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Pelo direito de ser de primeira categoria

Leonardo Méllo

Sociólogo, pesquisador do Ibase

Texto extraído do Boletim Orçamento e Democracia, n.18, Jul-Out 2001

A Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância, ocorrida no Rio de Janeiro em julho, trouxe grande esperança a todos e acenou com a chance de que algum dia possamos nos tornar pessoas civilizadas, habitando um mesmo espaço físico. Pessoas sim, e não um país, um povo ou outro eufemismo qualquer. O racismo é um entrave à construção de uma sociedade civilizada tão grande quanto a fome. Como aconteceu na Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, é preciso se mobilizar pela modificação e o evento - que reuniu 1.500 delegados eleitos durante 3 dias na Uerj - foi uma boa amostra do que poderá ser a III Conferência Mundial promovida pela ONU, de 31 de agosto a 7 de setembro na África do Sul. Mas o que isso tem a ver com o orçamento municipal? Trata-se de uma arena utilizada por organizações civis para lutar contra a desigualdade social . E, no caso de derrubar a discriminação racial, pode contribuir muito.

O brasileiro se orgulha de seu jeitinho, alegria e cordialidade. Se possuímos tais características, ao mesmo tempo, somos recordistas em pobreza e riqueza simultaneamente. Ou seja, em concentração de renda, com uma segregação social que faz a África do Sul usar a expressão brasilidade como sinônimo de desigualdade. E com um grau de violência sobre as camadas mais pobres que beira a crueldade. Será que associando esses dois fatos, alguém pode continuar achando o brasileiro alegre e cordial? O jeitinho, então, é o recurso que temos para colocar a lei na lixeira.

Só existe algo melhor que ser rico: é ser rico em um país como o Brasil, pois cá nem a lei se aplica para os ricos. E destes os pobres têm pena quando se sugere tratamento igual ao de qualquer pessoa - uma injustiça sem tamanho. Que tipo de cultura é essa em que os pobres se apiedam dos ricos, em que os menos afortunados acham os outros ungidos por Deus e a si mesmos merecedores de seu espaço social?

Maquiagem social

É corrente a ideia de que os pobres não pagam impostos e, por isso, não deveriam utilizar os serviços públicos. Irmão desta excrescência é o orgulho de sonegar impostos, de burlar o Estado. Não sejamos maniqueístas, tais sentimentos não são exclusivos dos ricos, permeiam todas as classes sociais.

A realidade é que o Brasil não é um país pobre, possui muitos pobres. Todos concordam com isso, e só até esse ponto encontraremos consenso. Na hora de fazer as contas, e apontar de onde sairão os recursos para acabar com a desigualdade, é como se todos se levantassem da mesa. Afinal, cada um de nós acha que já faz sua parte, agora o problema é do Estado. A conclusão é que não se avança e, com a desculpa formal, esquivamo-nos de ser solidários. Ou melhor, a solidariedade passa a ser uma opção individual e não um compromisso que sustenta a sociedade.

Bem que poderíamos tentar entender melhor essa questão, só que de uma perspectiva diversa da qual estamos acostumados, utilizando como variável privilegiada a discriminação de raça. Por que a pobreza não acaba? Acaba, mas não para todos. E se não acaba, será pelo mesmo motivo que a riqueza não é distribuída?

Só há um jeito de reduzir a pobreza, e não será por obra e graça do Divino Espírito Santo. Do mesmo jeito que a maioria das pessoas é prejudicada por não ter acesso a bens e serviços públicos, renda e riqueza, outras tantas são beneficiadas pela inépcia do Estado em não cumprir seu dever, recolhendo impostos e, porque não dizer, distribuindo renda e o cinismo dos afortunados, que consideram sua contribuição mais que suficiente.

Uma pessoa de classe média pode considerar impossível sobreviver com menos de R$ 2 mil, mas continuará pagando salário mínimo para sua empregada. E usando a mesma quantia em guloseimas, mesada, academia de ginástica ou salão de beleza. Ninguém joga dinheiro pela janela, mas quem disse que seria fácil acabar com a pobreza - ou melhor, com a miséria e os mecanismos de perpetuação da mesma, reforçados diuturnamente? Ainda mais quando tal pobreza adquire contornos de discriminação racial, o que se constitui em outro motivo para esconder a realidade.

Quem ganha quando os impostos não são pagos? Por que se orgulhar de não contribuir, de sonegar? A quem interessa confundir a questão racial com a social? Nem todos ganham, mas quem ganha tenta vender a ideia revolucionária aos demais incautos, e esses sim perdem. Perdem principalmente porque dependem dos serviços públicos, como saúde ou educação, dependem da segurança pública, da justiça, da fiscalização sanitária e da observância à legislação. A maquiagem social que encobre o racial presta-se à fábula da cordialidade e da coesão nacional, isso citando superficialmente.

Dizem que um dos principais problemas do Brasil é a focalização das políticas sociais. Focalizar significará, neste contexto, gastar com quem precisa, deixando quem não precisa pagar por seu próprio conforto. Mais uma vez, o raciocínio pode parecer razoável, mas há diversas barreiras para torná-lo uma prática.

De algum modo os mais afortunados devem pagar pela conta da desigualdade. Culpar os mais pobres por seu próprio infortúnio já está ficando ridículo, e estes não possuem os meios para a manutenção de sua dignidade sem o apoio estatal. Qual a ideia-força do problema social brasileiro? A desigualdade é social e ponto. Já está na hora da questão racial ser reconhecida como problema específico, que deve ser tratado de forma séria. E não como efeito colateral da concentração de renda.

Os dados do Ipea desmentem o mito da democracia racial, a não ser para aqueles que imaginam não haver qualquer problema hoje. Educação, analfabetismo e renda são ruins na média do brasileiro, e são muito piores para os negros e pardos. Se isso não diz nada por si só, nada mais dirá.

Patrocinadores do racismo

Vários são os frontes dessa batalha, mas escolhemos o orçamento municipal como espaço privilegiado de nossa ação política. Afora o lugar comum de dizer que sem dinheiro não há políticas públicas, o orçamento tem sido o instrumento utilizado pelos movimentos sociais e ONGs, só para citar alguns atores políticos, colocando na ordem do dia a discussão sobre as desigualdades sociais, a precariedade dos serviços públicos, a violência e a falta de assistência aos pobres. Se não é efeito colateral, mas fato gerado de outras desigualdades, por que o racismo não pode entrar nessa pauta? A qualidade da educação pública impede as populações pobres de disputar melhores empregos e salários, mas não há como melhorar a educação sem recursos.

Há alguns anos o Brasil goza de instrumentos de planejamento considerados modernos, ou pelo menos estáveis, como a existência de uma lei orçamentária, um código tributário, legislação trabalhista e previdência social, dentre outras conquistas.

Apesar de todo o arcabouço legal e institucional com o qual poderíamos contar, também somos conhecidos como o país da legislação inútil, onde temos fé em Deus, mas também nas leis. Todos creem que, mesmo individualmente descumprindo a lei, por algum motivo obscuro, as leis funcionariam e se tornariam fortes, instituições confiáveis.

Recentemente, assistimos o esforço do governo federal em aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), causando reações da direita à esquerda. Alguns sugeriram que fosse criada sua contrapartida social para equilibrar a atenção do poder público em todos os níveis, o que não é má ideia. Há alguns anos, e ainda hoje em alguns municípios, conseguir acesso aos dados do orçamento municipal constituía-se uma aventura. Mesmo havendo legislação obrigando a divulgação, seu controle por tribunais de contas, a participação legislativa e popular, os orçamentos públicos resistem à luz, como vampiros.

A bem da verdade, as leis orçamentárias não têm vontade própria, as pessoas sim. Algumas classes sociais ou atores políticos não possuem interesse em dar transparência ao orçamento ou às propostas que ensejam. O que estaria por trás dessa postura, contrariando a legislação? Com certeza não serão boas intenções. A perpetuação dos mecanismos de desigualdade racial e social é um dos vários motivos.

Se hoje quisermos vislumbrar quem são os beneficiários dos recursos públicos, teremos um conjunto de obstáculos pela frente, classificados como políticos e técnicos, como a dificuldade de acesso a documentos considerados sigilosos, aos dados da execução orçamentária, às informações das licitações públicas etc. Mas aqui a ênfase se dará aos motivos políticos, pois a técnica serve aos objetivos políticos, ao invés de escravizá-los.

Com os mecanismos atuais ainda fica difícil demonstrar como os orçamentos municipais atingem os diversos estratos sociais. Em parte, isso se explica porque os orçamentos não são elaborados com a finalidade de demonstrar tal informação. Por outro lado, quem dá sentido aos orçamentos somos nós, a sociedade organizada. Por isso, a lei orçamentária anual deve atender às demandas que ao longo dos anos nós a submetermos.

Faz-se urgente que os orçamentos públicos municipais sejam ainda mais informativos, úteis e cumpram sua função de reduzir as desigualdades, tanto regionais quanto raciais. Para isso, devemos demandar tais dados. Se reconhecermos publicamente o conflito racial, que muitos teimam em apontar como conflito de renda ou de classe social, estaremos dando um grande passo para melhorar a sociedade.

O que temos feito, no nosso dia-a-dia e só para citar uma delas, para reduzir a intolerância racial? Seria razoável pensar que tudo vai para seu devido lugar naturalmente? A impressão que fica é que esse raciocínio domina as ações, ou a falta delas, perante os agentes responsáveis pelas decisões sobre as políticas públicas.

Como dizia Betinho, "quem tem fome, tem pressa". Não dá para esperar nem mais um minuto. Quem é tratado como cidadão de segunda categoria também não pode esperar.

Publicado em 30 de maio de 2006

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