Tertúlia Literária Dialógica (nem tanto assim) à luz da Pedagogia Histórico-Crítica
Rodrigo dos Santos Dantas da Silva
Doutorando em Letras (UFES)
Primeiras palavras (e aproximações)
Tertúlia é o momento em que as pessoas se encontram para discutirem ou criarem uma reflexão de criações artísticas da humanidade, seja em forma de literatura, música, filmes, artes visuais ou outras. Como metodologia pedagógica embasada em estratégias de inclusão e coesão social na Europa, a partir da Educação (Inclued-ED), a tertúlia literária dialógica é defendida como uma metodologia exitosa pela plataforma do Instituto Natura, a Comunidade de Aprendizagem: uma ação pedagógica muito utilizada nas escolas de tempo integral da Educação Básica na contemporaneidade que tem se estendido para as escolas regulares. De acordo com a plataforma Comunidade de Aprendizagem, o Inclued-ED é um projeto de pesquisa coordenado pelo Centro de Investigação em Teorias e Práticas de Superação de Desigualdades (CREA), da Universidade de Barcelona, cujo objetivo é identificar atuações pedagógicas de êxito que visam à superação do fracasso e da evasão escolar, assim como os riscos relacionados à exclusão social.
Posto isso, propusemo-nos neste artigo a analisar essa ação pedagógica (e de êxito) trazida pelo curso de formação continuada de professores Tertúlia Dialógica, na plataforma digital Comunidade de Aprendizagem, a partir da Pedagogia Histórico-Crítica postulada por Dermeval Saviani (2011), movendo uma discussão dialógica, conforme as considerações de Bakhtin (2011; 2018) e buscando as possíveis potencialidades (ou fragilidades) dessa prática de leitura literária na escola.
A tertúlia literária dialógica é uma atividade iniciada na escola para a educação de pessoas adultas em La Verneda de Sant-Martí. Desde 2002, tem sido executada no município de São Carlos, em São Paulo, pela Universidade Aberta da Terceira Idade. Em ambos os contextos, a prática é comum aos diversos grupos sociais, com o intuito de tornar a leitura um território de troca de conhecimento (Mello, 2003). Em contrapartida, Dalvi (2013, p. 68) afirma que, na escola, "é necessário instituir a experiência ou a vivência da leitura literária, bem como a constituição de sujeitos leitores, como fundantes ou inerentes (também) ao ensino de literatura". Assim, cremos que práticas de leitura literária deveriam potencializar a compreensão estética literária mais articulada à vida cotidiana e aos processos históricos e ideológicos que envolvem esse objeto estético.
A tertúlia literária dialógica no ambiente escolar sob as orientações da formação do curso no site Comunidade de Aprendizagem se fundamenta na leitura coletiva/compartilhada de textos clássicos da literatura universal. Desse modo, moveremos em nosso trabalho um contato entre as concepções da ideia de "clássico", do cânone literário, e o que é proposto pela Pedagogia Histórico-crítica dos conhecimentos essenciais que resistiram ao tempo (Saviani, 2011). A fim de que um sujeito exceda o seu olhar, conforme o processo que Bakhtin (2011) chama de exotopia, e se torne também um agente transformador de seu contexto, "a experiência com a Literatura excede o cotidiano" (Ramalhete, 2020, p. 9). Desse modo, entendemos o movimento como dialógico, em uma prática de leitura na sala de aula: um processo que possibilita o cruzamento discursivo entre os estudantes, os professores e as pautas que envolvem o mundo ou o contexto no qual estão inseridos. A questão aqui formulada é: "será que esse procedimento de leitura literária escolar, a Tertúlia Literária Dialógica, da forma como vem sendo ancorada pela Comunidade de Aprendizagem, potencializa uma interação verbal (entendida como dialógica) com o outro, favorecendo um excedente de visão à materialidade que o envolve?".
Este artigo foi produzido para a disciplina Literatura e Docência, do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A disciplina foi ministrada pela professora doutora Arlene Batista da Silva em 2022/2. Para alcançarmos o objetivo proposto e responder ao questionamento apontado no parágrafo anterior, analisamos o que a Comunidade de Aprendizagem orienta como tertúlia literária dialógica em seu portal. Por meio de uma formação chamada de Tertúlia Dialógica, ressaltamos que o curso esteve online na plataforma Comunidade de Aprendizagem até o início de janeiro de 2023. Todavia, materiais, vídeos e arquivos da formação são facilmente encontrados na internet.
Tertúlia Literária Dialógica a partir da formação continuada para professores na plataforma Comunidade de Aprendizagem
A ideia de tertúlia literária dialógica, a partir das pesquisas do Inclued-ED, em um contexto educativo, possibilita que os estudantes alcancem bons resultados, e consequentemente, as instituições em que estudam consigam ficar em uma boa posição nos cortes numéricos de programas que avaliam as escolas por meio de provas externas. O Inclued-ED, por meio de pesquisadores de 15 universidades e institutos de pesquisa da Espanha, conseguiu identificar algumas atuações educativas de êxito a partir de 26 estudos de caso concebidos em educandários localizados em áreas de baixo status socioeconômico. A tertúlia literária dialógica se encaixa como uma atividade pedagógica na categoria de agrupamento inclusivo de alunos. A tertúlia, segundo o curso dessa ação pedagógica posta no site da Comunidade de Aprendizagem, se dá por meio de uma leitura dialógica que acontece "por meio do diálogo" e dentro do princípio do "diálogo igualitário" que conceberá a compreensão do texto literário lido e discutido. Analisaremos a concepção que dá nome ao mesmo curso "Tertúlia Dialógica" da plataforma digital Comunidade de Aprendizagem, do Instituto Natura.
A formação na modalidade EaD possuía quatro módulos compostos de vídeos e materiais em arquivos de portable document format (PDF). Dentre as orientações para que a prática de tertúlia dialógica literária fosse realizada de modo que os próprios estudantes escolhessem a obra objeto de leitura da tertúlia, pediram aos aprendizes que escolhessem apenas um parágrafo do texto literário lido (o qual poderia ser lido de forma fragmentada ou completa). Segundo o curso, no momento da realização da tertúlia, os participantes precisavam expor o porquê de esse trecho ser o escolhido para a exposição, pois conforme o curso o movimento instiga os estudantes às estratégias de argumentação.
A respeito do sujeito que deveria mediar o processo, ele é chamado de moderador, porque apenas dinamiza e assegura que o diálogo igualitário seja realizado na tertúlia. É aquele que organiza as inscrições das falas – descritas como "turno de palavras" – daqueles que estão participando. O moderador ainda não precisa ser necessariamente um professor de Língua Portuguesa ou ter uma formação em estudos de literatura. Ele também não deve expor o contexto de produção que envolve a obra, muito menos falar da vida e da obra do autor. A metodologia do curso leva em conta que os estudantes descubram esses elementos ou contextos sozinhos, no decorrer da leitura do livro. A concepção de leitura que fundamenta essa prática é chamada de leitura dialógica:
A concepção de leitura dialógica se enquadra nas características principais da sociedade atual na qual existe uma crescente presença do diálogo em todas as esferas sociais: desde o domicílio até a política global (Flecha; Gómez; Puigvert, 2001). Por outro lado, sustenta-se na concepção comunicativa da pessoa e da aprendizagem, que a interação e o diálogo estão no centro da atenção. Segundo a psicologia sociocultural de Vygotsky (1995), a aprendizagem parte sempre da interação social, de modo que os meninos e meninas atingem níveis mais altos de desenvolvimento através da colaboração com seus iguais e supervisionados por uma pessoa adulta O desenvolvimento cognitivo, portanto, depende da interação social através da qual a cultura, a sociedade e a cognição se transformam. George Herbert Mead (1934) também desenvolveu a ideia de que internalizamos o que previamente vivenciamos na interação com outras pessoas. Aplicado à leitura, o autoconceito de leitor dos meninos e meninas terá muita relação com estas interações, e, por isso, é necessário desenhar contextos de aprendizagem para as crianças que experimentem interações positivas e agradáveis baseadas nas altas expectativas como leitores (Aubert, 2011, p. 1-2).
Vemos nesse excerto que a leitura dialógica é tida como um processo compartilhado de leitura: um "processo intersubjetivo". A respeito dessa configuração de leitura, o curso expõe que "a leitura não deve ser de autoridade do professor ou do currículo, mas sim de sentimentos humanos muito intensos. Não é para ser individualmente, mas sim, coletivamente compartilhada" (Flecha, 1997, p. 50). A orientação dada é para que o estudante leia sozinho antes de a tertúlia ser concebida e "o moderador não explica, não apresenta, nem contextualiza a obra" (Martínez, 2011, p. 6). Ainda segundo a formação, essa ação só pode ser considerada tertúlia se o texto tido como objeto for um clássico da literatura universal, pois esse tipo de leitura é aquele que "fascina", fazendo com que o participante "entre na história". A atividade leitora em conjunto de um clássico é capaz de resgatar o "prazer" pela leitura.
O curso ainda pontuava que essa ação pedagógica de êxito acarreta o enriquecimento do vocabulário dos estudantes, contribuindo para a compreensão leitora e para a expressão oral e escrita do aluno, capacitando-o à argumentação e ao pensamento crítico. A proposta do curso ainda colocava em tela que não existem verdades absolutas acerca do texto lido e as reflexões devem acontecer apenas por meio das explicações dos estudantes.
A formação ainda citava a ideia de aprendizagem dialógica que possui sete princípios: 1) diálogo igualitário; 2) transformação; 3) criação de sentido; 4) solidariedade; 5) dimensão sentimental; 6) igualdade de diferenças e 7) inteligência atitudinal. A proposta mostrou que na tertúlia literária cada participante atribui um sentido novo ao texto literário lido e essas reflexões são importantes para a formação humana do sujeito. No módulo 2, disponível na plataforma, foi proposta a leitura do artigo de Roseli R. Mello intitulado Tertúlia Literária Dialógica: espaço de aprendizagem dialógica (de 2003), o qual destaca que todos esses princípios acontecem juntos na prática da tertúlia. O diálogo é um elemento gerador de aprendizagem que permite aos estudantes, a partir do texto literário, falarem de si, pois é "na solidariedade de condutores da atividade com as pessoas em situação de exclusão, priorizando-se sempre a sua participação" (Mello, 2003, p. 452). Ressalta-se ainda que a criação de sentido na escola deve respeitar as capacidades de interpretação e as individualidades de cada aluno. Segundo o curso esta é uma forma de os estudantes verem sentido naquilo que aprendem.
Tanto a Comunidade de Aprendizagem quanto o artigo de Mello se ancoram nas orientações de Ramon Flecha (1997), que trata da organização das tertúlias literárias dialógicas.
A tertúlia literária se reúne em sessão semanal de duas horas. Decide se conjuntamente o livro e a parte a comentar em cada próxima reunião. Todas as pessoas leem, refletem e conversam com familiares e amigos durante a semana. Cada uma traz um fragmento eleito para ler em voz alta e explicar por qual razão lhe há resultado especialmente significativo. O diálogo se vai construindo a partir dessas contribuições. Os debates entre diferentes opiniões se resolvem apenas através de argumentos. Se todo o grupo chega a um acordo, ele se estabelece como a interpretação provisoriamente verdadeira. Caso não se chegue a um consenso, cada pessoa ou subgrupo mantém sua própria postura; não há ninguém que, por sua posição de poder, explique a concepção certa e a errônea (Flecha, 1997, p. 17-18).
Por esse excerto, percebemos que na dinâmica de leitura da tertúlia literária dialógica todas as contribuições expostas são válidas e não existe a necessidade de um alinhamento desse ou daquele argumento como certo ou errado. Mello conclui seu artigo dizendo que as tertúlias literárias dialógicas possibilitam vivências acerca de aprendizagens da língua a respeito da cultura do outro e da sua própria cultura e individualidade.
O último módulo apresentou um material intitulado Caderno de Tertúlia com atuações de êxito embasadas no molde proposto de leitura dos clássicos, além de uma retomada de outros pontos, como o conceito de tertúlia, a organização e a moderação de fala dos participantes. O caderno norteador serviu como orientador para que as tertúlias acontecessem sempre no mesmo local, horário e frequência, mantendo uma certa regularidade da prática no ambiente escolar (Flecha, 1997, p. 8). Essa é uma parte do curso que, apesar das retomadas, focou na organização de tertúlias literárias na escola. Tanto o Caderno de Tertúlia como o vídeo disponível do módulo foram concluídos com a ideia de que na tertúlia literária dialógica o estudante pode livremente "falar de si", um procedimento que não requer grandes custos ou demandas por "superequipamentos", basta ter o livro.
Tertúlia literária dialógica a partir da Pedagogia Histórico-Crítica e do dialogismo bakhtiniano
A partir das análises realizadas, acreditamos que a metodologia de tertúlia literária dialógica, como proposta na formação da plataforma virtual Comunidade de Aprendizagem, seja ineficaz por dois motivos: 1) A escola é o lugar mais adequado para a transmissão do saber elaborado (Saviani, 2011). Assim, como usar o texto literário para essa dinâmica embasada no diálogo igualitário apenas pela troca de percepções que acarretam discussões esvaziadas?; e 2) Na categoria de dialogismo, segundo os estudos bakhtinianos, "a língua no processo de sua realização prática não pode ser separada de seu conteúdo ideológico ou cotidiano" (Bakhtin/Volóchinov, 2018, p. 181). Dessa forma, a literatura é um instrumento social da língua/linguagem, por isso não é cabível que nos educandários o trabalho docente, tendo o texto literário como objeto das aulas de Língua Portuguesa e Literatura, ignore a compreensão oriunda desse enunciado artístico e concreto, o qual está situado histórico-ideologicamente.
O dialogismo é uma categoria estabelecida por Bakhtin que pode ser entendido como uma atividade social de diálogo concomitante às movimentações linguísticas – um embate discursivo embasado na alteridade, pois nenhum sujeito se faz só. De acordo com a teoria bakhtiniana, os processos dialógicos ocorrem nas relações entre os objetos, os sujeitos/os objetos e nas relações entre os sujeitos uns com os outros. No tocante ao enunciado literário, seu entendimento se dá na interação verbal: os movimentos dialógicos socialmente organizados resultam em outros enunciados dotados de sentido (Bakhtin/Volóchinov, 2018). Desse modo, todo enunciado é prenhe de respostas (Bakhtin, 2016 apud Ramalhete, 2020) com vozes sociais que movimentam sentidos a partir da interação e da produção discursiva de respostas e contrarrespostas.
Grande parte do trabalho com a leitura é integrado a produção em dois sentidos: de um lado ela incide sobre "o que se tem a dizer", pela compreensão responsiva que possibilita, a contra palavra do leitor à palavra do texto que se lê; de outro lado ela incide "as estratégias do dizer" (Geraldi, 1997, p. 166-167).
Pela argumentação de Geraldi, vemos que a proposta metodológica de tertúlia literária dialógica, orientada pela Comunidade de Aprendizagem, faz da leitura um processo de reconhecimento de sentidos e não há a preocupação de produzi-los em um cruzamento discursivo com os estudantes. Logo, não é uma proposta de leitura literária dialógica. Acreditamos que a metodologia de tertúlia literária dialógica da maneira como foi apresentada no curso de formação continuada para professoras e professores da referida plataforma não é cabível na escola, visto o seu compromisso com a formação humana. A sua aplicabilidade seria possível em outros espaços sociais de educação não formal, como igrejas, hospitais e centros comunitários. Ignorar ainda a autoridade intelectual da professora ou do professor que media o processo é um grande erro, pois esvazia a função específica do trabalho docente (Dalvi; Lourenço, 2019). Notamos que a ação é reduzida a uma prática literária imediata, visando o fascínio e o prazer deleitoso, apartando-a de uma realidade concreta. Segundo Bakhtin (2011), é impossível haver relações dialógicas concretas nas práticas de língua/linguagem.
Não temos aqui o objetivo de demonizar o uso da prática da tertúlia literária dialógica, no entanto, por ser ela embasada nos clássicos canônicos é importante para a formação dos estudantes, agentes transformadores de suas realidades, que o texto literário seja esgotado e analisado. Desse modo, haverá diálogo com o meio no qual os discentes vivem. Isso está consoante à concepção pedagógica histórico-crítica, visto que nas ações pedagógicas em nossa sala de aula a compreensão da história se dá "a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana" (Saviani, 2011, p. 76).
O texto literário, entendido como objeto artístico, traz um caráter social capaz de contagiar o sujeito leitor em um sentido exotópico, ou seja, ele amplia a sua visão para além de seu conhecimento e suas vivências no que se refere aos aspectos estéticos do texto, potencializando novos sentidos diante das contradições presentes no cotidiano, culminando em um movimento de catarse que enriquece a subjetividade dos leitores (Assumpção, 2020). Dessa forma, a prática de "turno de palavras" da tertúlia é extremamente ineficaz, porque o estudante não tem que "entrar na história" ou "ler por prazer", adotando-se um posicionamento acrítico (Dalvi, 2013) ao manusear o texto literário. Logo, compreendemos que a leitura literária dialógica é aquela que pode expandir o olhar do estudante acerca do mundo a fim de aproximá-lo da humanidade, fazendo-o produzir ações que contribuam com o seu meio. Observamos que o estudante que "fala de si" ao ler um texto de literatura não eleva a sua subjetividade, pois esse é um movimento que não contribuirá para a sua formação argumentativa ou expansão de léxico.
O texto literário entendido como obra de arte é "uma técnica criada pelo ser humano para dar existência social objetiva aos sentimentos" (Assumpção; Duarte, 2015, p. 240). Assim, a sua mediação nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura potencializam um movimento de catarse que mostra ao estudante as condições em que ele se encontra e que, provavelmente, ele não escolheu (Saviani, 2011). Dessa forma, lidar com a literatura como objeto das aulas e de metodologias escolares é possibilitar que os aprendizes ultrapassem as suas experiências pessoais, provocando transformações subjetivas a partir da leitura/ análise de um texto em uma experiência de leitura literária escolar.
Acreditamos ainda que seja inadequada a escolha da obra pelos estudantes, seja pela falta de maturidade ou pela pouca formação. Nós professores, ao escolhermos uma obra para leitura em sala de aula, deixamos de lado nossas escolhas políticas e ideológicas, oriundas de nossa formação em literatura:
O professor, enquanto alguém que, de certo modo, apreendeu as relações sociais de forma sintética, é posto na condição de viabilizar essa apreensão por parte dos alunos, realizando a mediação entre o aluno e o conhecimento que se desenvolveu socialmente (Saviani, 2011, p. 122).
Nesse sentido, visto que o enunciado artístico-literário não trará forma ou conteúdo harmônico, demandará do mediador do processo de estudo e de análise o auxílio na produção de sentidos e na compreensão do discente para a apreciação desse objeto. A literatura é indispensável à educação escolar. Ela eleva o aluno tirando-o de seu estado passivo, pois é na escola que se tem (ou ao menos se deveria ter) contato com conhecimentos culturais acumulados pela sociedade ao longo da História. Corroborando Dalvi (2013), sempre que há a possibilidade de alargar o conhecimento de mundo de nossos aprendizes, por meio de relações intersemióticas ou transdisciplinares, devemos fazê-lo a fim de se estabelecer, conforme as orientações de Saviani (2011), uma relação sintética com o conhecimento da sociedade.
As tertúlias literárias dialógicas visam o trabalho pedagógico sem fragmentar a obra. Esse é um ponto positivo da ação de leitura na escola, todavia ela usa textos clássicos já consagrados pela crítica literária. Cremos que o clássico, a partir de nossos estudos de Pedagogia Histórico-Crítica, são conteúdos importantes para expandirmos o olhar de nossa humanidade: "clássico é aquilo que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que ele foi proposto" (Saviani, 2011, p. 87). Nesse viés, a ideia de um saber clássico é aquele saber essencial para a formação dos estudantes, por isso entendemos que autores como Conceição Evaristo, Glauco Mattoso, Elisa Lucinda, Paulo Lins e outros, mesmo de caráter popular, como os de cordel ou o repente, trazem questões sociais tão importantes quanto autores consagrados como Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Clarice Lispector ou Ariano Suassuna. Todos esses autores podem promover a consciência crítica coletiva na educação escolar quando trabalhados em sala de aula sistematicamente, visto que "clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial" (Saviani, 2011, p. 13). Pelo viés histórico-crítico de ensino, o clássico se constitui como saber que resiste ao tempo e não se trata de um conhecimento arcaico.
Aqui o clássico não se identifica com o antigo, porque um moderno é também considerado um clássico. Dostoievski, por exemplo – segundo a periodização dos manuais de História, um autor contemporâneo – é tido como um clássico da literatura universal. Da mesma forma, diz-se que Machado de Assis é um clássico da literatura brasileira, apesar de o Brasil ser mais recente até mesmo que a Idade Média, quanto mais que a Antiguidade. Então, o clássico não se confunde com o tradicional (Saviani, 2011, p. 87).
Em contrapartida, a escola embasada na visão da classe capitalista (Saviani, 2011) e cercada de programas internacionais ou de empresas privadas que custeiam o pensamento curricular (barateando o saber) e as ações pedagógicas, faz com que os estudantes se apropriem de saberes hegemônicos que trazem, implicitamente, ideologias da sociedade capitalista dominante apassivando-os. A prática da tertúlia literária dialógica preza pela leitura inteira da obra, porém é importante que repensemos o acesso à sua integralidade, refletindo: "as escolas públicas conseguem subsidiá-las em uma quantidade que atenda a todos os aprendizes de uma determinada turma?".
A Comunidade de Aprendizagem em seu curso destacava que a solidariedade é um dos princípios da tertúlia literária dialógica. Por isso, acreditamos que isso seja um apontamento errôneo: ser solidário é sinônimo de ser bom. A solidariedade seria um princípio da educação familiar que pode (ou não) ser aprimorada na escola a partir das relações ali estabelecidas, pois "o saber que diretamente interessa à educação é aquele que emerge como resultado do processo de aprendizagem, como resultado do trabalho educativo" (Saviani, 2011, p. 7). Além disso, percebemos que a metodologia de tertúlia literária dialógica não tem por objetivo converter o saber objetivo produzido, ao longo da história da sociedade, em saber escolar, mas reconhecer, por meio do diálogo, o que está posto no texto literário, sem a preocupação com a produção de sentidos, sendo capaz de colocar o estudante em um lugar de agente transformador. A formação para professores (online até o início de 2023 na Comunidade de Aprendizagem) discorria acerca da leitura e da educação dialógica, sem evocar Bakhtin e O Círculo, precursores da proposta dialógica de língua/linguagem, trazendo a referência de Bakhtin no Caderno Tertúlia Dialógica (módulo 4), The dialogic imagination (2000). Contudo, nenhuma contextualização com a obra apareceu no curso.
Como seria uma prática dialógica de leitura literária?
O texto literário deve ser entendido como um enunciado concreto, o qual está situado histórico, ideologicamente é carregado de particularidades estéticas; para além de suas funções comunicativas, "a literatura é a oportunidade de expressão de suas ideias, sentimentos, indignações, admirações" (Dalvi; Lourenço, 2019, p. 83), circunscrita historicamente em um movimento dialógico que traz à tona para o seu leitor o embate de suas contradições com as contradições presentes na obra artística. Entendemos o dialogismo postulado por Bakhtin como um fenômeno heterógeno em que os possíveis sentidos da obra e do leitor se chocam, porque ambos estão situados em uma realidade concreta.
Assim como a literatura tem uma função social, a leitura, em nossa concepção, é entendida como uma prática social. Quando pensamos em leitura literária dialógica nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura, pensamos em uma leitura que excede o gozo estético oriundo de uma obra de arte. A recepção do texto literário pelo leitor culmina em sentidos e o professor, mediador do processo, dentro de suas possibilidades e de forma sistematizada, precisa instigar o caráter responsivo presente no processo dialógico. Entendemos aqui a responsividade como o ato de dar respostas à obra de arte apreciada, atribuindo-lhe respostas a partir da vivência concreta do estudante.
O texto literário não se embasa em uma neutralidade, pois ele é oriundo do cruzamento do meio no qual o autor está circunscrito nas condições sociais que o permeia (Dalvi; Lourenço, 2019). Assim, uma obra de literatura precisa ser analisada de forma que os estudantes compreendam suas principais manifestações ou tendências que ali possibilitem uma transformação (Saviani, 2011), fazendo emergir desse movimento de sentidos os possíveis pontos de contato com suas realidades concretas e contradições cotidianas.
Para ser uma ação dialógica, a literatura deve acontecer em um movimento de "transmissão-assimilação do saber sistematizado" (Saviani, 2011, p. 17). O trabalho com a leitura/ literatura nas escolas não pode ser delineado por excertos e muito menos pelo imediatismo. Além disso, precisa ser embasado na preparação teórica-metodológica. O texto literário não deve vir como pretexto para a assimilação de outros conteúdos ou texto-base de questões alinhadas aos descritores de aprendizagem da língua em avaliações externas.
É necessário repensarmos esse tipo de prática, tendo em vista que a formação do aluno leitor passa pela produção de sentidos (est)eticamente válidos em relação ao texto e, consequentemente, à vida. A interpretação de informações apresentadas em textos pode e deve ser trabalhada sim, em momento oportuno, e com variedade de gêneros. Porém, esse não deve ser o fim das aulas de Língua Portuguesa. É notório que a excessiva preocupação com o resultado de avaliações internas e externas tem direcionado o tratamento dado ao texto literário na escola como a qualquer outro texto (Dalvi; Lourenço, 2019, p. 87).
Nesse sentido, a prática de leitura literária dialógica é aquela que está preocupada com a formação do estudante leitor, pois extrapola limites textuais, contribuindo para a produção de sentidos outros e promovendo o embate de vozes sociais que vão além da voz do autor do texto. Ela deve ser feita com tempo e atenção, desgarrada dos treinos para a execução de avaliações externas. A literatura precisa ser evidenciada nas aulas como um evento discursivo, compartilhado entre os sujeitos a fim de contribuir para a formação leitora dos aprendizes a fim de que aprendam a manusear a palavra e compreendam o discurso do outro (colegas de classe, autor e professor):
É o encontro destes fios que produz a cadeia de leituras construindo os sentidos de um texto. E como cadeia, os elos de ligação são aqueles fornecidos pelos fios de estratégias escolhidas pela experiência de produção do outro (o autor) com que o leitor se encontra na relação interlocutiva de leitura. A produção deste, leitor, é marcada pela experiência do outro, autor, tal como este na produção do texto que se oferece à leitura, se marcou pelos leitores que, sempre, qualquer texto demanda. Se assim não fosse, não seria interlocução, encontro, mas passagem de palavras em paralelas, sem escuta, sem contrapalavras: reconhecimento ou desconhecimento, sem compreensão (Geraldi, 1997, p. 166-167).
Embasados nas palavras de Geraldi, vemos que o enunciado (artístico-literário) nessa perspectiva discursiva/ dialógica "é de natureza social" (Bakhtin/Volóchinov, 2018, p. 200) e a palavra nesse processo de cruzamento, de embate e de partilha se torna território comum (Dalvi; Lourenço, 2019). Sendo assim, acreditamos que a experiência literária não pode "morrer" na troca das informações vista a "olho nu", próxima de nossas realidades, mas deve alargar o conhecimento no sentido de trazer conhecimentos outros que não estão presentes nas vivências de nossos aprendizes.
O estudante leitor é aquele que além da compreender a leitura consegue produzir contrapalavras para responder o texto lido. Todas as vezes que retomar à obra lida, em tempos distintos, poderá produzir outros sentidos, outras respostas a ele. Bakhtin (2011) postula que todo enunciado é envolvido em um propósito, em uma intenção. A sua execução se dá pelos movimentos dos sujeitos que ao manusearem um texto, a partir de suas experiências e subjetividades, corroboram sentidos concretos da vida real. Quando adotamos uma proposta dialógica de leitura literária, levamos em consideração nosso grupo de estudantes como comunidade discursiva, pois suas particularidades irão influenciar nessas relações dialógicas e sociais.
Uma experiência literária dialógica é aquela que ocorre quando um texto é ponto de encontro, após a inserção do leitor nos valores culturais nos quais a obra lida está inserida (Dalvi; Lourenço, 2019). Na escola isso é sistematizado, seja por meio de temas, aproximação de obras de períodos distintos, rodas de leitura compartilhadas ou outro. Essas são ações de mediação que evidenciam as particularidades concretas das obras: históricas, sociológicas e ideológicas. Elas promovem o diálogo desses textos lidos e a relação entre contextos reais de atuação.
Apontamentos para discussão
Este artigo teve como objetivo analisar a metodologia de tertúlia literária dialógica, disponibilizada no site de formação de professores Comunidade de Aprendizagem até o início de janeiro de 2023, sob o viés do dialogismo de Bakhtin e à luz da Pedagogia Histórico-crítica. Por meio das análises realizadas, percebemos que a metodologia é falha no que tange à leitura literária na escola, pois permite apenas que o estudante "fale de si", sem o instigar a se comportar como um agente transformador de seu contexto ou o movimente às respostas ao texto, alargando o seu conhecimento, suas subjetividades, suas experiências pessoais.
A metodologia prevê que o texto literário seja lido integralmente, o que vemos como um ponto positivo da prática proposta na formação em discurso. Todavia, a formação falha no trabalho com textos clássicos, pois a concepção está arraigada ao cânone literário. Confirmamos, neste percurso, que um saber clássico é aquele que resiste ao tempo e fornece conhecimentos essenciais aos nossos estudantes. Logo, obras da contemporaneidade, que tiram o leitor de seu lugar-comum, são bem-vindas às práticas de leitura literária na escola e os professores são os intelectuais que auxiliam seus aprendizes na apropriação dos saberes elaborados presentes nessas obras.
A formação Tertúlia Dialógica, ofertada pela plataforma digital Comunidade de Aprendizagem do Instituto Natura, defende a concepção de leitura por prazer. Para nós isso é uma fragilidade, visto que a Pedagogia Histórico-crítica postula a escola como o lugar mais adequado para a transmissão/ assimilação dos saberes mais elaborados pela humanidade, inclusive saberes oriundos da literatura. Nosso anseio não é demonizar a ação pedagógica aqui analisada. Acreditamos que ela seria eficiente em ambientes de educação não-formal ou como proposta da plataforma virtual na produção de sentidos, não só (re)conhecendo de forma rasa o que está posto no texto, mas oportunizando diálogos com a vida real. É importante pensarmos também nos motivos pelos quais uma empresa privada, como o Instituto Natura, oferece subsídio à formação para professores de Educação Básica.
Cremos, assim, que as tertúlias literárias dialógicas são importantes como ações pedagógicas quando o mediador da prática (não o moderador) subverte o que foi postulado pela Comunidade de Aprendizagem por meio de uma postura dialógica de leitura literária na escola: fazendo da obra literária um ponto de embate discursivo e de inserção de valores históricos, culturais e ideológicos. Essa é uma prática capaz de exceder o olhar de seus estudantes diante das contradições presentes em sua vida cotidiana. Por esse motivo, cremos que esse debate pode ser continuado a partir dos conceitos que envolvem a Pedagogia Histórico-crítica no que diz respeito à categoria de dialogismo, conforme fundamentada por Bakhtin.
Referências
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AUBERT, Adriana. Leitura dialógica: mais espaços de leituras com mais pessoas. Trad. Gabriela Doll Ghelere. Comunidades de Aprendizagem: Escola, n° 2, p. 1-8, nov. 2011. Disponível em: https://www.comunidadedeaprendizagem.com/uploads/materials/102/2143f484199d463557f2a8f3db6354ea.pdf. Acesso em: 14 jan. 2023.
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Publicado em 12 de março de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
SILVA, Rodrigo dos Santos Dantas da. Tertúlia Literária Dialógica (nem tanto assim) à luz da Pedagogia Histórico-Crítica. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 9, 12 de março de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/9/tertulia-literaria-dialogica-nem-tanto-assim-a-luz-da-pedagogia-historico-critica
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