática docente no processo de identificação do abuso sexual infantil. Cadernos de Educação, Pelotas, v. 19, nº 38, p. 63-79, 2020.
DEBALD, Blasius; SILVA, Adriana; OLIVEIRA, Maria de. A compreensão do contexto histórico a partir dos contos de fadas no século XXI. Plêiade, Foz do Iguaçu, v. 14, nº 14, p. 68-76, jul./dez. 2013.
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Trad. Lourenço Filho. 5ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1922.
FERREIRA, Cristina. José de Alencar e a emancipação nas cartas de Erasmo (1865-1871). In: ENCONTRO ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL, 7., 2015, Curitiba. Anais. Curitiba: UFPR, 2015. p. 1-13.
MOVIMENTO MULHERES. Exploração sexual: a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são vítimas no Brasil. Movimento Mulheres, [entre 2005 e 2024]. Disponível em: https://www.movimentomulheres.com.br/single-post/explora%C3%A7%C3%A3o-sexual-a-cada-24-horas-320-crian%C3%A7as-e-adolescentes-s%C3%A3o-v%C3%ADtimas-no-b. Acesso em: 10 abr. 2024.
PERRAULT, Charles. Contos de Mamãe Gansa. Porto Alegre: L&PM, 2015.
PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2ª ed. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2013.
SÃO PAULO. Estatuto da Criança e do Adolescente. Cartilha sobre violência sexual contra criança e adolescente. São Paulo: Polícia Civil, s/d. Disponível em: https://www.policiacivil.sp.gov.br/portal/imagens/Cartilha%20Violência%20Sexual.pdf. Acesso em: 9 abr. 2024.
STAKONSKI, Ana Carolina; SILVA, Ivone Maria Mendes. Pele de asno: do texto ao contexto. Signótica, Goiânia, v. 33, nº 1, p. 1, 2021.
Publicado em 26 de novembro de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
REIS, Milene Carneiro; LOPES, Thainy Kelly Oliveira; ALMEIDA, Valquíria Dias de. Entre contos e tabus: a sexualização infantil em "Pele de Asno", de Charles Perrault. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 45, 26 de novembro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/45/entre-contos-e-tabus-a-sexualizacao-infantil-em-pele-de-asno-de-charles-perrault
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.
