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Cia. Étnica de Dança e Teatro
Karla Hansen
Entrevista com Carmen Luz
No final de 1996, a atriz e dançarina Carmen Luz esteve no Andaraí à procura de um espaço para instalar seu projeto mais caro: dar formação artística - dança e teatro - para jovens de comunidades pobres. Para realizá-lo, escolheu os moradores do Morro do Andaraí. "Quando cheguei, o bairro era uma terra arrasada. Não tinha nenhum projeto social, não tinha nada acontecendo", define.
Sem qualquer opção cultural ou de entretenimento, a comunidade não desfrutava nem mesmo do tradicional baile funk que Carmen costumava frequentar em sua juventude. "Os jovens viviam naquele ócio não produtivo, que não é o ócio artístico, mas aquele ócio de quem está à deriva, para qualquer coisa, para o que chegar. E isso me incomodava muito", conta.
Quase dez anos depois, a Cia. Étnica de Dança e Teatro é reconhecidamente um dos mais bem sucedidos e prestigiados projetos sociais de cultura e arte do país. Por ela, já passaram cerca de 600 crianças e adolescentes e a Cia. Étnica conta com, aproximadamente, 150 apresentações, para uma média de 90 mil pessoas, no Brasil e, também, no exterior.
A sede do projeto, na rua Barão de Mesquita, foi instalada num casarão antigo, alugado, com duas salas para aulas de dança e teatro, uma pequena biblioteca com um computador ligado à Internet - com acesso livre pelos alunos -, duas pequenas salas para a secretaria/administração, uma pequena copa e banheiros, diferenciados para professores e alunos. "Isso, que você está vendo hoje é uma casa de pobre, mas com adaptações. Você está vendo espelho, barra, linóleo, uma casa pobre de dança, mas uma casa de dança", conta Carmen comparando o atual momento com o início do projeto, em condições bem menos favoráveis.
A escola é mantida graças ao patrocínio da Petrobras, que veio em 2001, garantindo que hoje a situação seja bem diferente de quando as aulas e ensaios aconteciam num velho clube abandonado na comunidade - o Clube Santo Agostinho. "O início da Cia. Étnica foi muito difícil porque a gente trabalhava no chão áspero, não tinha linóleo, e tudo o que a gente aprendeu foi nessa diversidade, mas ninguém ficou com lesão", lembra.
Houve momentos ainda mais difíceis, como quando, Carmen e seu grupo, depois de "expulsos" do Clube, usaram uma sala do Hospital do Andaraí para ensaiar. Apesar das dificuldades, a diretora que, ainda mantém um núcleo no morro do Andaraí, com aulas para crianças e idosos, revela em tom de vitória: "Projetei a ação para dez anos. Na verdade, o resultado veio muito antes, graças a Deus e a nossos esforços".
Nascida numa família "extremamente pobre", Carmen, que sonhou desde menina em ser bailarina e coreógrafa, mas não teve condições econômicas nem acesso a um projeto social como o que idealizou, oferece para crianças - a partir de 6 anos - aulas de balé (clássico), balé moderno, contemporâneo, jazz, afro, além de filosofia, teatro, consciência corporal, danças populares - jongo, samba - e inglês. "Não queria que meus alunos passassem o que passei. Quero que eles tenham uma formação muito precisa em todas as áreas, especialmente, nas que eles tiverem mais afeto, que for do desejo ou da escolha deles. Para isso, chamei pessoas muito especializadas para trabalhar aqui".
Essa preocupação com profissionais especializados e altamente qualificados em suas áreas mostra uma opção política da diretora da Companhia. "Toda vez que eu penso num professor para vir aqui, quero um professor que foi formado ou trabalha com as elites. Por que estou falando das elites? Porque dança - considerada como arte e linguagem - sempre foi considerada algo que pertence às classes dominantes. Já as danças populares, desde sempre, ficaram ligadas ao folclore. Só há muito pouco tempo elas têm status de dança, mesmo assim, agregado ao 'popular'".
Seguindo essa política, Carmen procura levar os melhores profissionais de dança da cidade, para a sua Escola. "Eu procuro trazer para cá o professor que foi bailarino do Teatro Municipal, a professora formada na Carlota Portela, a professora da Escola e da Universidade Angel Viana - são esses que vêm trabalhar na Cia. Étnica de Dança. E junto deles, tem os professores que estão sendo formados aqui, por esses professores de ponta, com experiência comunitária".
A diretora conta, ainda, que a escolha pela comunidade do Andaraí também foi determinada por motivos políticos, além dos afetivos que a ligavam aos moradores da favela, desde sua adolescência, no tempo em que ainda existiam os bailes funks: "Não passa na minha garganta esse descaso que a sociedade tem com os pobres, os negros, os mestiços, os nordestinos e, principalmente com os jovens moradores de favelas. Acho tudo muito absurdo, me indignava um monte de coisas".
Contra esse descaso, Carmen desistiu de uma carreira no exterior e decidiu investir toda sua energia num projeto de arte contemporânea para os jovens do Morro do Andaraí. "Nesse momento que decidi investir nesse novo caminho de criar uma companhia que tivesse uma formação com jovens - que era completamente diferente do meu caminho profissional de atriz, de bailarina, de professora -, poderia ter escolhido uma outra comunidade. Conheço muitas e já trabalhei em tantas outras. Mas no Andaraí não tinha nada acontecendo. E isso para mim era muito importante. Eu precisava de espaço, precisava de um lugar onde nem olhassem muito pra mim, que eu não precisasse negociar com tantos outros projetos, com tantas outras lideranças, ou seja, que ainda não tinham caciques demais. Outras comunidades estavam cheias de caciques".
O marco inicial se deu com a premiação do programa Comunidade Solidária, que possibilitou à Carmen e a uma sócia, na época, trabalhar com um grupo de 20 jovens, de 14 a 17 anos, com direito a uma bolsa de 50 reais por aluno. Além dos recursos do programa do Governo Federal, Carmen teve que investir recursos pessoais no projeto, que acabou ultrapassando o limite de 20 adolescentes. "Tinham muito mais - você oferecer um curso numa comunidade vai chover gente! Pelo menos, foi essa a minha experiência".
De lá pra cá, muita coisa aconteceu, mas tudo foi muito bem planejado: "Não vou dizer que neste planejamento não houve desvios, como em todo planejamento. Mas a essência está até hoje ali", diz Carmen se referindo ao núcleo que funciona na comunidade, no espaço do Centro Municipal de Assistência Social Integrada (Cemasi), com uma visão e objetivos diferentes dos da Cia. Étnica, já que a intenção não é dar formação profissional de dança e de artes cênicas aos alunos.
Para começar, as aulas não acontecem todos os dias, mas, pelo menos por enquanto, só aos sábados. Há aulas de corpo para idosos e um trabalho para crianças e adolescentes. O projeto também tem um espaço na Escola de Samba Flor da Mina do Andaraí, que Carmen caracteriza como um espaço de sensibilização e educação para jovens.
Para ela, educação se traduz por passar valores e ensinar novos valores, além de ensinar "coisas básicas, como ensinar a se vestir, que não é a mesma coisa que colocar roupa da moda". Carmen se refere aos "30 Mandamentos" como exemplo de conjunto de regras que envolvem noções de valor. Chama a atenção de quem chega à Cia. Étnica um cartaz na porta da secretaria, onde se lê: "Os 30 Mandamentos". Nele se dividem, por itens, regras administrativas, como a obrigatoriedade de estar matriculado na escola, apresentar documentos que comprovem isso, ou a autorização expressa dos pais ou responsáveis para saídas com o grupo e normas de conduta, como ser responsável, ter cuidado com a própria aparência e com a higiene pessoal, não faltar mais de 3 aulas, entre outros.
Essas regras, no entanto, são mais flexíveis na comunidade. "Não posso ter mão de ferro lá, como a que eu tenho aqui. Se houve mais de três faltas, tenho que entender porquê ele não veio, visitar a família... Lá em cima, é um trabalho muito mais de educação e educação estética, de formação do olhar, é circular com eles nos espaços, como museus, fazer com que eles conheçam e reconheçam seu espaço como moradores de favela, ter atitudes políticas com esse espaço, valorizá-lo. Ou seja, o trabalho, lá em cima, é de autoestima, autoestima, autoestima, reconhecimento, reconhecimento, reconhecimento", explica Carmen.
No momento, com tudo bem encaminhado, as preocupações da diretora da Cia. Étnica estão mais voltadas para o grupo de profissionais, todos formados pela Companhia, que estão prontos para alçar voo, com lançamento marcado para o ano que vem dessa alavancada. Como uma mãe, ao mesmo tempo, orgulhosa e desejosa de ver o filhote crescer, a diretora está abrindo um novo espaço na escola, na loja abaixo do sobrado, para abrigar a mais nova companhia de dança contemporânea da cidade, ainda sem nome. "Não vou dizer para você que eles não estão morrendo de medo, porque agora eles vão para o anonimato. A Cia. Étnica tem um lugar, aqui, no Brasil e fora dele. Mas eu falo para eles que eles não vão começar do zero, não, porque eles ainda têm uma mãe, a mãe Cia. Étnica".
Além disso, a diretora está preparando, pela primeira vez, um grupo de bailarinos para sair na comissão de frente da Escola de Samba Flor da Mina do Andaraí, no Sambódromo, no Carnaval de 2006. Será sua estreia na Passarela do Samba e uma oportunidade de mostrar para um público, ainda maior, a qualidade de seu trabalho.
3/1/2006
Publicado em 03 de janeiro de 2006
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