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Escravos X Senhores: papel da Justiça na libertação dos cativos

Leonardo Soares Quirino da Silva

No século XIX, escravos moveram pelo menos 400 ações para garantir seu direito à liberdade

Mesmo na sociedade escravista brasileira do século XIX era possível aos escravos entrarem na Justiça contra seus senhores e ganharem sua liberdade, mesmo que depois tivessem que lutar o tempo todo para mantê-la, como revelaram as pesquisas da professora Keila Grinberg (Unirio/Ucam).

Com o título "Advogados e escravidão na Corte Imperial", o trabalho foi apresentado no dia 9 de maio de 2006 como parte do segundo ciclo de palestras Rio, Capital Imperial, promovido pelo departamento de História da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Keila estudou os 400 processos movidos por escravos contra seus senhores, julgados no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro entre 1808 e 1888. Em metade desses litígios, conhecidos no jargão jurídico da época como ações de liberdade, os escravos ganharam. Havia, ainda, a ação de manutenção da liberdade - para assegurar a liberdade anteriormente conquistada - e a de escravidão - em que os senhores tentavam reescravizar uma pessoa. Daí as histórias de ex-escravos que sempre levavam presas aos corpos suas cartas de alforria.

Outro dado interessante revelado pela pesquisa era que mesmo os que perdiam em primeira instância podiam ganhar no Tribunal da Relação do Rio. O tribunal recebia recursos de julgamentos realizados nas províncias do centro-sul do Brasil. Os recursos aos processos movidos nas atuais regiões Norte e Nordeste eram julgados no Tribunal da Relação de Salvador, que não foi objeto da pesquisa.

Quem eram os advogados

A participação de juízes e advogados na libertação de tantos escravos chamou a atenção da pesquisadora para essas categorias profissionais na tentativa de responder à pergunta se eles eram abolicionistas.

Em razão do grande número de processos, Keila decidiu se concentrar nos advogados e, refinando sua pesquisa, na parcela dos que tinham atuado em mais de cinco processos, encontrando 26 pessoas, que foram, na medida do possível, objeto de estudo detalhado.

A análise dos dados mostrou que esses profissionais atuaram defendendo os interesses tanto dos senhores quanto dos escravos nas diversas ações.

Keila investigou, ainda, a origem social dessas pessoas, confirmando as hipóteses apresentadas por José Murilo de Carvalho em Construção da Ordem/Teatro de Sombras, de que não havia homogeneidade social, não eram todos membros da elite, ao contrário do que pode supor o senso comum.

A professora explicou que, na primeira metade do século XIX, o diploma de advogado era procurado por pessoas que queriam ir para o governo, não necessariamente advogar. "Com a independência, havia um governo a ser montado", ela explica. Por conta disso, houve o que ela chamou de o primeiro boom na busca de uma carreira no Brasil.

Esse movimento produziu dois resultados ao longo do século XIX. O primeiro, que, depois de 1860, a competição pelos cargos públicos fica mais acirrada em razão do grande número de formados. Seu desdobramento foi o estabelecimento das primeiras bancas da cidade do Rio.

O segundo foi na concessão do direito de advogar. Até então, os clientes eram representados ou por juízes que aceitavam uma causa para seus momentos de folga, ou por senadores que se interessavam pela causa, ou, ainda, por pessoas que tinham seu conhecimento jurídico reconhecido pelos tribunais. Esse reconhecimento, a partir dos anos de 1860, começa a ficar difícil, mais uma vez devido ao grande número de formados em busca de trabalho.

Dessa forma, entre os advogados que atuaram nos diferentes processos temos personalidades como o senador Nabuco de Araújo, Antônio Rebouças, ou pessoas com atuação política menos expressiva como Miguel Borges de Castro Azevedo e Mello - que defendeu Cipriano Barata -, ou ainda pessoas simples como Domingos de Faria, que morreu devendo a farmácia da Santa Casa e o único bem importante que tinha era o diploma.

Entre estes, Miguel Borges é o recordista em processos no Tribunal da Relação, tendo atuado em 27 causas, tendo advogado tanto para senhores quanto para escravos.

Bases legais e Luiz Gama

Segundo a historiadora, quando os escravos entravam com a ação de liberdade eles eram confiados ao curador pelo auto do depósito. O objetivo era evitar que ele fosse alvo de alguma violência por parte do senhor.

Quando o recurso chegava ao Tribunal da Relação, a corte nomeava um advogado para representar o escravo. Em caso de vitória ou derrota, as custas do processo sempre cabiam aos senhores, quer por terem recibo um bem, quer por terem perdido.

Pela falta de uma base legal até a Lei do Ventre Livre, em 1871, os advogados que defendiam os escravos usavam desde princípios do direito romano, as leis de liberdade dos índios de 1680 e 1755 e as Ordenações Filipinas. Segundo a professora, as ordenações foram a principal fonte, mas o que garantia mesmo o sucesso do processo eram os argumentos e as testemunhas apresentadas pelas partes.

Com a lei de 1871, além das testemunhas era necessária a apresentação de prova escrita.

Uma mudança importante nesses processos foi promovida pelo advogado abolicionista Luiz Gama, citado pela professora. Segundo ela, no fim da década de 1860, Gama usou em seus processos a lei de extinção do tráfico negreiro de 1831. Com base nela, alegava que as pessoas com mais de 45 anos na época e seus descendentes estavam em situação irregular porque não poderiam ter vindo como escravos. Isto deu margem para o debate em que se questionava se a lei estava em vigor ou não.

Para ir além

A professora Keila Grinberg publicou dois livros para quem quiser conhecer o tema mais profundamente. O primeiro é Liberata: a lei da ambiguidade - as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX (1994) e o segundo O Fiador dos Brasileiros: escravidão, cidadania e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças (2002).

Outra alternativa é esperar a publicação, pela Casa de Rui Barbosa, de um livro com todas as apresentações realizadas nos dois ciclos de palestras Rio, Capital do Império.

Segundo o chefe do Departamento de História da fundação, professor Antônio Herculano Lopes, o projeto nasceu da intenção dos pesquisadores da casa de fazer um recuo histórico e "pensar a cidade como promotora das imagens e dos símbolos que definem a nacionalidade".

Anteriormente, todas as pesquisas nesse sentido eram voltadas para o período da primeira República e da passagem do século XIX para o XX, fase da atuação do patrono da instituição.

Publicado em 22/05/2006

Publicado em 23 de maio de 2006

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