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Sobre Cavalos e Homens
Pablo Capistrano
Acho que não vou conseguir terminar de ler "Gorazde: Guerra na Bósnia Oriental (1992-1995)", de Joe Sacco. Não que a História em Quadrinhos (HQ) não seja boa. Ela foi eleita HQ do ano pela revista Time, e Sacco sabe como controlar a narrativa para transformar uma reportagem numa obra literária (mesmo em quadrinhos). Mas acho que não vou conseguir terminar, justamente porque, quanto mais avanço na revista, mas eu gosto dos cavalos.
Domingo passado fui na fazenda do Seu Breno Barbalho, que fica a uma hora de carro de Natal (RN). Lá, olhando os cavalos e tentado decifrar o temperamento de cada um antes de me atrever a montar, pensei comigo mesmo: "Milhares de anos de domesticação para eles ficarem assim. E nós? Quanto tempo demorou para ficarmos do jeito que estamos?".
Na época da guerra na Bósnia eu era um adolescente obcecado por algum tipo de revolução literária que poderia, misteriosamente, eclodir na minha província. Andava recitando poesia por aí e fazendo fanzines pós-punks de literatura. Tinha pouco tempo e atenção para me dedicar em saber o que ocorria de fato do outro lado do oceano. Hoje, mais ligado aos detalhes da vida, sinto meus nervos doerem ao visualizar o grau de degradação humana que uma guerra qualquer pode provocar.
Mas a guerra da Bósnia não foi uma guerra qualquer. Ela foi uma guerra antiga nos moldes de uma era industrial. Uma guerra de extermínio e limpeza étnica. O mais espantoso é saber que os massacres mútuos naquela guerra se deram entre vizinhos. Pessoas que frequentavam as mesmas festas, que estudaram nas mesmas escolas, que bebiam nos mesmos bares e jogavam nos mesmos times de futebol. A grande perplexidade é saber como isso é possível. Como o verniz de humanidade que nos liga uns aos outros pode sumir repentinamente e esses ódios adormecidos, que vem não sei de onde, podem, de uma hora para outra, eclodir e arrastar para a morte toda uma geração de homens, mulheres e crianças.
Todos os dias eu acordo e desejo fortemente que já esteja morto há muito tempo quando o verniz de humanidade, que faz com que meus vizinhos não tentem cortar a garganta de meus filhos ou estuprar minha esposa, venha a desaparecer. Gostaria mesmo, se pudesse ter só um desejo realizado, que não houvesse nem mais meus ossos enterrados, quando, por algum motivo banal, minha gente resolver se matar por causa de algum ódio arcaico, provavelmente resultado de alguns anos de misérias históricas acumuladas, de exclusões sociais e escravidão. Não gostaria que meus ossos, embaixo da terra, pudessem ser testemunhas dessa perigosa aproximação ontológica, que coloca os seres humanos num patamar mais baixo do que o das bestas. Com certeza meus ossos se envergonhariam e pediriam perdão aos cavalos. Sim, porque há certa nobreza nos cavalos. Há uma força natural que não se deixa dominar. Um certo "estar-se dentro do mundo" que os faz criaturas especiais. Os homens, infelizmente, nem sempre são como os cavalos. Ás vezes, eles usam seu cérebro altamente desenvolvido e seu polegar opositor para se aproximar de um pântano muito fundo que afoga qualquer ilusão de bondade ou sonho de beleza.
Ouvi um doutor em alguma coisa dizer, outro dia na TV, que o tempo em que vivemos é um tempo muito difícil. Certo, Doutor, você está certo! Nosso tempo é difícil como talvez tenha sido difícil todo o tempo da experiência humana na Terra. Por causa desse meu tempo, estou começando, a cada dia, gostar mais dos cavalos. Espero que, se eu conseguir terminar de ler a HQ do Joe Sacco, não comece a desejar, com toda força, que um dia essa humanidade desapareça, para que os cavalos voltem a ser livres e que não precisem se sujeitar ao vexame de estarem submetidos aos caprichos de uma espécie inferior como a nossa.
Pubicado em 28/6/2006
Publicado em 27 de junho de 2006
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