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Só mais uma mulher que adora futebol

Mara Lúcia Martins

Ou "Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer..."

Ela ficava na janela porque a mãe e o pai trabalhavam fora e os irmãos... Eles já tinham vida própria e seguiam na faculdade sem ter tempo para muita coisa além de muito estudo, trabalho e suas namoradas. A janela era sua TV, seu rádio, seu cinema, sua melhor diversão.

Embaixo de sua casa, em uma vila do subúrbio, moravam oito irmãos que, a saber, nada pretendiam além dos seus, pois passavam os dias soltando pipa, jogando bola de gude, brincando de forte apache, andando de bicicleta e - a mais sublimes das diversões - jogando bola. Sua janela nessas horas tinha amplidão de uma Maracanã em dias de Fla x Flu.

Nessa hora, a da pelada, a janela parecia um drive-in nos tempos da sessão Coca-Cola, na Lagoa Rodrigo de Freitas (RJ). E os lances eram tão sabidos que ela poderia ser bandeirinha, árbitro e até goleador. Como boa observadora sabia, meio metida, o que João Saldanha, com toda a sua sabedoria, faria para modificar qualquer time de futebol e ganhar os campeonatos. Era evidente que ao olhar as jogadas ela também pressentia que um dia seria um artilheiro, o melhor zagueiro, mas nunca um goleiro - imagina levar uma bolada daquelas no meio dos seios?

Depois de uns anos de janela liberaram a descida com indicação prévia de que não poderia haver confusão - o cartão amarelo já tinha sido mostrado antes mesmo de começar a partida. E aí, ela já estava crescida, mesmo que a idade não traduzisse o tempo - o corpo era de moça, mas a cabeça ainda era de menino prestes a receber um sinal verde para fazer as melhores farras com a bola, que ainda aconteciam na vila, no subúrbio.

As vizinhas a denunciavam para a mãe, nos momentos de liberdade que eram o de descer para o "campo", dizendo: "uma mocinha, não pode jogar bola". Era só uma questão de tamanho e sua mãe fazia vista grossa para que as vizinhas se calassem e fossem viver sua própria idade deixando ela, nesses raros instantes, simplesmente ser feliz. O cartão amarelo dos outros não tinha efeito e parecia que esses juízes apitavam um jogo sem nenhuma validade para qualquer campeonato.

Seu pai para satisfazer, meio que escondido, o seu desejo, trocava qualquer brinde por uma bola de futebol. Cúmplice no jogo ele escolhia o melhor meio de possibilitar a brincadeira. Ah, se uma TV nova tinha como promoção um carrinho, uma boneca e uma BOLA! Adivinha o que era escolhido? E nos finais de semana, não precisava nem pensar: era pegar uma delas (as bolas) e sair correndo para a Quinta da Boa Vista.

Sabe pinto no lixo, cachorro solto na praia? Era ela, nesses dias. Mesmo que, para que a bola voltasse ao seu encontro, fosse preciso uma parede, uma árvore ou o menino mais tímido que não brincava tão violentamente como os outros que tinham uniforme do time, chuteiras, meiões e campeonatos mais sérios. Isso estava fora da sua espécie.

Nessa época aconteceu de fazer amizade com um vizinho, que, além de estudar, tirava umas folguinhas para bater uma bolinha - tudo permitido nas regras do jogo. Nos intervalos dos campeonatos transmitidos pela televisão - sim, ela os assistia também pela TV, e lia, com muita atenção, a coluna do Saldanha no JB - eles chutavam um para outro, na mais completa reciprocidade de amor - primeiros namorados foram os dois, um para o outro.

O time tinha que ser diferente: Botafogo por opção e um pouco por influência dos colegas de escola... Era ambidestra na habilidade de chutar em gol. Até as bolas de soprar (essas mais fáceis de dominar) ela tinha de reserva para os dias de chuva em que não dava para escapar para a rua e fazer tanto barulho para os vizinhos debaixo. O corredor do apartamento era perfeito para os dribles mais refinados, tabelas com a parede e muito mais de 100 "embaixadinhas" - com um pouco de exagero, mas muito de desejo.

Quando aos onze anos descobriu um time chamado Flamengo virou a casaca imediatamente e se vestiu de preto e vermelho para se tornar a mais louca rubro-negra de todos os tempos. Um pouco mais tarde teve sua primeira aventura como "flanática" convicta e como torcedora que conhece o Maracanã pela primeira vez - um clássico: Flamengo x Vasco, final de campeonato. Tinha visto o "santuário" pela primeira vez ao fazer uma prova que não deu em nada porque o gramado estava sendo limpo e o coração aos pulos. Na final com o Vasco... Seu time deixou escapar o título - essa é a melhor definição que um rubro-negro dá para qualquer derrota -, com a perda de um pênalti (o Tita era muito novo para tanta responsabilidade, mas perdoado nunca foi - intuição de fanáticos, ou "flanáticos"?). Tristeza total, e olha que depois da final, ouvindo os gritos da torcida vascaína (irk!) ela ainda achou um rádio de pilhas...

Passou a colecionar recortes de jornais, revistas, bandeiras e camisetas, mais animada com o terceiro namorado que era - desculpem-me a má palavra tricolor (nem o Chico Buarque é perdoado nessas horas!) - mas que fazia questão de ver o melhor futebol praticado na época (início dos anos 1980) e acompanhá-la aos jogos, mesmo que eles fossem de outros time que não o seu. O melhor dos tempos, quando apareceu um jogador que atendia pelo singelo nome de Zico - corruptela de Arthur, Arthurzinho, Arthurzico: "o galinho de Quintino", o grande Zico. A melhor fase de seu time de coração: Campeão Carioca, Campeão Brasileiro, Campeão do Mundo!

O Flamengo deu certo, já o namoro... Em uma viagem à cidade serrana de Araras ele levou um drible dela e lhe deu uma banda. Falta! Falta de cavalheirismo, falta de habilidade, falta de carinho e o namoro acabou ali mesmo.

Mas aí o futebol começou a ficar complicado demais para uma garota que só via nele arte e brincadeira, liberdade e desejo. As torcidas brigavam com a polícia, brigavam entre si, entre elas mesmas e o "Maraca" já não era mais lugar de menina, nem de moça, nem para a mulher que se formava e sonhava ser mais do que aquelas que gostam de futebol apenas de quatro em quatro anos (época de Copa do Mundo). Futebol passou a ser a troca do jogo pela batalha, como uma da guerra. Guerra institucionalizada no ato de não deixar, a qualquer custo, ver o adversário invadir muito mais do que o outro lado do campo e meter a bola na rede. Futebol passou a ser caso de polícia e a bola foi substituída por bala a esmo.

Ainda restaram: a coluna de João Saldanha (o maior comentarista de futebol com sua escrita deliciosa, concisa e precisa), a TV e o futebol de salão - sagrado e consagrado pelos amigos de faculdade, no campo dos bombeiros de Copacabana -, uma vez por semana, mas sem direito nem de dar o pontapé inicial. Passou a fotografar, então.

Ninguém tem ideia do que é assistir Ituano versus ABC Paulista! Alguém sabe quem joga ali? Poderia ser visto qualquer jogo que só tivesse perna-de-pau. Não tinha essa de Barcelona e Real Madri com seus jogadores multimilionários de hoje. Tinha, sim, campos de várzea, com pouca grama, bola murcha e muita disposição. A questão não era jogar e ser jogadora, o melhor era entender que esporte era aquele que movimentava seus sonhos e atiçava sua imaginação na busca da liberdade para fazer o que queria e tentar escrever sobre ele.

E aí vieram outras mulheres para falarem aquilo que ela já sabia de cor: Futebol não é só coisa de menino. Apareceram times femininos, mesas-redondas com mulheres dando opiniões super pertinentes, árbitros e bandeirinhas femininos (sim, é árbitro feminino que se fala, mas isso ainda vai mudar!). E a mulherada apareceu, não só para achar o Kaká o mais lindo, as pernas do Roberto Carlos as mais poderosas e o David Beckham o metrossexual mais perfeito de todos os tempos.

A mulherada apareceu para dizer que futebol é (ou era) um esporte bonito se bem jogado, se jogado com amor à camisa - principalmente à rubro-negra, chamada de "manto sagrado". Aquele sonho foi transformado - ele tinha uma explicação: a bola é redonda, o futebol é um esporte mágico e o mundo não poderia ser quadrado para a participação das mulheres no esporte - qualquer um pode sonhar em fazer embaixadinhas, dribar o melhor dos zagueiros e entrar com bola e tudo, aos 48 minutos do segundo tempo e, de preferência, ganhar o jogo e ser campeão.

Em tempo de Copa do Mundo: essa será moleza - pretensão de quem é pentacampeão, tem os dois Ronaldos, Adriano e Kaká (os quatro cavaleiros do apocalipse dos outros times ou os nossos quatro mosqueteiros) e uma defesa... Bom, essa parte vai ficar por conta da camiseta verde e amarela, das cornetas, enfeites de rua, da moda da TV de Plasma, do Hino Nacional que arrepia tanto quanto a entrada dos times em campo. Muita humildade, técnica, tática, amuletos, confiança no futebol-arte e na música que diz: "Brasil está vazio na tarde de domingo, né? / olha o sambão, aqui é o país do futebol...".

Nesses tempos ela está muito feliz, principalmente porque, ontem, o Flamengo (fora da área de rebaixamento - em 10º lugar na classificação da tabela do Campeonato Brasileiro) ganhou do Corinthians, em São Paulo - 0 x 2 -, e porque quando acabar a Copa do Mundo, fora da Alemanha, seu time e seu coração vão disputar com o Vasco a Copa Brasil, no melhor estádio do mundo - o Maracanã já não é o maior, mas ainda é o mais querido! Que não seja como a primeira vez, do seu batismo no estádio de futebol... Sem pessimismo e sem problema porque a música mais perfeita de todas ainda será: "Ó, meu mengão, eu gosto de você. / Quero cantar ao mundo inteiro, / a alegria de ser rubro-negro. / Conte comigo mengão, / acima de tudo rubro-negro".

Pubicado em 13/6/2006

Publicado em 13 de junho de 2006

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