Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Cortázar: ler um livro é sempre botar o dedo no gatilho

Geraldo Mello Mourão

O texto de Cortázar que aqui publicamos é praticamente inédito. Trata-se de uma comunicação pronunciada durante o Encontro Internacional de Escritores promovido pelo grupo Liberté, em Montreal, no Quebec, em 1980. Cortázar era representante dos escritores argentinos no Encontro, ao qual tenho comparecido assiduamente, como membro de seu Comitê Permanente. O tema proposto a todos os participantes era "O Escritor e o Leitor". O texto de Cortázar, escrito originalmente em francês, foi gravado durante a reunião. De sua transcrição nos anais do Encontro é a tradução que hoje se oferece deste importante pronunciamento de tanta significação para os escritores em geral, para os escritores da América Latina em particular.

O Escritor e o Leitor

Júlio Cortázar

O enunciado do assunto que hoje nos reúne responde automaticamente à própria natureza deste encontro. É lógico, lógico até demais, que os escritores tergiversem em termos de escritura e de leitura.

Que aconteceria se, ao contrário, se tratasse de um encontro de leitores? Embora uma suposição como esta pareça irrealizável, bastaria um pouco de imaginação para tentar pôr em prática a sugestão, com certa desordem e alguns erros, circunstâncias, de resto, que caracterizam habitualmente também os encontros de escritores. Nós mesmos, aqui presentes na qualidade de escritores, poderíamos muito bem nos divertir se decidíssemos trabalhar apenas como leitores. É claro que não vamos fazer isto, pois somos pessoas sérias e conscienciosas. Mas quanto a mim, e sem perder de vista meu papel de escritor, devo acentuar que é o conceito de leitor que constitui o centro de gravidade do que eu gostaria de dizer.

Eu sei muito bem, e isto é estritamente lógico, que o primeiro leitor imaginável de um texto, seja ele qual for, foi sempre precedido pelo autor que o escreveu. Eis aí um plagiato involuntário. A história, contudo, gosta de contradizer a lógica, e é evidente que ninguém chegou jamais a condições de escritor sem haver passado antes pela condição de leitor. Antropologicamente falando, o título desta reunião deveria ter sido formulado inversamente, para não sugerir talvez de modo inconsciente, mas de maneira extremamente sintomática, a ideia de uma hierarquia qualitativa.

Já notaram, sem dúvida, que estou evitando falar de escritura e leitura, e que me refiro, antes, àqueles que escrevem e àqueles que leem. Esta atitude provém do fato de eu ser latino-americano, e o acidente de viver na Europa não modificou os objetivos que escolhi e escolherei sempre em meu trabalho de escritor. Enquanto latino-americano, afirmo, pois, não só que o leitor, do ponto de vista antropológico, precede sempre o escritor, mas que além disso, no caso peculiar dos países da América Latina, a leitura, sob o ângulo da invenção e da crítica, que é o que nos interessa aqui, constitui um dos aspectos essenciais do esforço lento e difícil que anima nossos povos em seu desejo de identidade nacional, de confrontação com culturas mais antigas e mais aguerridas, de revolução em todos os níveis, de uma revolução que os leve - como já está acontecendo lentamente - a transformar-se em si mesmos, para usar um pouco livremente a fórmula de Mallarmé; que os leve, enfim, a descobrir sua própria face sob as máscaras atávicas, máscaras vendidas ou compradas, máscaras impostas do exterior e do interior.

Esta prioridade que aqui atribuo à leitura, considerada na América Latina como problema e como responsabilidade, aparece ainda mais nitidamente quando nos transportamos para outros contextos culturais. O escritor europeu pode contar, para encontrar leitores, com as afinidades ou as divergências de opinião - o que, no caso, é a mesma coisa - que possam existir entre eles e ele próprio. Ele sabe, assim, que seus livros chegarão a um público variado que os receberá da mesma forma que o público da plateia, no teatro, recebe o que se passa na cena.

Ora, no caso dos escritores latino-americanos, o leitor não desempenha ainda o papel que lhe deveria caber, tendo em vista o espantoso deserto cultural que reina em seu país e no contexto do continente. Em nossos países, nesse teatro que é a literatura, a sala fica metade vazia, e se de vez em quando se enche, como quando a peça encenada se chama "Cem anos de solidão" ou "A casa verde", esses sucessos fugazes servem apenas para revelar o vazio habitual de nossos teatros culturais, a raridade dos pontos de convergência e de encontro entre autor e leitor.

Vale a pena lembrar que quando um escritor europeu se queixa do pequeno número de seus leitores (o que ocorre sobretudo, a certos poetas e vanguardistas audaciosos), isto não prova que aqueles que não os leem estejam tolhidos por inaptidão, mas simplesmente que preferem outros tipos de onda. Pelo menos virtualmente, esse escritor dispõe de um número ilimitado de leitores; basta às vezes um pequeno capricho da moda, um pequeno golpe - interessado ou não - dos mass-media ou dessas usinas que são as casas editoras, para que, de um dia para outro, certo escritor que se lia pouco ou não se lia nada, acorde subitamente célebre, como na frase de Lord Byron; o sucesso ou o fracasso junto ao público pode depender de uma aventura intelectual pouco acessível ou dum golpe do acaso, mas o que é certo é que as ressonâncias possíveis entre autor e leitor são condicionadas pelas estruturas culturais em que um e outro se encontram.

Não é este o caso na América Latina. De tempos em tempos um de nossos escritores encontra em seu país uma multidão de leitores. O exemplo mais notório foi o de Gabriel García Marquez e de alguns outros, aqueles, em suma, que foram impropriamente denominados o boom dos anos sessenta do século passado. O sucesso deles, todavia, não tem nada a ver com aquele vínculo que une o autor ao seu leitor em universos culturais mais integrados e mais coerentes. Só um imbecil poderia orgulhar-se e glorificar-se com um sucesso literário obtido na América Latina, pois tal sucesso é da mesma natureza do de um boxeur ou de certas vedetes de cinema, levados às nuvens por um instante ou por uma vaga de exaltação, sem que isto seja a expressão de uma tomada de consciência profunda nem de circunstâncias duradouras.

E, antes de tudo, é preciso saber que os leitores latino-americanos são quase todos citadinos, e que mesmo os menos advertidos fazem parte dessa minúscula intelligentsia perdida no meio da desolação cultural do mundo rural, justamente desse mundo rural que define e contém a realidade primeira de nossos países. Depois, é absolutamente excepcional que aqueles leitores exerçam uma influência sobre o desenvolvimento histórico de seus países, pois, inseridos na engrenagem de um sistema de dominação externa e de alienação interna perfeitamente regulado, eles ficam à margem dum estatuto intelectual que teria podido permitir-lhes uma escolha ideológica e política e um engajamento ativo.

Na Europa ocidental, onde o escritor não precisa mais ser domesticado, a burguesia no poder o considera ainda com o mesmo critério com que a aristocracia o julgava em outros tempos, mas abertamente: isto é, como o bufão de luxo de seus divertimentos intelectuais e estéticos, jongleur bem recebido, mas sempre jongleur, enquanto na América Latina o escritor é obrigado não apenas a ir buscar seu prato de comida nas cozinhas do poder, sendo, além disso, relegado em companhia de seus leitores, porque a pirâmide do poder é inacessível para todos eles, na medida em que manifestam a menor veleidade de ultrapassar as funções puramente utilitárias de escribas ou de leitores...

Aos olhos de tantas ditaduras latino-americanas, todo livro, enquanto livro, seja ele qual for, é suspeito. E os leitores do livro o são ainda mais, pois ler um livro é sempre, por assim dizer, botar o dedo no gatilho, e assim liberar e multiplicar sua força explosiva. Eis por que as relações entre o escritor e seu leitor se revestiram, na América Latina e no resto do que se chama de Terceiro Mundo, de uma importância que não foi a mesma em outras zonas culturais.

O escritor e o leitor latino-americanos têm uma coisa em comum: estão ambos expostos ao mesmo gênero de desconfiança por parte das autoridades, que se empenham em confiná-los numa zona anódina; ainda por cima, há, entre o escritor e o leitor, um fosso cavado pela ausência de meios de acessos culturais a tudo o que uma literatura digna deste nome poderia dar àquele que a lê. Essa situação, salvo algumas exceções, caracteriza o conjunto do mundo cultural latino-americano, pois os exemplos de países como Cuba, México, Costa Rica e Venezuela e talvez um ou dois outros, não bastam para melhorar muito a imagem global de nossos povos.

Essa situação já provocou uma cisão muito nítida entre os escritores. Há, de um lado, aqueles, às vezes de primeira qualidade, que notoriamente se contentam com ser as criaturas eleitas das elites urbanas, e cuja mais alta preocupação é de se verem traduzidos no estrangeiro e ali receberem prêmios literários. Por outro lado, há aqueles que alguns qualificam de "engajados", mas que eu prefiro chamar de responsáveis, aqueles que têm uma consciência esclarecida do problema da escritura diante das barreiras que limitam ou entravam a comunicação e também diante do problema das experiências e das tentativas novas que essas mesmas barreiras isolam ou retardam no plano literário e, pois, no plano histórico.

Na América Latina, o escritor responsável deve resistir cada dia a tentação de se autocensurar, tentação que pode nascer do desejo de aumentar o raio de ação de sua obra, simplificando suas mensagens e seus veículos formais. Mesmo nos casos raríssimos em que o poder exatamente situado sob a forma de governo, convida o escritor a participar de um processo histórico positivo, a colaborar por seu trabalho na consolidação da soberania popular e da justiça social, essa tentação de transformar a aventura em rotina lhe aparece sob a forma de diretrizes que, sob uma nova terminologia, retomam, na verdade, as velhas consignas do passado. Nestes últimos casos, todavia, estão longe de ser insuperáveis, pois a situação é infinitamente mais favorável e mais positiva para as duas partes, e pode bastar uma espécie de acordo, um pequeno esforço de imaginação para suavizar o esquema às vezes pragmático que rege as relações entre escritor a leitor.

Este mesmo problema, por outro lado, parece sem saída, por enquanto, em grande parte da América Latina, sobretudo nos países mais meridionais, onde não apenas o escritor e o leitor são fichados como suspeitos pelo poder, mas onde as condições que lhes permitiriam comunicar-se verdadeiramente entre si são precárias e desencorajadoras. Por isso, todo escritor latino-americano se encontra em posição de devedor diante de seu povo, na medida em que se contenta com escrever para as minorias e em que, fascinado pela confortável miragem das edições e dos leitores urbanos, se esquece da existência do deserto cultural que se estende para lá de sua própria perspectiva e que constitui a enorme maioria de seu país e do continente.

Evidentemente, ele não é o responsável por este estado de coisas. Mas é - e em que medida! - se, depois de ter tomado consciência, se confina na cidadela da cultura urbana, sem buscar os meios de romper o cerco, de sair para reencontrar verdadeiramente a dimensao de seu povo. Pouco importa que a natureza de seus livros se destine, culturalmente falando, a um pequeno número de leitores, pois o tempo se encarregará de liberar e dar eficácia a tudo que eles possam conter de fecundo, como sempre demonstra, de resto, a história de todas as literaturas. O que conta é que, nos seus mais árduos esforços de criação, o escritor seja ferido pela presença acusadora dessa ausência, que é a da maioria de seu povo, e que, em consequência, sem nada sacrificar de sua liberdade criadora, escreva numa precisa consciência dessa carência, num preciso desejo de contribuir, e seu modo, para reduzir as distâncias, para lançar pontes, em vez de dirigir-se de preferência às minorias de fácil acesso por seu nível cultural.

Poderão contestar-me dizendo que se trata de uma tarefa impossível, uma vez que o escritor não poderá fazer nada num terreno que deveria ser, antes de tudo, preparado por meio de uma política cultural e de uma educacão de base; pois o escritor não tem por missão alfabetizar as pessoas, e ao tentar fazê-lo, mesmo no sentido mais amplo, ele deixa de cumprir o trabaIho que lhe é próprio e poderá, no máximo, tranquilizar sua consciência.

Não é com concessões desse tipo que se reduzirá a distância entre escritor e leitor. O dever do escritor consiste, ao contrário, em continuar sua obra no mais alto nível possível, permanecendo convencido - como eu mesmo estou - de que nesse nível a comunicação é possível na medida em que a escritura contenha e expresse o que eu chamaria de pulsões latino-americanas, e na medida em que ela seja capaz de suscitar uma resposta vital do leitor, como foi o caso de todas as grandes obras poéticas e romanescas desses últimos lustros.

É assim que o escritor pode cumprir sua função até o fim, entre nós. Se seus livros conseguem, dessa ou daquela maneira, refletir as virtualidades, as experiências vividas e a consciência de seu povo, os leitores não deixarão de aparecer, como surgidos do nada, e começarão a proliferar em toda a extensão do continente, passando de um livro a outro, de um escritor a outro, aceitando, rejeitando, escolhendo. Ao reconhecer uma obra como algo que, no nível mais profundo, não lhe é estranho, o leitor se reconhece a si mesmo cada vez mais intimamente, se afirma como pessoa e parte integrante de sua comunidade e de seu povo. Essa tomada de consciência, infelizmente, não é uma tomada de poder, mas abre o caminho para ele, e este caminho foi claramente balizado pela obra desses escritores latino-americanos que os povos escolheram, nestes últimos anos, sem hesitação.

Entre eles, a responsabilidade intelectual não se separa da responsabilidade moral, e isto se manifestou não apenas através de suas obras, mas também por seu comportamento diante da história de seus respectivos povos e do conjunto do continente. Assim, pois, para nós latino-americanos, o assunto que nos reúne hoje aqui não se incorpora apenas da pura reflexão intelectual, mas também, em última instância, da reflexão política e histórica. Será útil e necessário que se fale, no curso desta reunião, de escritura e de leitura, porque assim se esclarecerá melhor a perspectiva na qual tento me situar e que visa sobretudo aos protagonistas em questão, isto é, o leitor e o escritor, enquanto indivíduos mergulhados no real quotidiano, este real que se chama para nós Argentina ou El Salvador ou Chile ou Nicarágua, para não citar senão alguns exemplos, entre tantos outros que participam da mesma tragédia.

Não podemos cometer enganos: se essa atitude e esse comportamento dos escritores responsáveis podem contribuir, cedo ou tarde, para aumentar a capacidade de leitura de nossos povos, essa luta, então, contra a ignorância, a alienação e a espolição entrará em sua fase mais crítica; pois, quanto mais houver homens prontos a assumir aquilo que a leitura lhes houver revelado, maior e mais agressiva será a desconfiança dos que preferem governar robôs em vez de povos, e mais dura será a repressão intelectual e moral, mais perigoso o ato de ler e de escrever como homens livres. Enquanto essas atividades guardarem um caráter essencialmente hedonista, o poder tomará conta delas e até lhes dará recompensas. Mas desde que sinta que ler e escrever fazem parte do arsenal de uma guerra de libertação, voltará suas armas contra o pensamento que hoje nos reúne num clima tão diferente, neste lugar, onde minhas palavras poderão parecer a alguns como uma manifestação de delírio de um autor de textos fantásticos - o que - hélas! - não é o caso.

Para concluir, eu gostaria de sublinhar a ideia que subentende tudo o que acabo de dizer. O leitor, na América Latina, conta mais do que o escritor, e tanto mais quanto, até aqui, o balanço tem sido deficitário para ele, a este deficit nos mantêm numa pré-história da qual é preciso sair para podermos entrar em nós mesmos e nos reconhecermos como povos e como indivíduos. Coisa paradoxal: - não nos faltam escritores, a seleção natural e os pequenos jogos da sorte produzem um número bastante grande para satisfazer a demanda.

O que é infinitamente mais difícil é encontrar o leitor, porque entre nós ele é concebido como um indivíduo isolado - esse isolado tão caro às elites que geram a cultura - porque essa concepção não tem sentido, e é preciso substituí-la por outra, mais ampla, mais abrangente - objetivo do qual ainda estamos muito distantes na América Latina. Embora os escritores de que necessitamos já estejam lá, os leitores de que igualmente necessitamos, tem uma existência virtual.

Repito que só um idiota poderia sentir-se orgulhoso da difusão dessas obras num continente como o nosso. As pontes que conseguimos talvez estender não são na verdade senão frágeis passarelas, que uma decisão arbitrária, da noite para o dia, pode quebrar ou queimar. Ainda não se estabeleceu entre o escritor e o leitor esta autêntica relação dialética que poderia chegar um dia a síntese de uma maturidade popular, de uma tomada de consciência, que torne inconcebíveis os pesadelos vividos por tantos povos irmãos, seja sob o jugo de uma Junta, de um general ou de um presidente.

É por isso que o trabalho do escritor, por mais paradoxal que isto possa parecer a algumas pessoas, deve obedecer entre nós a dois imperativos simultâneos, mas não exclusivos: o da fidelidade às pulsões e virtualidades de nossos povos, e o do salto para a livre criatividade; raiz e folhagem, tronco e copa da árvore da humanidade. Sem risco de contradição, muito ao contrário, o trabalho do escritor latino -americano deve ser a um tempo político, no sentido mais nobre do termo, e literário, no sentido mais livre desta palavra. E assim e somente assim que chegará o dia em que escritores e leitores verão enfim superado o abismo espantoso que hoje os separa.

Publicado na Revista do Brasil Ano1- nº 1/1984. Tradução de Geraldo Mello Mourão. Governo do Estado do Rio de Janeiro - Secretaria de Ciência e Cultura - Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, p.20-24.

Publicado em 13 de junho de 2006

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.