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Novos Horrores

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Data triste a que foi comemorada essa semana. Data sombria. Vinte anos atrás um dos reatores da usina de Chernobyl explodiu espalhando radiação e câncer numa nuvem de morte invisível. Ninguém sabe ao certo o número de vítimas. O horror radioativo é uma novidade da era da revolução científica. Difere substancialmente do horror natural porque sua origem tem a ver com as escolhas humanas.

No início da cristandade o problema do mal assolava o pensamento de muitos filósofos cristãos. Se Deus era onisciente, onipresente, onipotente e sumamente bom, como poderíamos explicar o mal? Ou Deus o permitia, e então não seria sumamente bom; ou Deus não poderia combatê-lo, e então não seria onipotente. Se Deus não soubesse do mal sua onisciência estaria posta em questão. Se não alcançasse o mal, se não estivesse onde o mal está, não estaria em todos os lugares. Este embaraço teológico levou Santo Agostinho a propor uma solução curiosa. O mal não existiria. Se o bem é o que existe, é a vida, o Ser; o mal, como seu oposto, seria o nada, a morte, o inexistente. Como o nada não existe o mal só poderia ser coisa nenhuma. Então haveria só o tal pecado. Uma inversão estranha na hierarquia dos bens, produzida pelo livre arbítrio dos homens.

Até o grande terremoto que arrasou Lisboa em 1755 o mal ficou guardado na caixa das escolhas humanas. Foi preciso a intervenção de Voltaire para que a consciência da existência da dor injustificada voltasse a perturbar o sono da humanidade. Entre as tragédias naturais e as humanas, as segundas assustam mais. Assustam porque lançam o homem na iminência de colocar em questão suas crenças, seus valores e suas ilusões acerca da ordem natural das coisas. O horror natural muitas vezes escapa à ideia de previsão e controle tecnológico. Por isso o esforço da ciência em tentar prever e controlar a natureza e a luta de se reduzir seu impacto à interferência das escolhas humanas. Assim o furacão que destruiu Nova Orleans poderia ter seus efeitos minimizados se Bush tivesse levado em consideração as previsões dos climatologistas. O Tsunami que lavou a costa do Índico poderia ter matado menos gente se houvesse um tal sistema de prevenção de ondas gigantes.

O horror humano é, aparentemente, mais confortável, porque cria a sensação de que há uma razão, uma causa, uma justificativa plausível para explicar o mal. Mas, olhando por outro ângulo, o horror humano, como o horror de Chernobyl, também nos lança numa encruzilhada. O homem desenvolveu um sem número de pequenas maravilhas tecnológicas. Inventou a mariposa quando quebrou o átomo, quando usou o conhecimento acerca da força da gravidade para colocar macacos e cachorros em órbita da terra, quando formalizou a lógica para gerar máquinas que parecem pensar melhor do que nós. Mas, a velha dificuldade de se prever e controlar o horror humano continua. Continua porque o homem falhou e falha em prever e controlar a si mesmo. Falhou e falha sempre em derrotar seu maior inimigo, o seu maior predador, o seu maior algoz. A sua incapacidade de evitar a sua própria destruição, produto da ingerência de suas próprias carências, parece ser o maior vexame da humanidade.

Tão inteligentes e tão inaptos. Tão fortes e tão frágeis. Tão absolutamente seguros de seu poder e tão instáveis diante da própria incapacidade de usar esse poder para evitar o horror. Lembrar do horror de Chernobyl, vinte anos depois, é lembrar desse cheiro recorrente de apocalipse que acompanha o homem aonde quer que ele vá. Lembrar aquilo que ninguém deveria esquecer. Que a mão que afaga é a mesma que apedreja e que a mente que constrói as maravilhas do mundo é, seguindo uma misteriosa contradição, a mesma que ajuda a cristalizar e espalhar o horror. Um curioso deslize estético no design dos filhos de Caim.

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Publicado em 02 de maio de 2006

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