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NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DO HABITUS DA LEITURA E DA ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Andréa Pavão

Doutora em Educação pela PUC-RJ, ministra oficinas de leitura e de escrita para crianças, jovens e adultos e, atualmente, leciona na Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas
em pé ou inclinadas,
apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca
ou nobremente espacejadas em aleias de menires,
eu sentia que a prosperidade de nossa família dependia delas. (.)
Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros.
(Sartre, 2000:31-33)

O objetivo deste texto é refletir sobre o papel da escola, especialmente a destinada às camadas populares, na apropriação do habitus da leitura e da escrita entre crianças da educação infantil que ainda não estão empenhadas cognitivamente em compreender o que a escrita representa e como se dá este sistema de representação, suas regras de produção tanto conceituais quanto formais.

Partindo das reflexões de Emilia Ferreiro sobre os processos de alfabetização, em que a autora desloca a discussão do eixo da "batalha dos métodos" para os processos cognitivos das crianças e suas variadas hipóteses, argumenta-se que, para mobilizar suas competências cognitivas em direção à compreensão do sistema alfabético de escrita, é indispensável que o alfabetizando visione na cultura escrita, possibilidades e funções extraescolares que o motivem, estabelecendo uma relação estreita e de "necessidade" entre ler e escrever e os diversos objetos de leitura e de escrita. Defende-se, ainda, que a construção desta necessidade deve-se formar na educação infantil, não por meio de exercícios de coordenação motora ou contatos iniciais com as letras do alfabeto e seu valor sonoro, mas principalmente pela mediação com adultos que de fato leem e escrevem em seu cotidiano e por meio do contato com diversos materiais impressos e suas variadas funções sociais.

Deve-se ou não ensinar a ler na pré-escola?

No ano de 1994, Emilia Ferreiro publica um texto pela Secretaria de Educação Pública do México intitulado El Espacio de la Lectura y la Escritura en la Educación Preescolar. Nesta ocasião, a autora propõe uma reflexão crítica sobre a seguinte questão: "deve-se ou não ensinar a ler e a escrever na pré-escola?". Ferreiro argumenta que esta é uma pergunta mal colocada, uma vez que parte do pressuposto de que "são os adultos aqueles que decidem quando e como vai ser iniciado esse aprendizado" (Ferreiro, 2000: 96). Entende-se, desta forma, que a escrita é um objeto meramente escolar, cuja existência depende intrinsecamente desta mediação institucional. Este é um equívoco que contribui enormemente para a formação de uma legião de analfabetos funcionais que, uma vez afastados da escola, não encontram motivações nem para ler, e muito menos ainda para escrever.

Além disso, na medida em que se instaura como única instituição legítima e responsável pela autorização do acesso à escrita, que deve acontecer quando e do modo que julga mais oportunos, a escola acaba por sacralizar a escrita como um objeto imutável e não como produto de práticas culturais e históricas que varia tanto no tempo, quanto entre os diversos segmentos da sociedade. Assim, muito especialmente para as camadas populares, que dependem mais da escola para travar contato com a escrita, este objeto vai sendo representado como instrumento de poder e de exclusão.

Contrariamente, antes de ser pedagogizada e reduzida a um objeto escolar, a escrita é um objeto social e cultural que apresenta uma infinidade de funções, entre as quais, talvez a menos interessante, seja prestar exames para promover-se na trajetória escolar.

Emilia Ferreiro finaliza seu texto, apostando na competência cognitiva do alfabetizando, por um lado, e no vigor da escrita como objeto social e cultural, por outro, com as seguintes palavras:

Em vez de nos perguntarmos se "devemos ou não devemos ensinar", temos de nos preocupar em DAR ÀS CRIANÇAS OCASIÕES DE APRENDER. A língua é muito mais que um conjunto de formas gráficas. É um objeto social, é parte de nosso patrimônio cultural. (Ferreiro, 2000: 103)

Trata-se, portanto, de criar o que, em outros trabalhos, a autora denomina de "ambiente alfabetizador". Em suas pesquisas, junto à Ana Teberoski, Ferreiro chama a nossa atenção para o fato de as crianças das zonas urbanas terem maior facilidade no processo de alfabetização comparadas às que se socializam em meio rural, pouco letrado, onde o acesso ao impresso é mais restrito. Esta evidência empírica aponta para o importante papel das redes sociais nas quais o alfabetizando está envolvido, descartando, portanto, a ideia conservadora, e tão difundida, de que o bom desenvolvimento no processo de alfabetização relacionar-se-ia a uma inclinação inata e individual, o que se costuma chamar de dom, mas antes, à oportunidade de conhecer as diversas funções sociais da escrita e de acesso a variados materiais impressos.

Esta perspectiva do processo de alfabetização, trazido por Emilia Ferrerio, em que a escrita é concebida como objeto social, aproxima-se, em certa medida, ao conceito de letramento, difundido no Brasil por Magda Soares e definido pela autora (1998:40) como "estado ou condição de quem não apenas conhece o alfabeto e sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita". Emilia Ferrerio, entretanto, já se pronunciou, diversas vezes, contrariamente ao uso deste termo, por considerar que a dimensão social do processo de alfabetização lhe é indissociável.

Historicamente, entretanto, observamos claramente, que por muito tempo, a alfabetização foi e ainda é, em muitos casos, concebida como um processo escolar, dissociado da ideia de formação de leitores e escritores. O que Magda Soares pretende apontar é que, por colocar em destaque a função social da leitura e da escrita, o construtivismo, tal como foi apropriado pelo discurso da prática, acabou desconsiderando, e mesmo sendo negligente, em relação à especificidade e a uma certa sistematização que a compreensão e o domínio da escrita exigem, supondo, falaciosamente, numa visão espontânea da prática construtivista, que apenas oferecendo material escrito às crianças, estas se alfabetizariam.

Nota

Em seu trabalho, Mortatti (2000) desenvolve uma análise da história da alfabetização no estado de São Paulo (Brasil) a partir de três eixos conceituais: o das tematizações, das normatizações e o das concretizações. A estas categorias de análise, a autora relaciona, respectivamente, os discursos teóricos, os discursos oficiais e os discursos da prática, produzidos pelos distintos atores: pesquisadores do campo, representantes dos ministérios e secretarias de educação e, por fim, os professores que colocam em prática estes discursos. No campo das concretizações, portanto, o discurso da prática acaba estabelecendo significativas distâncias em relação ao discurso oficial que, por sua vez, afasta-se consideravelmente do discurso teórico.

Ora, sabemos que, ao contrário, a prática construtivista requer uma participação extremamente ativa do professor que deve acompanhar o percurso cognitivo de cada criança em direção à compreensão alfabética de nosso sistema de escrita, acolhendo seus erros construtivos, de forma a poder desequilibrar as hipóteses do alfabetizando em direção à apropriação da escrita convencional. Sabe-se também que, para mobilizar suas competências cognitivas, os seres humanos, em geral, precisam de uma forte motivação e, no caso específico do processo de alfabetização, é indispensável que tanto a leitura quanto a escrita adquiram um valor partilhado por um determinado grupo social.

Contra esta inversão onde os processos de letramento (contato com os usos e funções sociais da leitura e da escrita) se sobrepõem aos de alfabetização (apropriação do sistema de representação alfabética em sua forma convencional), Soares (2003) propõe que estejamos atentos à necessidade de alfabetizar letrando, ou seja, garantir ocasiões de aprendizado às crianças, apresentando a escrita como objeto social, sem perder de vista a construção da representação alfabética de nosso sistema de escrita, o que, para Emilia Ferreiro, como já foi dito, está totalmente implícito em sua concepção de alfabetização. Para Paulo Freire (2000), igualmente, apesar de não recorrer, à época, ao termo letramento, em sua concepção de alfabetização, pressupõe o uso social da cultura escrita.

Livros que ensinam os primeiros rudimentos de leitura, seja por intermédio de métodos analíticos ou sintéticos, onde o grau de dificuldade dos exercícios vai aumentando a partir de critérios elaborados por adultos alfabetizados, o que Ferreiro costuma chamar de adultocentrismo. Para colocarmo-nos no lugar de uma criança diante deste programa de ensino, basta remetermo-nos, por exemplo, às situações em que adultos pouco familiarizados com aparelhos eletrônicos, tentam aprender as funções de um aparelho de videocassete, a partir de seu manual. A dificuldade é, como todos sabem, precisamente encontrar as respostas às nossas dúvidas particulares, elaboradas a partir de nosso próprio esforço cognitivo e experiências passadas com outros aparelhos semelhantes.

A preocupação recai, especialmente, sobre as crianças dos meios rurais e das camadas populares urbanas. No sistema público de ensino, travarão contato com professores precariamente qualificados que abandonam as cartilhas e métodos tradicionais, por um lado, e não chegam a "dar às crianças ocasiões de aprender", seja porque eles próprios não se apropriaram da escrita como objeto social, seja porque não há recursos materiais, nem vontade política do poder público, em democratizar o acesso a materiais impressos variados. Ora, a cultura escrita é, notadamente, um objeto de grande interesse para a educação. Apropriar-se da escrita por meio da leitura e produção de textos é um direito de todo cidadão e importante fator de inclusão social, construção de subjetividade, cidadania e acesso aos bens culturais em sociedades grafocêntricas.

Entretanto, parece haver uma grande polissemia em torno destes termos. Que leitura e que escrita desejamos incentivar e legitimar? Neste sentido, parece-me relevante o aprofundamento da análise das diversas significações que estão sendo conferidas aos termos ler e escrever nos discursos que polemizam entre si nesta arena de disputas. Desde o discurso de que o brasileiro não lê, que nem toda leitura pode ser considerada leitura, mas apenas a leitura de bons textos, até o contradiscurso de que o brasileiro lê mais do que se pensa e que ler qualquer coisa é evidentemente ler e qualquer leitura é boa, além dos discursos sobre o quê se lê e de como se lê, a questão do prazer é um aspecto recorrente nos mais variados discursos sobre a leitura, especialmente os destinados às séries iniciais.

Afinal, por que se lançar no mundo da cultura escrita?

Aprofundando a discussão a respeito das ligações entre leitura e prazer, a partir dos discursos oficiais de programas de incentivo à leitura, Arena (2003) chama-nos a atenção para a intransitividade do ler e do escrever em par com a ênfase nas ideias de estimular e criar o hábito, desenvolver o gosto e promover o prazer. Segundo o autor, a leitura é apresentada nestes discursos como objeto idealizado e reclama pela importância da formação do leitor transitivo, da leitura transitiva. No discurso que se tornou hegemônico no interior das políticas públicas, a leitura é compreendida "como ação sem objetos ou, implicitamente, com apenas um objeto - o livro de literatura", como algo, portanto, imanente ao próprio leitor, e não como uma prática que se desenvolve nas redes de relações sociais (Arena, 2003:54-55).

Campanhas orientadas por aspectos tais como o hábito, o gosto e o prazer seriam, para o autor, "ações de superfície restritas às áreas do treinamento, quando se pensa em hábito, e às áreas das sensações, quando se pensa em gosto e prazer" (2003:55). Para Arena, a leitura de um objeto definido distanciar-se-ia tanto do campo do treinamento quanto das sensações, aproximando-se de um terceiro campo, o da "satisfação de necessidades criadas pelo próprio leitor, ou pelo aprendiz, na relação que mantém com os outros homens e com os objetos de conhecimento que encontram ao caminhar pelos fios que compõem a teia dessas relações" (2003:55). Afastando a concepção de leitura do campo do treinamento e das experiências puramente sensoriais, Arena estabelece uma relação estreita entre o leitor e o objeto da leitura, por intermédio do conceito de necessidade.

Pensando a necessidade como função motriz dos gestos de leitura, plena de transitividade, intrinsecamente ligada ao objeto de leitura, esta deixa de ser uma "dama solitária e inatingível", nos termos de Arena, presa ao campo das idealizações, e encarna-se nas redes sociais dos significados, "fértil companheira de múltiplos objetos". Mas como se constituiria a necessidade de leitura? Ora, se pesarmos na leitura, tanto quanto a escrita, como práticas eminentemente culturais, ou seja, nelas não havendo nada de natural, sendo construídas nas intrincadas tramas das redes sociais, podemos dizer que a necessidade de leitura e de escrita se constitui somente quando, e se, adquirem valor social.

Segundo Bourdieu e Chartier (1996), a leitura é um consumo cultural entre tantos outros e, como tal, é historicamente variável e produto das condições nas quais nos constituímos enquanto leitores. Sendo assim, ler não se dá por si mesmo, existe uma necessidade de leitura, "e devemos colocar a questão das condições nas quais se produz essa necessidade". De acordo com Bourdieu (1996:238), só "é possível ler quando existe um mercado no qual possam ser colocados os discursos concernentes às leituras (...) e terminamos por esquecer que, em muitos meios, não é possível falar de leituras sem ter ar pretensioso". Dentro deste pensamento, Bourdieu entende a necessidade da leitura como uma relação material, concreta, entre o leitor e seu objeto de leitura, construída por meio do valor social que este objeto adquire em um determinado meio social:

Mas como é produzida a necessidade do produto? Procurava estabelecer relações entre um produto e as características sociais dos consumidores (quanto mais se eleva na hierarquia social, mais se consomem bens situados num nível elevado da hierarquia de bens etc.). Mas eu não me interrogava sobre a produção da hierarquia de bens, e sobre a produção do reconhecimento desta hierarquia. Ou pelo menos eu me contentava em nomeá-la, sem mais, enquanto me parece que o próprio das produções culturais é que é preciso produzir a crença no valor do produto, e que nessa produção da crença, um produto não pode jamais, por definição, dominar sozinho; é preciso que todos os produtores colaborem nisso, mesmo combatendo-se. (...) Portanto, entre as condições que devem ser preenchidas para que um produto intelectual seja produzido, está a produção da crença no valor do produto. (Bourdieu, 1996:239-240)

A partir da reflexão de Bourdieu, podemos inferir que, para um produto cultural ser consumido, é preciso que este tenha adquirido um valor, ou que tenha sido desenvolvida uma crença no valor do produto, em seus próprios termos. Ora, desde uma perspectiva sociológica, sabemos que os valores só existem na relação social e, portanto, a garantia do acesso ao livro como produto cultural não chega a ser suficiente. É preciso que haja necessidade de consumo, necessidade de leitura, que determinado objeto adquira um valor partilhado por algum grupo social.

Assim, entende-se, por exemplo, o interesse de crianças em idade pré-escolar em ler as piadinhas que envolvem os chicletes, ou em procurar reconhecer no rótulo de seu biscoito preferido, o sabor que mais aprecia. Crianças ainda não alfabetizadas, se convivem com adultos que leem e escrevem, conhecem perfeitamente as posturas corporais que envolvem estas práticas e é comum os pais relatarem, orgulhosos, que seu filho de apenas três anos "lê" o livro de contos infantis para o irmãozinho mais novo, reproduzindo os gestos e as palavras que eles lhe dirigiam meses atrás. Se querem convidar um amigo para ir ao cinema, buscam imediatamente a caderneta de telefones e a apresentam à mãe: "qual é o número de fulaninho?". Muitos saberão reconhecer o caderno do jornal que contém as informações sobre a programação nas salas de projeção. Igualmente, em relação à escrita, todos nós conhecemos crianças que sentem necessidade e "escrevem", antes mesmo de conhecer as letras, cartinhas de amor para suas mães, ou legendas para seus desenhos.

Estas iniciativas das crianças se manifestam na medida em que se produz a crença no valor destes objetos (o papel que envolve o chiclete, a caderneta de endereços, o caderno de programas do jornal, bilhetes.) no interior de determinadas práticas culturais (mascar chiclete, ir ao cinema, trocar bilhetes) e seus meios de socialização (amigos da rua, família etc.). A necessidade se constrói na medida em que tais objetos de leitura e escrita adquirem um significado simbólico, um valor de uso e até mesmo de troca (por intermédio dos discursos sobre estas leituras) em suas respectivas comunidades. Autoritariamente, entretanto, a escola costuma ignorar todo este conhecimento e interesse que as crianças trazem de sua vida extraescolar, pela cultura escrita.

Lahire (1997) nos traz um exemplo interessante, no âmbito do processo de socialização primária, para compormos o conceito de necessidade como motriz dos gestos de leitura enquanto práticas culturais constituídas nas relações sociais em função do valor simbólico que determinados objetos de leitura venham a adquirir. O autor descreve uma situação em que os objetos culturais podem permanecer em estado de letra morta:

A existência de um capital cultural familiar objetivado não implica forçosamente a existência de membros da família que possuam o capital cultural incorporado adequado à sua apropriação. Os pais compram livros, dicionários, enciclopédias (que, frequentemente, constituem investimentos financeiros muito altos) para seus filhos, mas sem que possam acompanhá-los em suas descobertas desses objetos culturais. Não desempenham - por falta de disposição ou de oportunidades - o papel de intermediários que possibilitaria aos filhos apropriarem-se dos textos que são colocados à disposição deles. (...) As crianças são, portanto, colocadas numa situação paradoxal, uma vez que possuem objetos cuja ausência de utilidade familiar podem constatar todos os dias. (...) Esse patrimônio cultural quase não é mobilizado pelos membros da família, e as crianças estão, muitas vezes, privadas dele. Trata-se, portanto, de um patrimônio cultural morto, não apropriado e in-apropriado. (1997: 342-343)

Neste exemplo, Lahire introduz um outro elemento fundamental na formação da necessidade de leitura: o mediador. Interessante, porém, que, muitas vezes, esta mediação se dá de forma menos ativa do que a idealizada pelo autor. Não é imprescindível que o mediador acompanhe de perto as descobertas destes objetos, sendo suficiente que sejam usados, que adquiram um valor de uso e, portanto, um valor simbólico no interior de determinada comunidade.

A situação dos livros como patrimônio cultural morto, não apropriado e in-apropriado é uma situação, infelizmente, recorrente em muitas escolas: não basta, portanto, que o governo invista na aquisição de livros, doando-os às escolas, ou diretamente aos estudantes, faz-se necessária à atuação de um leitor mais experiente que possa mediar a relação entre o jovem leitor e o objeto cultural-livro, é preciso que se construa sobre o livro um valor de uso, um valor social, para além do uso meramente escolar. É preciso que haja uma relação de necessidade de leitura semelhante à necessidade de conhecer o resultado do campeonato de futebol ou os acontecimentos do último capítulo da novela, por exemplo. Interessante ressaltarmos que esta relação de necessidade e de interesse não está intrinsecamente ligada a algum possível traço de ludicidade mas, antes, a uma função social, havendo grupos sociais que se interessam, por exemplo, por livros de terror ou noticiários trágicos.

Enganam-se, também, aqueles que pensam que as crianças não têm seus próprios interesses. Desde cedo, nota-se, por exemplo, diferenças marcadas pela questão do gênero tal como é usualmente construído nas sociedades ocidentais, tanto quanto por questões de classe e posição social. Assim, meninos muito pequenos, em idade pré-escolar, demonstram interesse, constantemente reforçado pelos pais, pela cultura do esporte. Estas crianças, antes mesmo de saber ler ou escrever, se interessarão, por exemplo, por diversos produtos oferecidos pela mídia a elas destinados como álbuns de figurinhas sobre times de futebol. Se tiverem condições materiais, poderão colecionar as figurinhas, trocar na escola com amigos e, em pouco tempo, começam a mobilizar sua competência cognitiva para compreender as informações contidas nestes objetos, motivados pela necessidade da difundidíssima prática social de trocar figurinhas.

Há crianças que, se têm oportunidade de contato, desde muito cedo, demonstram interesse por letras de canções populares, outras por poemas, enquanto meninas muito jovens, incentivadas pelos pais, interessam-se em ajudar a mãe nos afazeres domésticos, sabendo reconhecer, muito rapidamente, as marcas dos produtos preferidos em sua casa, seja por sua qualidade, ou por serem mais econômicos.

Nestes exemplos, vemos como a motivação pela leitura não é marcada, necessariamente, pelo prazer. Pessoalmente, lembro-me de que as primeiras motivações que me fizeram mobilizar minhas competências cognitivas em direção à escrita como objeto de conhecimento, dizem respeito a necessidades extremamente práticas vividas em fase pré-escolar. Uma delas era ler as instruções para a construção de um brinquedo de papel em uma revista infantil. A revista era ricamente ilustrada, destinada a crianças de baixa escolaridade, mas ainda assim, precisava da ajuda de adultos, nem sempre disponíveis, para esclarecimento de algumas dúvidas nas instruções que ainda não era capaz de ler. Outra situação diz respeito à necessidade de conhecer as regras de um jogo muito difundido no Brasil, chamado Banco Imobiliário. Tendo uma irmã cinco anos mais velha do que eu, observava-a jogando com um grupo de amigas de sua idade que me impediam de participar alegando que não o entenderia. Depois de muito observar e demonstrando já ter compreendido as regras do jogo, argumentaram estar escrito, nas regras, que o jogo não era indicado para crianças da minha idade porque exigia a leitura constante das cartas com as indicações das jogadas. Pronto: era vital que eu aprendesse a ler.

Há exemplos curiosos, também, em que pessoas com pouca ou nenhuma escolaridade atuam como mediadores na construção do valor da formação, da leitura e da necessidade de ler, pelo simples fato de atribuírem um "lugar simbólico (nos intercâmbios familiares) ou um lugar efetivo ao 'escolar' ou à 'criança letrada' no seio da configuração familiar" (Lahire, 1997:343). Foi o que ocorreu com Mariana, atualmente estudante do curso de Serviço Social. Sua mãe se ocupava da cobrança de seus deveres escolares, acompanhando as lições e cobrando as leituras em voz alta. Mariana estava já na segunda série do primeiro ciclo do ensino fundamental, quando descobriu que sua mãe era analfabeta. A partir de então, como acontece muito recorrentemente nas camadas populares, a filha passa a ocupar o lugar do mediador, desde a alfabetização da mãe até a socialização das leituras que realiza na faculdade.

A vitalidade desta concepção de leitura como prática cultural, que se constrói nas relações sociais por intermédio da formação da necessidade criada por valores partilhados socialmente, encontra-se, na medida em que se afasta da ideologia do dom, ainda tão presente nos variados discursos sobre a leitura.

Assim, o interesse pela leitura não depende de uma graça divina, nem tampouco do empreendedorismo individual e, muito menos se dá por meio de treinamento escolar. Não se forma um leitor apenas com força de vontade. Podemos dizer, contrariamente, que a força de vontade que move o leitor potencial em busca de seu objeto é construída socialmente.

Nos relatos de leitores mais ou menos competentes sobre suas trajetórias como leitores e escritores, a ideia do dom e da força de vontade individuais estão muito presentes. Há, também, recorrentemente, a ideia de sorte, quando se reconhece o papel de mediação de algum professor especialmente dedicado, amante de livros, ou de parentes e vizinhos com mais elevado grau de escolaridade e afinidade com estas práticas.

Pensar a formação de leitores como um processo eminentemente social exige que o Estado se responsabilize em criar as condições materiais e simbólicas para que a construção deste leitor, que não encontra as condições nos meios de socialização primária, as encontre, não por sorte, mas por ações planejadas, no ambiente escolar, promovendo condições semelhantes às encontradas no ambiente familiar letrado, por exemplo, e que favorece a formação tanto de leitores quanto de escritores.

Categoria desenvolvida por Bourdieu, o habitus seria, em seus próprios termos (2001: 355), uma "gramática geradora de condutas", apreendida por meio de processos de socialização, sem uma mediação intelectual, podendo "ser definido, por analogia com a gramática generativa de Noam Chomsky, como o sistema dos esquemas interiorizados que permitam engendrar todos os pensamentos, percepções e as ações característicos de uma cultura, e somente esses." (2001:349)

Compreendo a formação, tanto do leitor quanto do escritor, como um longo processo de apreensão de certas disposições e um conjunto de gestos (desde a construção da necessidade da leitura, até as estratégias de seleção e acesso ao objeto de leitura, passando pelo movimento de recolhimento além do pronunciamento sobre as leituras efetuadas) que compõe o que podemos chamar de habitus da leitura e da escrita, como processos de socialização primários ou secundários. Estas disposições são, portanto, condição prévia e necessária para que uma criança lance-se à exploração ativa e cognitiva das regras de produção e leitura de material escrito.

De acordo com Berger & Luckman (1985), a realidade objetiva externa é interiorizada por meio de um processo dialético, exteriorização, objetivação e interiorização, sendo a interiorização, a apreensão ou interpretação imediata de um acontecimento objetivo como dotado de sentido, tornando-se objetivamente significativo. Este processo não resulta de criações autônomas de significado: o indivíduo assume um mundo pré-existente.

Os autores definem o processo de socialização como "a ampla e consistente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela"(1985:175), sendo a socialização primária a "primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, e em virtude da qual torna-se membro da sociedade", enquanto a socialização secundária é compreendida como "qualquer processo subsequente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade".

Como os processos de interiorização da realidade objetiva se dão por intermédio da mediação de indivíduos que se tem em alta conta (como os pais, ou familiares próximos, nos processos de socialização primária, por exemplo), o confronto da realidade social interiorizada na infância com a realidade social mais ampla gera conflitos e resistências: "são necessários graves choques no curso da vida para desintegrar a maciça realidade interiorizada na primeira infância. É preciso muito menos para destruir as realidades interiorizadas mais tarde" (Berger & Luckmann, 1985: 190).

Considerações finais

Se compreendermos, portanto, a escrita como objeto social, a formação de um valor simbólico socialmente partilhado em torno da leitura e da escrita na educação infantil é extremamente recomendada, para que estas disposições se tornem duráveis, favorecendo não apenas a aquisição das regras de construção do sistema alfabético, mas seu uso social autônomo.

É preciso sublinharmos, também, o papel da educação infantil em especial para crianças dos meios rurais e das camadas populares urbanas, na construção de valor social em torno da leitura e da escrita, uma vez que estas crianças encontram-se em desvantagem em relação às que convivem com adultos letrados em seu meio de socialização primário. Não se trata, aqui, de fazer uma leitura etnocêntrica. Digo desvantagem, obviamente, em relação à cultura escrita. No meio rural e no meio urbano mais populares, as crianças têm, também, muitas outras vantagens em relação às crianças que convivem em meio letrado. Podemos dizer que são culturas diferentes.

Se concebemos as crianças como seres cognocentes capazes de construir conhecimento sobre nosso sistema de escrita, antes de nos perguntarmos se devemos ou não alfabetizar na educação infantil, temos de nos preocupar em criar um ambiente alfabetizador e letrado. É neste ambiente que ler e escrever passa a adquirir um valor social e não meramente escolar, de forma que estas práticas possam ser partilhadas, mesmo antes de as crianças se alfabetizarem. São as disposições positivas em torno da leitura e da escrita que as motivarão a mobilizar sua competência cognitiva na exploração deste objeto de conhecimento, tanto quanto são capazes de conhecer, sem qualquer ação sistemática externa e institucionalizada, como se solta pipa, como se jogam videogames, como se usam as funções básicas de um aparelho celular, entre tantos conhecimentos que as crianças adquirem motivadas por necessidades construídas nas redes de relações sociais.

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Publicado em 04 de abril de 2006

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