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Seus Olhos

Pablo Capistrano

Ando meio desconfiado da modernidade. Acho que no fundo sempre fui meio arcaico. Gosto de coisas velhas e sinto o cheiro das coisas velhas nas coisas novas. Talvez seja mesmo uma percepção curiosa sobre o tempo que me faz ver o velho no moderno e enxergar, sem separar em caixinhas distintas, o que foi feito desde sempre.

Ando vendo antigos rituais de possessão nas festas de música eletrônica. Velhos símbolos de civilizações mortas pendurados nos pescoços de garotos e garotas de quinze anos. Chaves de antigas angústias. Sinais de ansiedades medievais e ritos de passagem velhos e mofados brilhando em letreiros luminosos. Repetimos o nome de nossos mortos. E são os nossos mortos que conversam conosco quando deitamos para dormir e ouvimos, naquele estágio letárgico que antecede o sono, suas vozes sussurradas. Eles dizem que estão em nós. Que moram em nós. Que continuam em nós. Temos os olhos de nossos mortos. A pele de nossos mortos. A urina ácida de nossos mortos. Exalamos suas vidas. Devemos a nossos mortos todo o nosso tempo, com toda a glória e toda a ruína de nosso tempo.

Andei pensando outro dia, de onde vinham meus olhos. Sim, porque meus olhos continuam, estranhamente, nos olhos da minha filha. Alguém me disse: "sua filha tem seus olhos". Mas de onde vêm meus olhos? Seriam meus olhos uma invenção minha, ou teriam eles outra origem, outra fundamentação? Então resolvi visitar uma irmã de criação de meu avô na cidade de Mossoró, no Oeste do estado do Rio Grande do Norte. Um lugar quente. Uma capital sertaneja cercada por fantasmas de morte, escravidão, dor e resistência. Quanta dor e quanto sangue não devem ter sido derramados para que aquela cidade surgisse? Porque uma cidade se faz com sangue e com dor, e não apenas com sinais de júbilo e glória, com festas e acordos políticos de encantamento. Para que eu entenda meus olhos, ganho de presente, em Mossoró, a foto de uma mulher que morreu há muito tempo.

Seu nome era Aurora. Ela casou nova, com um tropeiro que morreu numa viagem pelo sertão. Naquele tempo morrer cedo era muito comum. Então Aurora ficou sozinha, com dois filhos homens, crianças ainda. Pequenos demais para entender que a dureza do mundo exigia de todos os que o habitam a terra, uma rigidez de propósitos sem conta. Solitária Aurora teve que abandonar um dos filhos. O que poderia fazer uma mulher de vinte e poucos anos, viúva de um tropeiro morto no sertão, nas primeiras décadas do século vinte? Ela entregou seu filho para ser criado pelo tio, um proprietário de terras do alto oeste potiguar que tinha uma máquina de descaroçar algodão. Não sei o que significa ter uma máquina de descaroçar algodão em 1920, mas acho que deve ser algo de grande importância.

Esse garoto, que foi abandonado pela mãe, cresceu, casou e teve uma filha. Essa filha ainda é viva. Conseguiu abandonar a terra seca em que nasceu, fugiu da fome, da morte e do analfabetismo, e vive viajando pelo Brasil, trabalhando com capacitação de professores em comunidades rurais. Sem saber, Aurora continuou naquele garoto, que era meu avô. Continuou na filha dele que é minha mãe. Continuou em mim e na minha filha. Sem saber, Aurora deixou que seus olhos sobrevivessem depois que ela partisse. Fez com que seus olhos continuassem pelo tempo. Hoje os olhos de Aurora compõem, de um modo ou de outro, o rosto da minha filha. Por isso eu sei que meus olhos não são meus. Por isso, por essa foto que ganhei nessa viagem à Mossoró, sei que meu corpo não é meu. Que minha alma não é minha. Que se eu vivo hoje, é porque tomei a vida de empréstimo, de todos os meus mortos. Como eu ia dizendo, ando meio arcaico esses dias. Ando meio lento, pensando que o tempo, esse rei sem forma que tanto nos assusta, pode ser simples, como simples e sem cor é uma foto antiga, que depõe sobre nossos olhos e nossos estranhos e inocentes sonhos de imortalidade.

Pubicado em 8/5/2006

Publicado em 09 de maio de 2006

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