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Política de cotas tornou mais visíveis problemas da universidade pública

Leonardo Soares Quirino da Silva

A entrada de estudantes cotistas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) tornou mais visíveis os problemas estruturais comuns a todas as universidades públicas e, até o momento, desconsiderados no debate público sobre a adoção dessas políticas. Esse é um dos resultados preliminares da pesquisa realizada pelo professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto a pedido da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH).

O interesse em políticas de direitos humanos e sua relação com a questão racial e as populações excluídas levaram a Secretaria de Estado de Direitos Humanos a iniciar o estudo sobre a adoção da política de cotas na Uerj em 2004.

A pesquisa está sendo realizada por meio de convênio entre a SEDH e o Instituto de Segurança Pública (ISP) e faz parte de ampla iniciativa para se criar um centro de produção intelectual dentro das secretarias de estado do governo do Rio de Janeiro.

Doutor em antropologia pela Boston University e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto foi chamado para liderar o projeto por sua experiência em pesquisar a universidade. Sua dissertação de mestrado Práticas acadêmicas e o ensino universitário: uma etnografia das formas de consagração e transmissão do saber na universidade, publicada pela Editora da UFF, em 1999, é sobre as formas de produção do conhecimento dentro da academia. Em seu estudo, ele comparou como esses processos ocorriam nos cursos de medicina, artes (música) e ciências sociais da UFF e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Quando sua equipe começou, segundo o pesquisador, o "tema estava premente, porque todo o debate no jornal tinha começado e foi uma conjunção de interesses acadêmicos e deles (da SEDH) fazer não uma avaliação meramente política, mas uma avaliação academicamente fundamentada da política".

Ao longo do trabalho, a pesquisa se tornou uma análise sobre o que envolve essa política na prática, "ou seja, quais são as linhas de força, o contexto em que são aplicadas e os efeitos dessas políticas em termos acadêmicos, sociais e das trajetórias individuais pós-cotas".

Para isso, como ele explica mais adiante, ele e seu auxiliar tomaram o debate político como objeto e fizeram, também, pesquisa de campo, usando a metodologia da observação participante. Essa metodologia implica que os pesquisadores acompanhem o cotidiano dos estudantes cotistas na universidade.

Esses estudantes foram identificados pela equipe no momento da matrícula, quando foram convidados a participar. Os primeiros contatos permitiram aos pesquisadores ampliar o número de estudantes observados e acompanhar esse processo de dentro de suas redes de relações.

Como começou o projeto?

Quando Paulo Eugênio Clemente Junior (mestrando do Museu Histórico Nacional), meu auxiliar de pesquisa, e eu entramos nessa discussão o debate já estava praticamente montando. Ele se dava em um nível absolutamente fantasmático. Tanto os prós quanto os contras usavam argumentos fabricados segundo sua conveniência, mas sem ressonância com o que realmente acontece na universidade pública no Rio de Janeiro. Obviamente esse é o contexto em que essas políticas estão sendo implementadas e é a partir dele que elas têm que ser discutidas e não em abstrato. Então, nosso interesse não era entrar no debate, porque ele, honestamente, tem pouca relação com o que está acontecendo, mas primeiro tomá-lo como objeto e procurar entender que processos sociais e que processos políticos levam essas pessoas a tomarem essas posições. Depois, fazer um trabalho empiricamente fundamentado, um trabalho de campo, ou seja, participar do cotidiano dos alunos cotistas dentro da universidade - assistindo aula, tirando livro na biblioteca, vendo a questão das avaliações, indo no dia do registro nos cursos - para ver o que realmente acontece com eles, se eles existem como grupo dentro da universidade ou não, que questões eles colocam para a universidade e esta para eles.

Essa é a perspectiva do projeto. Esses são os dados que a gente quer levantar. Para isso, o projeto tem três linhas de pesquisa. A primeira é discutir a construção da igualdade dentro do Estado brasileiro, ao ver como essas políticas particularistas se encaixam dentro das concepções de igualdade e das práticas políticas do Estado. A segunda é qual é o impacto dessas políticas nas identidades que elas procuram atender ou pelo menos dizem que visam a atender, ou seja, qual seu impacto na dinâmica identitária das pessoas beneficiadas e não por essas políticas. O terceiro é qual a relação entre elas, como elas se articulam, como elas impactam nas estruturas de poder e nas representações sobre mérito, sobre conhecimento, trajetória e outras que já existem nos cursos universitários. Aí, tem o distanciamento dessa pesquisa com relação ao que estava sendo apresentado como investigação sobre as cotas porque não tomamos a universidade nem como um espaço homogêneo nem monolítico, mas como um conjunto de instituições, de práticas, de produção de poder e, obviamente, como um centro de produção de conhecimento que afeta todos esses elementos que já citei.

Assim, mérito na faculdade de medicina não é a mesma coisa que mérito no curso de ciências sociais. Por isso dividimos por cursos. A ideia era pegar cursos de alto prestígio social, como medicina e odontologia; cursos de baixo prestígio social, como serviço social, pedagogia e ciências sociais; cursos localizados tanto no campus do Maracanã quanto no campus da Baixada, para ver se havia alguma diferença. Na prática, a pesquisa se focaliza especialmente em medicina, ciências sociais e pedagogia. Temos dados de odontologia, mas muito menos do que de medicina. Bom, também temos divisões de área entre ciências aplicadas e ciências puras, ciências humanas e ciências biomédicas. Não fomos nos cursos técnicos por falta de possibilidade - só tem dois pesquisadores, tornando absolutamente impossível cobrir 15 cursos. Nos concentramos nesses cursos também porque eram os cursos que estudei em minha dissertação de mestrado, o que permitia fazer uma comparação temporal ao usar o mesmo instrumental analítico para levantar questões e fazer inferências sobre os cursos estudados.

Bom, então, em algum momento você tomou o debate sobre cotas como base?

Não, na verdade ele é parte do objeto. Não parti dos termos do debate. Fui a campo para ver onde o debate é produzido e como ele se articula.

Como esse debate está organizado hoje?

O debate tem uma trajetória. Quando começamos, em 2004, ele já estava instaurado e se dividia basicamente em dois campos, os contras e os prós, cujos argumentos, a grosso modo, podem ser resumidos assim. Os prós diziam que a política de cotas era uma forma de política compensatória, que a universidade tradicionalmente é um espaço elitista e que essas políticas iam ajudar a sociedade brasileira a superar o racismo. Os contras defendiam que a universidade era um espaço da meritocracia, onde não cabiam políticas seletivas, mas a produção individual; o racismo à brasileira ou a questão racial no Brasil não poderia ser resolvido dessa forma por ter uma dinâmica diferente do racismo à americana, que foi resolvido assim, por políticas públicas e voltadas para a questão e, finalmente, também diziam que, ao contrário do argumento dos pró-cotas, o racismo não seria superado, mas ele seria um elemento adicional, seria uma espécie de consciência raivosa das distinções raciais no Brasil. Essas são, basicamente, as posições dos dois campos.

O interessante é que nenhum deles nunca se pergunta o que a universidade empiricamente faz ou pode fazer. Primeiro, é absolutamente falso que a universidade como um todo seja elitista. Por um lado, os cursos de ciências sociais e pedagogia, por exemplo, em sua vasta maioria, já eram, antes da cota, preenchidos em sua vasta maioria por pessoas que saíam das escolas públicas e que se declaravam ou se consideravam negros ou pardos. Assim, o perfil desses cursos não mudou muito. Por outro lado, não é verdade que só a meritocracia conta nas trajetórias acadêmicas em geral. Em contraponto, nunca encontrei uma prova empírica de que considerações raciais ou racistas tivessem um peso agregado visível no constrangimento dessas trajetórias. Há uma série de outros elementos que funcionam aí, como capital cultural, relações pessoais, que obviamente se entrecruzam com a origem social que, no caso brasileiro, obviamente, se entrecruza com sua identidade racial ou sua identidade atribuída. Contudo, é bastante questionável que realmente a universidade disfarce identidades raciais.

Por fim, existe um pressuposto embutido nos dois argumentos de que a universidade é uma espécie de máquina perfeita de engenharia social, que ela seria capaz de, pelo simples fato de se entrar nela, de se alcançar uma trajetória social diferenciada. Isso também não é empiricamente verificável porque, entre outras coisas, as universidades brasileiras passam por um processo de desmantelamento, de sucateamento, de desvalorização social extremamente complexo e nada disso é colocado no debate. É como se estivesse debatendo cotas para estudantes brasileiros em Harvard - o mito de Harvard - e não na Uerj, na UFRJ e na UFF.

E na universidade real, qual o grande problema do estudante cotista? O acesso às fontes de conhecimento, mais concretamente aos livros e aos textos que não estão disponíveis nas bibliotecas das universidades. As pessoas têm que comprar ou xerocar, o que é caríssimo, o que é complicadíssimo, e esse é um problema estrutural da universidade que não está sendo discutido, o que vai ser uma constante. Voltando a questão do debate, o que acontece com ele também é que não se trata de um debate generalizado na sociedade. Nós temos lugares e campos. Ele acontece principalmente na mídia, na mídia escrita e, especialmente, em O Globo, que de certa maneira instrumentaliza esse debate, como se apresentando como arena para ele.

Os atores do lado pró-cotas são basicamente jornalistas, professores universitários e pessoas do movimento negro, algumas ligadas a pré-vestibulares voltados para a promoção de pessoas carentes. Do outro lado, tem-se também jornalistas. É interessante observar que O Globo oferece os dois lados, com o Ali Kamel se posicionando contra e a Miriam Leitão pró. Quando os debates esfriavam, eles iam e apresentavam um editorial realimentando o debate. Também tinham figuras ligadas aos estudos raciais na antropologia na posição crítica ou contrária às cotas, com diferentes matizes e posições.

O mais interessante é que, por um lado, o debate passa que ele tem muito pouco efeito nas políticas das cotas e, de certa maneira, ele não atinge a sociedade, o que também mostra como as universidades públicas já não são esse local central de investimento para as trajetórias sociais para ascensão. Por outro lado, o debate se esvaziou e mudou de orientação com a própria institucionalização das cotas. Elas estão aí já há alguns anos na Uerj e em várias outras universidades e existe a proposta de serem adotadas pelas universidades federais. Com isso, a discussão deixa de ser se cota é boa ou ruim e que sua adoção levaria à desagregação do tecido social do Brasil em termos raciais e passa a ser uma discussão sobre como manter os alunos na universidade e como garantir que a qualidade do ensino não caia.

De novo, essa discussão toma as feições clássicas da construção da igualdade no Brasil, de políticas compensatórias, em que não se discute, por exemplo, a colocação de mais livros nas universidades, o que beneficiaria todos os alunos e mais especificamente os cotistas, mas, obviamente, procuram mecanismos tutelares de compensação como bolsas específicas, bolsas de pesquisa que pegam os cotistas, o que obviamente mistura várias instâncias da vida acadêmica.

Mas a bolsa também não é importante? Os estudantes pesquisados não alegaram falta de recursos da família para se manterem na universidade?

Realmente é fundamental, mas, de novo, não vamos discutir concretamente. Obviamente as bolsas são poucas, insuficientes, vão se defasar com o tempo. Assim, um livro na estante, de certa maneira, supre muito mais do que dar o dinheiro do livro para cada um dos alunos.

Fora isso, tem-se o problema grave do gerenciamento da carência na universidade. O cotista ganha bolsa, mas o pobre não-cotista não ganha. Contudo, o principal problema é como essas coisas são gerenciadas pelo Estado. A coisa sempre ficou nos termos de se compensa ou então acaba, mas nunca de, a partir da adoção das cotas, se repensar a universidade. Também não se discutiu que o número de alunos da universidade é muito inferior ao número de pessoas pobres e excluídas no Brasil. Então, isso não pode ser a única coisa que se faça a respeito disso.

Não se discute ações complementares no ensino básico, no ensino médio. Isso também não está na pauta do dia. Só para terminar, o argumento dos contrários às cotas de que esses estudantes iriam baixar o nível da universidade não pode ser empiricamente verificável. Inclusive porque o perfil das pessoas que entram não mudou em determinados cursos.

E na medicina?

Mesmo na medicina. Pode haver uma mudança de perfil socioeconômico, mas essa mudança de perfil não necessariamente leva a uma mudança de perfil cultural. A pessoa que escolhe estudar medicina, de certa maneira, já compartilha de certos valores comuns aos outros candidatos e depois aos profissionais. Isso é uma coisa interessante a se observar, que uma vez dentro do curso, esses cotistas se fragmentam, eles viram indivíduos. Com isso, as cotas são um instrumento técnico para entrar na universidade.

No caso das ciências sociais, onde essas coisas têm um valor moral, até pelo próprio éthos, pelos elementos afetivos que definem a identidade coletiva, do curso, tem-se a manutenção da identidade cotista dentro do curso. Mas, de novo, o perfil socioeconômico das pessoas que entraram não mudou muito.

Mas essa observação empírica, além dos problemas estruturais da universidade, revelou mais o quê?

Os professores, por exemplo, não tem como saber quem é ou não cotista e, na verdade, a maioria deles não se importa. Com relação a possível queda do nível, isso é muito contraditório. Nos cursos de alto prestígio, com a medicina, há professores que dizem que o nível caiu e outros dizendo que não, ou os monitores dizendo que não. Esse debate tem um complicador que é o de as pessoas querem dizer como caiu a qualidade do curso, o que na verdade é muito complicado porque não se tem uma metodologia segura para se aferir que há um declínio quantitativo em termos de conhecimento.

O grau de abandono do curso sempre foi muito alto, o grau de abandono da matéria também e aí só se tem como saber o por quê do abandono a partir de uma pesquisa do cotidiano dessas pessoas. A politização do tema também levou a Uerj a fechar as portas para os pesquisadores que estão interessados nos números oficiais. A universidade divulga os dados, mas não a metodologia.

A UFRJ fez um estudo, com o uso de simulações matemáticas para medir o possível impacto da adoção de cotas na qualidade dos cursos. Um dos pontos verificados foi se o desempenho dos primeiros colocados em medicina se repetia no primeiro período e se observou que não havia correlação. O que você pode comentar sobre isso?

Realmente não tem relação. E no curso de medicina existe um complicador que é custo dos livros, além de ser um curso extremamente caro, e odontologia ainda mais, porque o estudante compra seu instrumental durante o curso. Assim, enquanto não se aparelhar a universidade não se tem como determinar o que é um problema de falta de recursos individual ou não.

Durante as entrevistas com cotistas, como eles percebem a política de cotas? Eles realmente percebem como um instrumento para entrar na universidade?

Para os estudantes de medicina sim. Uma coisa é o que eles falam antes e depois de passarem no vestibular. Antes é um direito, é um dever da sociedade. Depois que passa, como disse uma aluna, "eu usei". Por conta disso existe um debate entre os estudantes sobre se eles realmente mereciam ou não a cota.

Existem pessoas mais claras, com melhor nível socioeconômico, porque se têm critérios socioeconômicos limites que foram reunidos para se juntar exclusão racial com socioeconômica. Obviamente que existem mil um meios de se matizar esses critérios. Por exemplo, manda-se a pessoa morar com a avó que vive de renda em Bonsucesso quando os pais moram na Lagoa, por exemplo. Naturalmente um caso como esse é uma exceção, mas acontece. Da mesma maneira, tem as pessoas que vieram de escolas públicas de excelência, como os colégios de aplicação. Então, por exemplo, vi uma discussão com uma aluna que era mais "clarinha" de que as pessoas ficavam debochando dizendo que ela devia ter tentado entrar como índia, mas que ela entrou como negra. Ela respondeu assim: "eu usei mesmo e usei porque se não usasse alguém ia usar e não me arrependo a mínima. Vestibular é assim, você dá um jeito e entra".

Isso é o próprio éthos do vestibular, o que não é nenhuma novidade. Durante décadas se ensinam formas de se passar no vestibular, por isso as pessoas não veem isso como um problema. Uma vez que entram você encontra inclusive discursos anticota por parte de cotistas, na faculdade de medicina principalmente. Raramente você vai encontrar isso dentro das ciências humanas. Os estudantes destes cursos tendem a continuar a ver isso não como um instrumento técnico, mas como um valor moral. Essa diferença faz parte do próprio éthos da profissão. O da medicina se caracteriza pela pessoa se achar excepcionalmente inteligente, excepcionalmente capaz enquanto indivíduo. Então, obviamente, o futuro médico nunca vai querer se associar a coisas que coloquem sua persona de excelência, essa autoimagem em cheque.

Não se trata de um problema moral dessas pessoas, trata-se da forma como o campo é construído e como a identidade dele é construída. Da mesma maneira, as pessoas que entram para as ciências sociais e mantêm a identidade cotista também não é uma coisa absolutamente desinteressada. Boa parte das pessoas que faz pedagogia, por exemplo, vai encontrar trabalho nos pré-vestibulares para negros e carentes. De onde eles saíram e para onde voltarão. Você encontra pessoas que saíram e vão voltar, porque isso é um mercado da mesma maneira que o mercado médico é um mercado. Não é que um é bonzinho e cínico e o outro é idealista e moralmente correto, não. Ambos estão, de certa maneira, construindo sua identidade de acordo com os parâmetros que o campo permite.

Então é certo dizer que esse tipo de comportamento é uma evidência patente da absorção dos cotistas pela universidade, por que se ela não ocorresse eles não se identificariam com o éthos de suas profissões?

Sem dúvida. Mas o impacto disso no éthos profissional da pedagogia é muito maior do que no da medicina. Por quê? Porque se criou uma nova categoria. Onde houve o menor impacto socioeconômico, ocorreu o maior impacto profissional. Criou-se uma terceira categoria que se volta para o ensino público voltado para cotas, que traz novas questões para o campo. No caso da medicina efetivamente não se tem isso, porque é tudo muito fragmentado, muito individualizado. As pessoas tentam construir sua identidade, sua trajetória pessoal sem referência ao contexto de onde saíram e no qual se mantêm.

Imagino que essa construção deve ficar difícil por causa do custo dos livros de medicina. Como os alunos cotistas resolvem esse problema?

Além do investimento familiar, em alguns casos não há esse problema porque houve a manipulação da questão da renda. Em outros há uma certa solidariedade. Eles se juntam para comprar os livros e depois cada um fica com eles um tempo. Mas isso acontece entre conhecidos. E obviamente tem pessoas que não conseguem acompanhar por questões econômicas.

Tem um movimento de cotistas?

Tem e uma institucionalização também. Mas não diria propriamente um movimento. Tem redes de solidariedade assim: nós somos amigos, nós não temos grana, nós compramos o livro. Agora, eles não emprestam o livro para um cotista que não seja amigo. Então, tem que se entrar no circuito personalista. Mas, a partir de instâncias dos vários movimentos negros, tem-se a criação dos espaços afirmados, que seriam espaços onde os cotistas poderiam viver sua identidade e criar, aí sim, essas redes de solidariedade dentro de limites mais institucionais e menos personalizados.

Isso não funciona em geral. Depende do éthos profissional, por isso são pouco eficazes em suprir as deficiências estruturais da universidade. Não tem como se suprir essas deficiências que são comuns a todos os cursos, com ou sem cotas, e que impedem que a universidade cumpra o seu papel de produção de trajetórias sociais e de saberes compartilhados. O próprio valor desses saberes declina em parte em função do fato de que a universidade não consegue fazer seu trabalho pedagógico em condições, digamos, funcionais. Esse é o drama cotidiano e que não está sendo nem discutido.

Que outros aspectos das deficiências estruturas afetam os cotistas?

No caso dos livros estou chamando a atenção para o que é central. Mas o desaparelhamento da universidade também se revela em outros pontos como a falta de bandeijão, a falta de transporte adequado, de segurança para os cursos noturnos, laboratórios de informática e outros. O leque é amplo.

O xis da questão, contudo, é a própria universidade. As questões que envolvem a política de cotas são as questões da universidade dramatizadas por se ter uma população que se vê coletivamente e a qual se colocou critérios econômicos para sua entrada, ou seja, em termos estatísticos não se pode exigir dela um poder aquisitivo maior do que o que se colocou.

Com isso, aparecem reações exacerbadas que vão muito além da discussão de cotas com repercussões em todos os níveis. Os ressentimentos causados por sua impossibilidade de cursar a universidade por falta de livros e outros recursos necessários, naturalmente retroalimenta toda uma percepção de que se é um injustiçado por questões ligadas à sua raça, à sua origem e vice e versa. Assim, políticas destinadas a privilegiar uma certa carência naturalmente provocam ressentimento de uma outra carência ou podem ser manipuladas por pessoas que não têm nada a ver com isso para justamente criar e aprofundar essas divisões.

Pelo que você está dizendo, de certa maneira, o argumento de que a política de cotas pode acirrar divergências étnicas tem algum fundamento?

Em si, não. Ele é uma falácia porque pressupõe esse processo que não está colocado. Contudo, não é uma impossibilidade, mas em si é uma falácia. Esse processo não é verificável ainda e talvez nunca seja. Para ele acontecer é preciso que haja pessoas interessadas em que ele aconteça, pessoas que adquiram poder a partir dele. O que talvez o próprio esvaziamento da universidade impeça que qualquer um se interesse nela.

Essa decepção também não leva a maior esvaziamento da universidade?

Com certeza. Vai-se a universidade com uma certa expectativa e ela é traída. E não é um esvaziamento que não leva a pessoa a procurar outra coisa. Ela procura terminar o curso de qualquer jeito. Esse movimento já é percebido hoje. Com isso, o valor do diploma cai a cada ano, porque se chega a um estágio em que as pessoas não aprendem nada ou não aprendem o suficiente na graduação.

Daí, o mestrado virou a graduação dois, a missão, e cada vez mais o doutorado está virando a graduação três, o retorno. Isso revela que a discussão é gradual, porque para se ocupar um quadro técnico se precisa de mestrado é porque a graduação não vale nada, ou seja, a universidade deixa de ter uma de suas funções que é criar distinção intelectual.

30/5/2006

Publicado em 30 de maio de 2006

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