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Caçadores de Eclipses

Pablo Capistrano

Resolvi observar o eclipse solar do último dia 29 de março de 2006, em Tabatinga, somente por causa do Raul Seixas. Numa música, que nunca me sai da memória, ele dizia: "vocês só vão entender o que eu falei no esperado dia do eclipse". Dizem que quando Raul morreu houve um eclipse. Não sei. Talvez tenha sido um da Lua, ou mesmo um eclipse simbólico para a música brasileira. Sempre achei que Raul Seixas foi uma espécie de Roberto Carlos do mal (na melhor acepção da palavra "mal" e na melhor acepção da expressão "Roberto Carlos", não importando o que ela signifique). Dotado de uma extraordinária capacidade de manter-se entre as classes, Raul se comunicava com o peão e com o doutor com o mesmo tipo de desenvoltura que sorvia, matinalmente, seu copo de vodka com limão nas padarias da vida. Mas o tipo de eclipse que Raul caçava parecia ser bem diferente do tipo que houve em Natal e cercanias no último dia 29.

Cheguei em Tabatinga às cinco da manhã com o amigo Marcos Neves. Já havia uma pequena multidão de carros, ônibus, pessoas com sotaques estranhos, chapéus bizarros e aparelhos esquisitos. Toda uma parafernália fotográfica estava montada, com seus filtros, suas lentes especiais e seus operadores excitados com a proximidade do fenômeno. Um sujeito com sotaque de pesquisador da USP corria de um lado para o outro, com um relógio na mão, gritando: "Vinte minutos para o Sol e quinze para a totalidade! Vinte minutos para o sol e quinze para a totalidade!". Senti medo de que algo sinistro fosse acontecer. Por um momento tive receio de que o sujeito, de tão excitado que estava, fosse pular do barranco na hora da totalidade. Fiquei imaginando como seria poético para um astrofísico morrer no momento dessa tal "totalidade", quando a luz do dia desaparece e uma quase noite toma conta do mundo.

Os caçadores de eclipses de Tabatinga pareciam homens de razão e de ciência. Investigadores do cosmo. Desbravadores dos mistérios naturais. Magos modernos com seus truques matemáticos e suas engenhocas eletrônicas. Mas, apesar da técnica, pareciam estar tomados do mesmo espanto inquietante e da mesma busca da beleza misteriosa do mundo, que assolou os agricultores da Timbauba, no alto oeste potiguar, terra de minha avó, durante um outro eclipse na década de 1940. Minha avó contou que as pessoas acreditaram que era um sinal do dia do juízo e muita gente andou confessando seus pecados sexuais para esposas e maridos.

Uma antiga tradição babilônica admite que um eclipse do sol é sinal de desgraça. Um momento no qual, forças selvagens e sem lei que habitam o mundo noturno da lua, encobrem a visibilidade consciente do sol. Foram necessários milênios de esforço humano para transformar um eclipse num inofensivo espetáculo estético e retirar de seu entorno, esse conteúdo fantasmagórico que povoava os sonhos dos povos antigos. Mesmo assim, olhando o furor quase místico dos operadores de engenhocas eletrônicas, cheguei a pensar, por um momento, que as sobras desses sonhos terríveis ainda estavam lá, subsistindo às explicações e às previsões matemáticas. Provavelmente Raul Seixas teria gostado mais de um outro tipo de Eclipse. Talvez ele se sentisse mais à vontade tendo presenciando o evento em Pipa (junto com as fadas, os sacis e com os seres extraterrestres daquela praia) e não em Tabatinga ou na base militar da Barreira do Inferno. O fato é que há algo de inútil num eclipse. Algo de misterioso e poético que ultrapassa o sentido de toda ciência e de todo cálculo astronômico. Algo que move o homem a sair de casa, de madrugada, para ver o sol perder a força e pensar que é bem possível que ele desapareça um dia, fechando para sempre no silêncio de um mundo morto, todos os dramas e comédias dessa vida. Isso aí Raul, no final, você tinha mesmo razão. A gente só vai entender o que você falou no dia do eclipse particular. No dia que nosso sol pessoal for obscurecido pelas forças sombrias que moram no interior de nossa carne de macaco. Talvez seja esse um eclipse que denote um forte estado embriagado de se perder, nem que seja por dois minutos, todas as nossas confortáveis certezas eletrônicas, e fazer com que o mundo apareça ao homem tal qual ele é: infinito e sem porteira.

Pubicado em 11/4/2006

Publicado em 11 de abril de 2006

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