Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
A Ação Dialógica do Docente Contemporâneo na Construção da Identidade do Sujeito
José Henrique Manhães Neves
Professor da Universidade Cândido Mendes (Ucam) e da Rede Estadual de Ensino. Especialista em Orientação Educacional e pesquisador pela Fundação Abrace na Educação de Jovens e Adultos.
RESUMO
Este artigo toma como referência a ação dialógica do professor contemporâneo de escolas públicas na construção da identidade dos sujeitos. A inquietação básica é a articulação do aluno-professor como proposta de construção do conhecimento que prioriza o diálogo como elemento primordial ao desenvolvimento das práticas pedagógicas e construção de identidade que se efetivam em sala de aula, possibilitando por meio da ação dialógica a formação de sujeitos reflexivos e atuantes no mundo globalizado.
A segunda parte do artigo buscou narrar de que forma os professores de escolas públicas realizam suas práticas levando-se em consideração a ação dialógica do aluno e professor. Para tanto, foi realizada pesquisa empírica exploratória em duas unidades de ensino com os sujeitos da ação (educador e educando). Os depoimentos colhidos nesses estabelecimentos, analisados à luz das teorias, indicam que a produção do conhecimento em sua plenitude só se dará se cada vez mais professores e alunos se conscientizem que essa produção só se efetiva em sua plenitude na relação dialógica.
Palavras-chave: Educação - Ação Dialógica - Construção de Identidade.
1. A Ação dialógica nos batuques do Pelourinho
Em 1985, o Pelourinho era palco de tráfico de drogas e prostituição. Sua geografia correspondia a becos e vielas onde os moradores se amontoavam nos pequenos e grandes cortiços que lá existiam. Na mesma área, era exercido um poder paralelo. As pessoas sobreviviam à fome e ao desprezo social, cultural econômico e ideológico. Os profissionais da época sentiam-se resistentes e ficavam receosos de atuar em uma "área de risco". Será que as minorias excludentes do país oferecem risco? Durante quatro anos esse foi o palco no qual este pesquisador viveu e conviveu. Nesse palco foi percebido que a formação docente do pesquisador se deslocaria do pensamento à ação, pois a reflexão do pensar, aliada ao fazer, o possibilitaria incorporar as análises dos saberes fundamentais. Não há como negar que nesse momento a (in)certeza das possibilidades e dos limites iam-se concretizando. Mas, logo na segunda semana de exercício, num dia de "Bênção", às terças-feiras, os parênteses e o prefixo do vocábulo ficaram menos evidentes. As atividades docentes eram realizadas todas às terças, quartas e quintas-feiras e para felicidade deste pesquisador às terças-feiras a duração da aula se dava de 18h30 às 19h10, pois acontecia, e até hoje sobrevive, a maior manifestação cultural e religiosa do estado: "A Festa da Bênção". Essa festa é um acontecimento plural, motivador, concebido a partir das semelhanças e diferenças. É múltiplo e por ser múltiplo escapa ante a qualquer tentativa de ser reduzido. Vale ressaltar a partir dessas considerações o olhar de Williams (1998: 37) sobre cultura:
A organização social da cultura, como um sistema de significações realizadas, está embutida em uma série completa de articulações, relações e instituições, das quais apenas são manifestadamente culturais. Pelo menos nas sociedades modernas, esta é uma utilização teórica mais eficiente do que o sentido de cultura como o de uma vida global. Esse sentido, oriundo originalmente da antropologia, tem o grande mérito de salientar um sistema geral - sistema específico e organizado de suas práticas, significados e valores desempenhados e estimulados. Ele é um princípio potente contra os hábitos de estudos isolados, historicamente desenvolvidos dentro da ordem social capitalista.
À primeira vista, pode-se afirmar que não há como desprezar uma manifestação que ocorre todas às terças-feiras em um espaço único onde há colégios, teatros, Casa de Jorge Amado e espaços para lazer.
Nesse momento de batuques, os próprios ressoavam com grande nitidez e apontavam para grandes momentos de êxtase. Seus batuques eram traduzidos no pensamento deste pesquisador, como a ação dialógica que se completava e que se harmonizava entre os participantes desse evento semanal. Alunos e professores compartilhavam e bebiam na mesma taça desse vinho, falavam a mesma linguagem e todos, davam formas diversas aos sons que eclodiam do Grupo Olodum.
Sendo assim, não há como desprezar a sabedoria de Freire (2000) de "quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado".
Nesta manifestação os sentidos iam-se estabelecendo de um para outro e de outro para outro. As trocas, sobretudo, as que vinham dos batuques eram decodificadas ao olhar e traduzidas pelas danças. É o olhar recortando o todo, dando luz, dando sentido ao que se tinha lido e estudado. Era teoria em ação, em comunhão.
Assim cumpre definir que este artigo "a ação dialógica do docente" tem por base a construção de identidade do educando, pois resulta dos diversos saberes, das diversas práticas do professor e do aluno.
2. A ação dialógica como produtora de significados
Para explicitar este artigo, a reflexão foi organizada sobre dois eixos norteadores: a ação dialógica do docente e a construção de identidade.
Para tanto, foi necessário redefinir o que é ação dialógica e identidade.
- Ação dialógica: a ação dialógica é um elemento constitutivo da linguagem e da consciência ideológica. Sua ênfase está na importância da linguagem como fenômeno socioideológico e apreendida dialogicamente no curso da história.
Neste sentido compreender a ação dialógica como uma instância produtora de linguagem e, portanto, formadora de subjetividade, requer considerar o ser humano como um todo inacabado que se constitui de suas relações sociais. Decorre, então, a importância do "outro" na formação subjetiva do ser humano. Um exemplo fiel desta pesquisa são os batuques do Pelourinho na ação dialógica. São nesses sons que se busca a totalidade perdida que a linguagem emerge e por meio dos contrasons, ou ainda contraritmos, é que novos códigos surgirão - a partir de um novo meio interativo.
Com isso, pretende-se demonstrar a relevância das interações ocorridas na escola e no cotidiano, estes adolescentes estão internalizando palavras de outros, tornando-os também parte integrante do eu, enfim, se constituindo enquanto sujeitos e da melhor forma possível. Bakhtin (1997:130), por exemplo, em seu esforço para definir os aspectos da linguagem na sua subjetividade afirma:
"Vivencio a vida interior do outro enquanto alma, ao passo que em mim mesmo vivo no espírito. A alma é a imagem vivida que globaliza tudo o que foi efetivamente vivido, tudo o que faz a atualidade da alma no tempo, ao passo que o espírito globaliza todos os significados de sentidos, todos os enfoques existenciais, os atos que fazem sair de si mesmo".
De fato, essa questão permite uma série de reflexões sobre a ação dialógica e a constituição do outro. É a experiência de construção de si mesmo com o outro, o que implica no estabelecimento de um diálogo que em última instância faz com que o "eu" se veja na imagem que constrói do outro.
Diante dos argumentos apresentados anteriormente a ação dialógica tem a ver com a sintonia, com os sons e com as palavras. A sala de aula é lugar de voz.
- Identidade: Numa abordagem antropológica, a identidade é uma construção que se faz com atributos culturais, isto é, ela se caracteriza pelo conjunto de elementos culturais adquiridos pelo indivíduo por intermédio da herança cultural. A identidade confere diferenças aos grupos humanos. Ela se evidencia em termos da consciência da diferença e do contraste com o outro.
Em uma sala de aula ou outro espaço fora desse contexto escolar atores são chamados a falar, a se colocar, a romper o silenciamento que trazem consigo. Falam e discutem sobre os problemas que vivem e enfrentam no cotidiano, junto com seus vizinhos e moradores. Falam e conversam. Trocam experiências, ideias, alegrias, derrotas, vitórias, contam estórias, mobilizam-se e organizam-se para tarefas comuns.
Esse falar, leva ao domínio da fala, a descoberta do poder falar e esse poder falar parece significar poder. Poder de expor-se, confrontar-se e confrontar, transformar e ser transformado. Influenciar e ser influenciado. Tomar decisões e exercer decisões. De silenciado e em silenciamento, parece viver um processo de provável des-silenciamento em que a verbalização e os gestos que a acompanham indicariam uma ruptura de uma silenciosa opressão. Seria a constituição de um ser de poder, por que se descobre com o poder de falar, dizer, se expressar. A palavra, o falar, o dizer não só estariam indicando a constituição de um sujeito des-silenciante, mas também estaria indicando a descoberta do falar igual aos tambores do Pelourinho, descoberta do falar enquanto poder: poder é o mesmo que o grito dos afoxés; do poder enquanto falar, falar é resignificar os sons dos afoxés, e com isso sujeitos políticos. Sujeitos em seus reencontros, políticos enquanto cidadãos.
Sendo assim, é apropriado resgatar um exemplo que é dado por Rodrigues (2001:20):
É este reencontro que recoloca os indivíduos no seu grupo, na sua classe, nas suas relações sociais e os capacita à reconstrução da experiência e do mundo, não mais segundo os ditames de verdades exteriores a ele, mas a partir das verdades que ele é capaz de descobrir segundo sua nova visão e segundo um novo sentido de mundo.
Em Arroyo (1999: 19) se busca apoio, quando trata do sujeito enquanto agente transformador da sociedade, ao enunciar:
(...) a concepção do povo e de sua ação como sujeito político exige uma revisão profunda na relação tradicional entre educação, cidadania e participação política. Para equacionar devidamente o peso da educação na cidadania teremos que prestar atenção aos processos reais de constituição e de formação do povo como sujeito político, que processos são estes e como se dão.
Calazans (2001: 36) também reflete sobre a questão dos sujeitos e seus diversos espaços como formação de identidade. Ela diz assim:
"Habituados a viver nos deparando com um sistema educacional organizado, no qual somos integrados desde cedo, tendemos a pensar a aprendizagem apenas como consequência da educação. Entretanto desde sempre, olhando os céus, seguindo o curso dos rios, compartilhando o calor das fogueiras, o homem aprendeu com as coisas. Antes de haver 'transmissão de conhecimentos'- e, portanto, aprendizagem do conhecimento pronto - o homem depende de um outro aprender, decorrente de um intercâmbio com o mundo e com as pessoas em ambiente social, por intermédio do qual 'descobre' coisas, por meios práticos, por reflexão, por experimentação - e até por acaso".
Ao discutir o conceito de identidade, Hall (2001:59) explica que:
"(...) não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional".
Diante dos argumentos apresentados pode-se afirmar que quando se trata de sujeitos e construção de identidade, numa perspectiva de ação dialógica é necessário provocar um retroceder no tempo histórico. Para que nesse retroceder o leitor possa se perceber, segundo as condições históricas de cada época, que as pessoas se formam respondendo às questões de seu tempo de um determinado modo e de acordo com as vivências de seu grupo cultural. Assim, é necessário comparar as respostas dadas por outros povos, em outros tempos, com as respostas que são dadas em nosso tempo, encontrando o sentido e a história de nossas próprias respostas.
Não há como produzir conhecimento sem contextualização histórica, social, política e cultural. O repertório de cada indivíduo e sociedade está preso ao contexto vivido. O sujeito não se forma e reforma alienado de seu ambiente social, da mesma forma que ele é influenciado por seu tempo histórico, social e cultural, ele (indivíduo) marca a sociedade em que vive. Nesse processo a linguagem é elemento diferenciador e diferenciado de cada tempo histórico construído a partir da trajetória das diferentes sociedades sempre marcada pelas práticas e ações do indivíduo e da coletividade.
Nesta direção é importante destacar: (Marx 1975: 66) :
"A história não faz nada, nada possui grandes riquezas, não liberta nem ao menos uma só de suas lutas; quem faz tudo isso, quem possui e luta é o próprio homem, o homem real, o homem vivente. Não é a história quem usa o homem como ferramenta para atingir uma meta, como a história fosse um ser à parte, a história é senão a ação do homem na perseguição de seus objetivos".
Mais do que em qualquer tempo, há a consciência que o ser é histórico, por isso, imersos nas experiências anteriores, nos conhecimentos, vivências, culturas, acertos, erros, encontros e desencontros acumulados ao longo do cotidiano e de várias gerações.
Por exemplo, a resposta ao que é belo/beleza é dada de diferentes maneiras. Depende da posição ideológica que o indivíduo ou grupo tem no momento. Em algumas culturas e épocas a beleza é concebida utilizando-se de critérios e padrões diferenciados e de cultura para cultura alguns desses critérios chegam até mesmo a apresentar padrões antagônicos para expressar o belo. Isto também acontece com os olhares relativos à constituição do sujeito e suas ideologias. Não basta que seja visto somente pelo olhar individual e pessoal, nem somente pelos olhos dos outros. Para de fato ser enxergado e compreendido é fundamental aprender a desenvolver uma visão ampla e completa que comporte os pontos de vista individual e coletivo.
Nesse sentido resgate-se também as palavras de Marques (2003: 25):
"(...) a ideologia do cotidiano está, pois, implicada na relação que o indivíduo mantém com seus grupos, pela orientação social que recebe e que exerce sobre eles. Portanto, ela aborda o indivíduo de fora para dentro. É a partir da vivência social e dos discursos que recebe, que o indivíduo busca seu próprio discurso como referencial."
De fato esta questão permite uma série de reflexões sobre as relações não-autoritárias, o estabelecimento do diálogo entre os interlocutores. Alguns autores fizeram reflexões e caracterizações importantes sobre a ação dialógica, abaixo são destacadas, além da contribuição de Marques, mais duas contribuições.
A primeira é expressa por Gutierrez quando diz que existem algumas possibilidades quando o pensamento se apoia numa relação dialógica: os interlocutores falam e escutam, levam em consideração todas as informações, conhecimentos e experiências do grupo em que esta interlocução está ocorrendo e este diálogo faz com que ocorra um maior envolvimento entre todas as pessoas e o assunto em pauta.
A segunda é aquela que é apontada por Freire (2000: 92) quando registra que:
"(...) o diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo. Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens os transformam, o diálogo impõem-se como o caminho pela qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial. E já que o diálogo é o encontro no qual a reflexão e a ação, inseparáveis daqueles que dialogam, orientam-se para o mundo que é preciso transformar e humanizar, este diálogo não pode reduzir-se a depositar ideias em outros. Não pode também converter-se num simples intercâmbio de ideias... Não é também uma discussão hostil, polêmica entre os homens que não estão comprometidos nem ao chamar ao mundo pelo seu nome, nem na procura da verdade, mas na imposição de sua própria verdade.
Portanto, para se estabelecer diálogo entre os interlocutores é necessário perceber que não existem verdades absolutas, é preciso uma atitude voltada para a busca do novo, para a escuta, para o transladar-se, para o ponto de vista do outro, transitando pela opinião e redimensionando posições.
3. As Diversas Possibilidades da Construção da Identidade
O exercício de pensar filosoficamente e historicamente o cotidiano dá-se a partir das problematizações temáticas: o educador torna-se alguém que exercita a arte de perguntar, de instigar o educando a pensar nas respostas e de colocar-se diante de novos problemas.
Abaixo, transcreve-se um exemplo de Lipman (1977: 48) mostrando como ele trabalhou em sala de aula, a partir da historicidade e da filosofia, o diálogo e sua construção com um grupo de alunos:
"Perguntei às crianças se suas carteiras têm história, se sua escola tem história, se seu país tem uma história e se o mundo tem uma história. Responderam que sim a cada pergunta, com certa minúcia. (Depois arrependi-me de não lhes haver perguntado se a história do mundo era a história deles ou a história de sua história). Concluí o exercício perguntando-lhes se, eles também, tinham histórias. Com isso, concordaram entusiasmados. No final da sessão, para minha surpresa e satisfação, diversos deles se dirigiram a mim para perguntar se eu queria que escrevessem suas próprias histórias, de modo que pudessem dá-las para mim".
A perspectiva assumida nesta investigação é que, por meio do diálogo, se avaliem as diversas possibilidades de explicação dos fenômenos com os quais ao longo da trajetória de existência depara-se o ser social. Contudo, estas possibilidades têm dialeticamente duas características: a de movimento e a de permanência. O que se quer dizer é que por meio do movimento o aluno tem a possibilidade de descobrir e de re-significar novas descobertas que fazem as antigas serem superadas. Por exemplo, o que num determinado momento é considerado como correto em outro pode não o ser. Por outro lado, é sua característica de permanência que possibilita a passagem, o acúmulo e a manutenção dos conhecimentos de uma época para outra, se isso não ocorresse certamente não se teria a história dos seres humanos, não se teria a história da escola mecanicista, da nova escola, não se conheceria as abordagens tradicionais, cognitivas, socioculturais etc.
Diante dos argumentos apresentados, o exercício de pensar e dialogar o cotidiano dá-se a partir de problematizações; o educador torna-se alguém que exercita a arte de perguntar, de instigar o educando a pensar e de colocar-se diante de novos problemas. O cotidiano é profundamente desafiador e, esse desafio coloca-se não como um obstáculo, mas sim como uma exigência de respostas. Os tambores ressoam e suas batidas são re-significadas pelo "eu" e pelo "nós". Isso exercita a tomada de decisões diante de outras posições; nesse sentido o educando, a partir dessa ação dialógica, constrói novos sentidos aos ecos das batidas dos tambores do Pelourinho, assume posições de vida, re-significa conceitos e isso afetará a qualidade do processo vivido por cada um. Assim, a ação dialógica de educando-educador vira uma importante estratégia pedagógica porque:
"(...) só o diálogo de busca constante do saber, por meio das inter e trans-reciprocidades de nossas perguntas e respostas, gera um genuíno conhecimento. Um conhecimento que aspira habitar em cada um de nós e entre todos nós. Só é um educador aquele que se recusa a sair do diálogo" (Demo, 2001, p.14).
Nesse sentido, a prática dialógica também fundamentada nas concepções de Bakhtin (1992) indica a importância dos aspectos éticos, políticos e epistemológicos na constituição do atuante e capaz de partilhar, mediar o conhecimento e desenvolver práticas culturais democráticas.
O processo dialógico desenvolvido na sala de aula promove a interação dos múltiplos aspectos que envolvem a cognição, colaborando para que o homem aprenda a ser homem e o conhecimento científico possa florescer.
De fato, é a partir da ação dialógica que educando-educador transcendem para uma concepção da construção da identidade. Para muitos autores essa questão também deve ser analisada a partir da premissa, que o homem constrói seu conhecimento por meio de outros fatos que permeiam sua vida e que o ensinar a aprender estes fatos é uma tarefa interrelacional que pertence não só ao educador, mas também ao educando com suas experiências e problematizações, pois se entende que a construção do conhecimento científico não é só, mas, também um agente para tal construção.
Com efeito, JAPIASSU (1999: 66) trata com muita propriedade esta questão do conhecimento científico:
"Ensinar a aprender, a se construir ou a se reconstruir, eis o papel do educador. Todo progresso na educação está na construção do espírito, não em sua domesticação. Só o educador que se considera um mestre, não possui o sentido do fracasso... Se queremos compreender o que realmente se passa no real , precisamos exorcizar os erros que se infiltram naturalmente em nossas primeiras construções do mundo percebido. Precisamos deixar de considerar a incerteza como um sinal de fracasso. E superar a rigidez das ideias recebidas... Daí a importância de se refletir sobre a imagem das ciências que os alunos já se fazem. Porque o empreendimento de comunicação científica , pelo ensino, deve ser concebido como confronto de dois cognitivos distintos, não como o confronto entre um conjunto pleno de ciência e um conjunto vazio de conhecimento".
E mais:
"Para o homem, o mundo é sua provocação, um lugar onde enfrenta desafios e testa experiências. Por isso seu processo de aprendizagem, deve exigir que seja dada tanta importância à compreensão quanto à produção do saber. Porque é um ser essencialmente social. Por natureza, político-cultural. Para ele, a sociedade não é uma seleção de indivíduos perecíveis e substituíveis vivendo num território, falando uma língua e praticando exteriormente certos comportamentos. Enquanto indivíduo, o ser humano pertence à sociedade, não somente porque participa de suas significações imaginárias, de suas normas e valores, de seus mitos e representações, de seus projetos e tradições, mas porque partilha da vontade de ser dessa sociedade e de seu contínuo fazer-se" (JAPIASSU, 1999: 92).
Morin (2002: 26) oferece apoio, quando utiliza o conceito de cultura na construção do conceito científico dentro de uma perspectiva plural da ação dialógica ao enunciar:
"A cultura é constituída pelo conjunto de saberes, fazeres, regras, normas, proibições estratégias, crenças, ideias, valores, mitos, que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social. Não há sociedade humana, arcaica ou moderna, desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim, sempre existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio das culturas".
Porque:
"O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. Dissemos que todo ser humano, tal como ponto de um helograma, traz em si o cosmo. Devemos ver também que todo ser, mesmo aquele fechado na mais banal das vidas, constitui ele próprio um cosmo. Traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma infinidade de personalidades quiméricas... Cada qual tem em si galáxias de sonhos e fantasmas" (MORIN, 1993: 57).
Diante dos argumentos e citações apresentados acima é lícito afirmar que a interação das múltiplas vozes que compõem o processo cognitivo tem a possibilidade de construir por intermédio da prática do ensinar, concretizada na perspectiva da dialogia. À medida que se interage com o outro, conhecem-se suas culturas, seus saberes, seu cotidiano, suas práticas e constituí-se o modo próprio de ler a vida para conhecer o mundo. E tendo a 'pluralidade dos sons' envolvendo as múltiplas vozes que acompanham o processo interrelacional com as coisas.
A relação dialógica envolve sempre, duas consciências e sua ação é uma relação com o sentido, constituindo as práticas discursivas efetivadas na sala de aula.
E a palavra na ação do diálogo, conforme ressalta BAKHTIN (1997: 128) está em todas as relações entre indivíduos. E para explicar a ubiquidade social da palavra, o autor diz:
"(...) As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que não abriram caminhos para sistemas ideológicos estruturados e bem formados".
Silenciar a palavra do outro é afastá-lo de suas próprias ideias e pensamentos, podendo provocar-lhe uma concepção equivocada a respeito de si mesmo, dada as condições de assujeitamento a que foi exposto. A palavra, utilizável como signo, é material semiótico da consciência, ou seja, do discurso interior. Apontando para o desempenho da palavra no desenvolvimento do pensamento, Vygotsky (1991: 132) afirma que "uma palavra é um microcosmo da consciência humana".
Servindo de mediação entre o educando e educador, a palavra tem seus significados e sentidos constituídos na relação entre esses dois sujeitos. Portanto, é de se refletir como está sendo trabalhada a linguagem que imerge dessa relação interpessoal, quais os significados constituídos nessa interação e como está definido o papel do educador e educando nesta ação dialógica.
4. Territórios em Ação
A escola é uma das expressões mais conhecidas da cultura, mas parece ser a menos compreendida tanto pelos governantes como por aqueles que a frequentam.
No contexto do poder, dir-se-á da escola como aquela que reflete de alguma forma as possibilidades e limitações de todo cidadão. Neste sentido, a escola deve ser um sistema social que admite na sua composição interna à formação de subsistemas de uma mesma índole.
Considerando-a como sistema não pode se negar a sua complexidade e ao mesmo tempo reconhecer que uma de suas características é de promover embates, discussões. Essas discussões decorrem da interdependência de seus componentes. Professores e alunos não são simples participantes; muito pelo contrário, são seres sistêmicos e complexos dentro de um sistema chamado escola e sala de aula.
E a sala de aula, posta como um espaço situa-se como uma alternativa para estar. A sala de aula, nesse sentido, partilha a categoria da espacialidade com outros espaços, mas a forma de sua ocupação cria especificidade. Portanto, não basta a existência possível de sala de aula para que se torne sala de aula. Tal como um cenário, ela não se basta para que um enredo todo se desenrole.
Da sala de aula resta analisar o que lhe é essencial, isto é, o que sem o qual deixa de ser o que é. Ao mesmo tempo, a sala de aula pode ser deslocada para lugares os mais diversos possíveis, pois sua atividade essencial extrapola limites físicos.
Historicamente a sala de aula foi e tem sido localizada no perímetro da escola. Dificilmente se consegue pensar em sala de aula separadamente da escola e vice-versa. A escola constitui-se o espaço social que procura garantir minimamente o tempo para a sua ocupação. Cabe lembrar que a palavra escola deriva do grego e significa lugar de ócio.
Formalmente, a sala de aula é ocupada pelas figuras do professor e do aluno. O encontro ou desencontro entre estas figuras confirma a diferença como elo que os relaciona. Relacionar-se pela diferença significa afirmar o outro, a alteridade. Afirmar o outro é afirmar o próprio eu, pois o reconhecimento do "eu" passa pelo reconhecimento do que é distinto, diverso.
No entanto, deve-se perguntar, por que reconhecer o outro? Tudo é sempre o mesmo! Foucault (1980) diz que os olhos que são feitos para ver não veem e somente veem quando são vistos. Lidar com o desconhecido é extremamente desconfortável por isso o "eu" compreende esforços para enxergar e compreender o outro. O próprio pensar, a mínima consideração sobre a realidade, desdobra o "eu" num outro, numa distinção e ao mesmo tempo, a identificação não é absoluta, pois um desaparece no outro. Portanto, o "eu" já é um outro e este já é um "eu". Como também diz Hegel (1992) "o ser em estado puro, indeterminado, equivale ao nada".
O outro é a completude do "eu". E se assim não for, a relação acaba por se desfazer. Por isso o outro permanece um desconhecido, aquele que deve ser buscado sempre. O que se faz amante do outro é perceber o outro em nós. Afinal, amante é o que se tem para oferecer. É o que antigamente se chamava de Particípio Presente na Língua Portuguesa. É o continuar da ação, do fazer e fazendo-se, o outro se faz. E o que se deseja é o que o inesperado promova a ação do amante que se faz. Ele é a diferença do que se estabelece, do oficial, enquanto amantes.Ele, o amante faz com que descobertas sejam descortinadas, se apresentem como fato novo, como o ser de experimentações novas. Assim é a relação com o outro no sentido de redescobertas, de aluno, de professor. Assim é o espaço da escola em todas as suas dimensões.
Como afirmado até o momento o outro precisa ser levado em consideração, mas isso não deve ser tomado como se o outro fosse o eixo da relação. Cabe mencionar aqui que o outro não é lugar de perfeição, mas como pensa Marques (2003: 58) "(...) os indivíduos são capazes de se constituírem em sujeitos, na medida que esses se percebem como parte de um coletivo, porque o sentido se concretiza no outro". Nesse sentido a completude entre o eu e o outro não é de mero acoplamento, posto que não se trata de seres divididos que buscam no outro sua metade. E a sala de aula é a relação entre o professor e o aluno. Um encontra no outro sua identificação e, concomitantemente, sua negação, pois o professor pressupõe o aluno e vice-versa. O professor nega o aluno porque este necessita ir além do que é para tornar-se realmente o que é. O aluno, por sua vez, nega ao professor o perfil do que ensina para cobrar-lhe a aprendizagem, posto que o desconcerto provocado exige um novo olhar sobre o outro, o aluno.
Assim sendo, resta ao professor perceber a experiência do aluno, provocando o reconhecimento dele pelo próprio aluno e a realização mais consistente de sua elaboração.
O professor, obviamente, não é a única mediação possível, às vezes, nem a melhor, mas é um momento da relação e muito privilegiado porque está aí para o outro. Nietzsche sugere que aquele que pretende estabelecer uma relação com alguém tem que se perguntar se é capaz de conversar com esse alguém por algum tempo. Conversar exige atenção à fala do outro. E a sala de aula enquanto espaço de encontro é local de desafios, posto que é isso que resulta do estar com o outro. O ato de estar junto deve ser investigado segundo o que possa ser mais do que é. Por isso, professor e aluno necessitam estar constantemente aos ritmos dos atabaques para não calcificar o próprio ser e inibir outras possibilidades.
Trata-se de um encontro entre humanos e, talvez, precisamente devido a isso, tenham-se desencontros. Ser professor e ser aluno, estar na sala de aula e manter a ação dialógica pede apreciação no que se pode neste espaço.
Considerações Finais
O que se pretende defender neste texto não é que a escola se exima de possibilitar a reflexão à cerca da ação dialógica, mas também ser instrumento e espaço social aberto para tal reflexão entre discentes e docentes.
Como o objetivo é explicitar resultados de um processo, há que se considerar que muitos deles ainda estão se tornando mais explícitos agora, ao final de sua apresentação, pois a organização do conhecimento acaba mostrando a gama de caminhos para seu alcance e a impossível missão de ter concluído ou chegado ao final da busca. Mais essa é a razão do conhecimento, sua dinâmica e constante mutação por isso a busca incessante e contínua.
A vida, bem como as experiências, são resultados de participação num processo espiral em que se sabe o porquê perseguir: experiências e imperiências também. A habilidade está em conseguir a seta do tempo, onde as experiências se dão! O que foi que denotou o impulso...
Posto que não se pode antecipar resultados prontos e fechados, uma vez que a pesquisa revela que a experiência é intransitiva. O artigo que foi apresentado que é parte integrante de uma pesquisa não é um caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas uma abertura diante do desconhecido, que não é possível antecipar. Portanto a experiência traz a (in)certeza que a pesquisa não é a descrição de um código, mas a construção de um sentido, de um olhar, abrindo possibilidades de re(significação).
Enfim, a pesquisa sobre a ação dialógica de professores de escolas públicas não veio para mostrar um saber, um resultado a que se chegar, mas se constitui um anúncio de provisoriedade do saber, uma verdade particular e relativa - uma construção de ética e cidadania.
Aqui se enfatiza a importância da responsabilidade ética no exercício do papel de professores e formadores de outros sujeitos e a participação e autorização da Direção do Colégio Estadual Alice Paccini Gélio, Diretor Rubens e a Vice-Diretora, professora Marivalda e a Orientadora Educacional, professora Alba. Assim também se faz presente o corpo discente e docente do Colégio Golda Meir em sua Gestão Democrática.
Assim, o estudo encontra-se permeado pelo sentido necessário da ética que conota expressivamente a natureza da prática educativa enquanto atividade reflexiva. Portanto, uma ética afrontada na manifestação de qualquer forma discriminatória, que envolve o crédito na capacidade do outro, que exige acreditar nas pessoas e nas suas potencialidades e possibilidades de produção.
O trabalho pedagógico, a escola e à realização deve ser associada a um empenho em buscar, nos acontecimentos produzidos pelos professores e seus alunos, o que há de novo, de peculiar e potencial, com vistas a desmistificar qualquer tipo de descrédito e despreparo do professor, mas averiguando a possibilidade de que a escola, os professores e seus alunos, se lá estão é porque há tempo para despertar esperanças, autoestima e valorização. De fato, uma nova cultura, uma nova postura e uma nova ética impostas pelo novo milênio, já estão a se exigir.
Ao encerrar este artigo, (re)afirma-se que, cada vez mais, se está convencido da implementação de uma prática que advém de uma postura reflexiva, considerando que alunos e professores são partes de um mesmo processo, de um mesmo dizer, sem o qual ambos juntos, deixam de ter sentido.
BIBLIOGRAFIA
ARROYO, Miguel. G. Ciclos do desenvolvimento humano e formação de educadores. In: Educação e Sociedade: Cedes, n.68 Especial, Campinas, 1999.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 7ª.ed., São Paulo: Hucitec, 1995.
____________ Estética da criação Verbal. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BELL, Judith. Como realizar um projeto de investigação. 2ª. ed. Lisboa: Gradiva, 1997.
CALVINO, Ítalo: Palomar. 8ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. 10ª. ed. São Paulo: Papirus, 1999.
__________________ A invenção do cotidiano: artes de fazer. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
DEMO, Pedro. Saber Pensar. 4ª. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
FOUCALT, M. Vigiar e Punir. 8ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1980.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 16ª. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
____________. Pedagogia do Oprimido. 19ª. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
GIROUX, Henry. A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. 8ª. ed. Porto Alegre: Artes Médicas. 1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 6ª. ed. Rio de Janeiro: D P& A, 1999.
HEGEL G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.
JAPIASSU, Hilton. Um desafio à educação: repensar a pedagogia científica. 9ª. ed. São Paulo: Letras & Letras, 1999.
LIPMAN, Matthew. Natasha: diálogos vygotskianos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
MALCHER, Maria Ataíde. A memória da Telenovela: legitimação e gerenciamento. São Paulo: Alexa Cultural, 2003.
MARQUES, Jane Aparecida - Dissertação de Mestrado - As mil e uma faces do garoto Bombril: um estudo da reprodução recepção do discurso publicitário veiculado na mídia impressa. USP. 2003.
MARX, Karl. O capital. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
_____________ . Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 1993.
______________. Saberes locais e saberes globais. O olhar transdiciplinar. Rio de Janeiro: Garamond. 2000.
RODRIGUES, Niedson. Lições do príncipe e outras lições. 4ª. ed. São Paulo: Cortez, 1998.
SOARES, Magda. Metamemória - Memórias - Travessia de uma educadora. 4ª. ed. São Paulo: Cortez, 1991.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1998.
Publicado em 01/08/2006
Publicado em 01 de agosto de 2006
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.