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O Silêncio de Deus
Pablo Capistrano
O Papa Bento XVI lançou uma pergunta inquietante em Auschwitz, esse fim de semana. Depois de confessar em público que falar sobre o Holocausto é muito difícil para os cristãos (especialmente ele, sendo alemão), perguntou por que Deus havia se calado diante do mal. Essa é uma pergunta que trás grandes implicações teológicas e nenhum Papa que se preza poderia deixar de fazê-la.
Deus se cala muitas vezes. Calou-se em Goradze, na Bósnia, quando o massacre étnico dizimou parte da população mulçumana do Vale do Drina. Ou mesmo na época da Segunda Guerra quando os ustasha (croatas católicos) e os chetniks (sérvios ortodoxos) saíram se trucidando e dizimando suas populações civis. Calou-se em Ruanda, calou-se na América em quase quinhentos anos de escravidão e massacres de povos indígenas, e se cala hoje no Sudão, quando o mundo assiste impassível novos massacres dizimando etnias inteiras.
Uma resposta antiteísta, poderia ser a de que Deus é absolutamente transcendente. Está fora do mundo justamente porque, se o mundo tem um autor, esse autor não deveria se misturar com a própria criação, mas, no mínimo, apenas observar o desenrolar das regras que Ele mesmo impôs à ordem natural. Essa resposta pode ser muito desconfortável para quem espera que Deus tutele as ações dos homens e ofereça amparo para as tragédias que nós mesmos construímos. Mas há sempre o apelo ao mistério. A ideia, tão cara à chamada teologia negativa de um Pseudo-Dionisios, de que quanto mais próximo dos mistérios de Deus mais próximo das trevas. Do lugar aonde a consciência humana e a capacidade da razão encontra seu termo. Da esfera na qual qualquer explicação lógica ou qualquer doutrina moral que aponte para o bem ou para o mal se inutiliza.
O fato é que o lamento, em forma de perplexidade, do Papa, mostra que o sentimento de orfandade que a humanidade tem por esse Pai, que muitas vezes parece tão distante de nosso sofrimento, assola até os homens de fé. Aliás, nada mais cristão do que duvidar da própria fé, nada mais fundamentalmente ocidental do que essa ansiedade diante das perplexidades do mundo. Sendo o cristianismo essa mistura tensa entre a moralidade judaica e a racionalidade grega (Jerusalém e Atenas, fé e racionalidade), nada mais cristão do que esse vacilo, essa dúvida, esse assombro diante da necessidade de se compreender as contradições de Deus sem deixar de acreditar na Sua perfeição.
Eu, como um bom descendente de escravos africanos que cultuavam as forças da natureza, de cristão-novos espanhóis que trouxeram, nos genes a lei de Abraão para o sertão nordestino, de velhos celtas do vale do rio de Paiva que levavam a imagem da virgem na luta contra os bérberes do norte da áfrica e dos índios cariris da Paraíba que cultuavam a jurema sagrada; eu, sendo esse vazio que compõe o povo brasileiro, esse não-saber-quem-sou que gera a força étnica de um povo indefinido, fiquei contente em saber que o Papa também se angustia. Que ele também não entende Deus. Que também roga uma luz para a compreensão do Seu silêncio diante das misérias do mundo. Tenho medo daqueles que têm certezas poderosas, dos que não vacilam, dos que se dizem justos, dos que não erram, dos que não têm dúvidas. Sinto que falta um pingo de humanidade em qualquer sujeito que se arrogue a ser porta voz de qualquer verdade, impositor de qualquer doutrina, servo do absoluto. Por isso fiquei feliz com o fato do Papa, que durante tanto tempo foi esse fiscalizador da doutrina, herdeiro do posto de Torquemada, que impôs tanto sofrimento a parte de meus ancestrais - índios, negros e judeus - tenha admitido sua angústia diante do silêncio de Deus. Só há fé genuína diante da dúvida. Uma fé de certezas não é fé. É preciso enfrentar o silêncio de Deus, Suas terríveis e inexplicáveis contradições, para saber até onde você aguenta arrochar o cadarço do seu sapato. O resto são palavras vazias lançadas na poeira.
Pubicado em 30/5/2006
Publicado em 30 de maio de 2006
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