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Comunidade conta sua história

Leonardo Soares Quirino da Silva

Museu da Maré pesquisa e reúne acervo da maior área favelada da cidade do Rio

Gente é pra brilhar
Não prá morrer de fome
Gente - Caetano Veloso

Inaugurado no dia 8 de maio de 2006, o Museu da Maré foi aberto tirando primeiro lugar em pelo menos dois quesitos: é o primeiro museu brasileiro a ser organizado e montado por favelados e ex-favelados; e depois, até que se prove o contrário, é o primeiro especificamente sobre uma favela.

Segundo o Ministério da Cultura, ele também é o primeiro localizado em uma comunidade, apesar de haver quem conteste essa informação como o jornalista Xico Vargas. Para ele, o primeiro seria a Casa-Museu de Dona Dodô da Portela, que faz parte do Museu a Céu Aberto do Morro da Providência. Neste local surgiu a primeira comunidade desse tipo da cidade e a palavra que viria a ser seu sinônimo, favela. Esse nome foi dado por seus primeiros moradores, soldados dispensados após a Guerra de Canudos.

Contudo, favela é termo que não expressa nem a realidade legal nem a realidade objetiva da Maré. Desde 1994, uma lei municipal integrou toda a região ao planejamento urbano da cidade ao criar o bairro da Maré, porque o bairro que tem o 4o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade abriga na verdade 16 comunidades - palavra que melhor expressa seu estilo de vida - onde vivem cerca 132 mil pessoas, perto de 1% da população do estado.

Os tempos da Maré

A iniciativa de criar o museu é da ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), que desde 1997 mantém atividades de ensino e cultura na região, entre elas a Rede Memória da Maré. São as pesquisas históricas feitas pela rede que serviram de base para se criar o acervo do museu.

Por trás de si, o projeto tem dois objetivos, segundo um dos coordenadores, o professor de história Luiz Antônio de Oliveira:

- O museu mostra para a sociedade, como um todo, que a Maré, independente de ser uma área favelada, é um espaço da cidade e que o morador daqui ou das favelas não é um ser potencialmente violento. Essa é a grande questão. É um ser essencialmente humano, que tem suas virtudes, que tem seus defeitos, como qualquer outro. Fazemos esse trabalho porque não adianta bater no peito e dizer sou "mareense", mas chegar lá fora e se acanhar, não ter o seu valor reconhecido pelo resto da cidade. Então, tem que ser um trabalho de mão dupla, porque se evita o gueto. Para ele, o museu também contribui para a transformação da Maré em um bairro de fato.

A concepção da exposição permanente é do cenógrafo Marcelo Vieira, morador do bairro, e está dividida em 12 seções chamadas os Tempos da Maré. Segundo Luiz a ideia de chamar cada parte da exposição de tempo surgiu durante uma reunião ao notarem sobre a mesa o calendário Família da Maré, de 2005, com fotos doadas por moradores.

Como o ano é dividido em meses, a ideia foi também dividir a exposição em tempos. O primeiro deles é o tempo da água com imagens da região antes da ocupação. Entre essas se destaca uma fotografia panorâmica de Augusto Malta e da casa de Oswaldo Cruz na Ilha do Pinheiro. Atualmente o local faz parte do Parque Ecológico da Vila do Pinheiro. Nesta primeira parte também é possível ver um barco de pesca decorado para procissão religiosa.

O roteiro reserva surpresas, como a reprodução de uma casa de palafitas, que eram características do bairro, apesar de não ter sido a primeira forma de moradia do bairro.

Durante as visitas guiadas, a casa serve de cenário para a encenação de uma das histórias da comunidade "O Casamento na Palafita", apresentada pelo grupo Maré de Histórias, como conta a ex-babá Marilene Nunes, coordenadora do grupo.

O interior da residência foi todo recriado com objetos cedidos pelos moradores. Na casa de um cômodo tem objetos como um pente quente, usado para alisar o cabelo, ou uma "balança" - uma vara de madeira com duas latas - para transportar água.

As complicações para se conseguir água para as casas também está presente nas fotografias do "água do rola", um barril de madeira com dois pneus que era puxado por um arco feito de vergalhão preso às extremidades, ou das meninas transportando latas.

Marilene conta que os moradores da comunidade tinham que pedir para encher as latas e barris nas casas de pessoas que tinham água encanada, em geral fora das comunidades. O problema era que às vezes as latas caíam e ela, como outras meninas, era obrigada a voltar e pedir mais uma vez.

Dentro da casa ela chama a atenção para a lata de cera vermelha no canto, atrás da porta, e para a arrumação da casa, com as panelas e vasilhas de alumínio sempre brilhando. Segundo ela, nos fins de semana se areavam as panelas e se encerava o chão. Como ela diz, "o pessoal era pobre, mas fazia questão de manter suas casas sempre limpas e arrumadas".

Outro recurso interessante para contar a vida da comunidade encontra-se no Tempo do Cotidiano. Uma parede de tijolos sem emboço reproduz os atuais barracos de alvenaria. Pelas janelas e portas é possível ver imagens do dia-a-dia no bairro.

No Tempo das Crianças, o visitante é convidado a conhecer as brincadeiras das crianças ao pisar em caixas com tampo de vidro. Embaixo de cada uma, sobre um fundo de areia grossa, estão expostos, por exemplo, bambolês e piões, ou se ver, em uma parede um antigo carrinho de rolimã.

Logo em seguida, vem o Tempo do Medo formado por um túnel de tecido escuro em que se pisa sobre tábuas, lembrando as antigas passarelas que ligavam as palafitas. Como lembra Luiz, o medo a que seção se refere não se resume à violência urbana, retratada por cartuchos, balas e fotos de casas e paredes perfuradas.

O coordenador nota que na época das palafitas, as mães sempre ficavam com medo de seus filhos caírem no lodo ou, quando a maré subia, de a casa ser invadida por ratos, entre outros problemas que afetavam e afetam a comunidade, como o medo da remoção, tratado no Tempo da Resistência.

Na última parte, Tempo do Futuro, segundo Luiz, houve a intenção de se colocar uma imagem do porvir desejável. Para isso, foi colocado no centro da sala uma maquete doada pela Escola Estadual Bahia. O modelo foi resultado do trabalho proposto pela professora Márcia Alfama para que os alunos retratassem como gostariam que seu bairro fosse em breve.

Luiz declara que a exposição não está fechada e ainda encontra problemas. O Tempo da Feira, por exemplo, teve que ser desmontado porque o morador que tinha dado as barracas havia se esquecido que as tinha dado antes para um vizinho, que pretendia trabalhar como feirante.

Estrutura de museu

Esse "causo", se por um lado revela a natureza comunitária do empreendimento e um quê de amadorismo, por outro talvez esconda as raízes firmes e profundas do projeto.

Ao contrário de algumas iniciativas desse tipo, em que o museu aparece primeiro e depois vêm as pesquisas, no caso da iniciativa dos "mareenses", como eles às vezes se chamam, a Instituição foi a coroação de um longo processo de pesquisa da história da região.

Como dito antes, tudo começou com a Rede Memória, herdeira da videoteca da TV Maré. A este arquivo, com fotos e documentos, se encontra associada uma hemeroteca, coleção de jornais, especializada no tema favela. Todos os arquivos estão digitalizados para permitir a pesquisa rápida por parte dos estudiosos do tema.

Luiz observa que a ideia é criar um arquivo com material que sirva tanto à comunidade quanto a pesquisadores de fora. Ainda segundo ele, estudantes universitários e pesquisadores já usam o acervo em seus trabalhos.

O museu também é sede do Fórum Maré, criado para discutir com a comunidade a função do museu.

Junto com isso, também há a pesquisa de história oral em que se entrevistam os moradores mais antigos. Nas entrevistas, eles contam tanto como aconteceu o processo de ocupação quanto como as modificações. Essas narrativas complementam o trabalho de pesquisa documental.

Esse trabalho também permitiu recuperar os "causos" ocorridos na Maré e que são apresentados pelo grupo de contadores de histórias. Em 2003, foi lançada uma coletânea dessas histórias no Livro de Contos e Lendas da Maré.

Outra atividade que nasceu antes do museu e que continuará a ser realizada são as exposições itinerantes. Essas mostras são autoguiadas e feitas com a apresentação de 25 banners.

Gênesis

Em 2001, durante o evento Museu da Vida, da Fiocruz, a apresentação dos trabalhos de pesquisa da Rede Memória da Maré deu origem a Instituição. Naquela oportunidade, o professor Mario Chagas, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e atual coordenador técnico do Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sugeriu aos integrantes do projeto que montassem um museu.

Contudo, a ideia só começou a tomar corpo em 2004. Naquele ano, o Ceasm foi convidado para montar uma exposição no Museu da República. Foi a partir daí que começaram a reunir os objetos para o museu.

No mesmo ano, foi aprovada a criação do Ponto de Cultura da Maré, dentro do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Esse fato deu novo impulso à criação do museu, que veio a ser inaugurado neste ano.

Museu da Maré

Endereço: Av. Guilherme Maxwell, 26 - Maré (em frente ao Sesi).
Como chegar: pegar a Avenida Brasil no sentido Zona Oeste e, depois de passar embaixo da Linha Amarela, entrar na primeira rua após os quartéis da Aeronáutica e do Exército.
Horário de funcionamento: de segunda à sexta, das 9 às 17h; sábado das 10 às 14h.
Telefone: (21) 3868-6748

30/5/2006

Publicado em 30 de maio de 2006

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