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Um ofício dentro da vida

Pablo Capistrano

"Tudo que não é literatura me aborrece". Li isso quando tinha uns quinze anos. Se a memória não me deixar na mão, acho que foi num livro de Gustav Janouch, chamado Conversas Com Kafka. Janouch era um jovem candidato à poeta que conheceu Kafka e que o visitava no escritório de advocacia para conversar sobre literatura. Com quinze anos eu direcionei a frase de Kafka para o ato da leitura. Imaginava que talvez, o que ele estivesse tentando dizer era que a vida era muito curta para se ler qualquer coisa que não fosse literatura, ou para se fazer qualquer coisa que não tivesse a ver com algum tipo de "vivência literária".

Mas o que significava viver na literatura? Durante muito tempo eu persegui uma resposta para esse enigma. Li uma imensa quantidade de biografias de escritores para descobrir qual a cor e o tom de uma vida literária. Qual o caminho para sumir da vida banal e entrar na literatura, como se o ofício de escrever pudesse, de um modo ou de outro, abarcar a própria vida e transformar essa mesma vida num imenso romance.

Durante dez anos apostei todas as minhas fichas nisso. Para escrever um livro talvez eu devesse encontrar uma porta perdida em algum lugar, que pudesse tornar a minha experiência de estar no mundo, tão rápida quanto um texto de Jack Kerouack, tão intensa quanto uma trilogia de Henry Miller, ou tão maravilhosa e assustadora quanto um conto louco de Poe.

Dez anos haviam se passado e eu, apesar de ter escrito mais de 300 páginas de quase tudo que você possa imaginar, não havia conseguido concluir um único livro. Foi então que o deserto apareceu e por dois anos eu não consegui escrever uma linha. A experiência do deserto é inquietante. Estar diante do vazio que a incapacidade de nossa linguagem aponta pode desconstruir qualquer tipo de talento e subverter a compreensão do que significa "se aborrecer com tudo aquilo que não for literatura".

Estar árido de palavras é pior do que não saber o que fazer com as palavras que você tem. Para alguém que sente a compulsão pela linguagem isso se torna fatal. Tentar estetizar a própria vida é uma experiência de risco que já levou muitos colegas de ofício literário mais cedo para o cemitério ou para o manicômio.  Meu erro, naquele tempo de sonhos intranquilos, era acreditar que a vida deveria estar a serviço da linguagem. Isso torna a linguagem insuportavelmente pesada. A literatura não consegue conter a vida. Ela não tem força suficiente para ocupar todos os espaços da vida e fazer com que a vida se torça na sua direção.

Quando você tenta transformar seu romance na sua vida, seu romance afunda com um peso que não lhe é natural e então você se pega sozinho, sem sua mais fiel amiga, sem sua mais agradável amante. A literatura pode ser o tijolo que falta para preencher algum dos inúmeros buracos da alma de alguém. Quando você negocia com ela e respeita seus limites, ela pode oferecer muito. Hoje, quando eu penso na frase de Kafka, entendo que o seu aborrecimento não era o de quem vive fora da literatura e quer desesperadamente virar personagem de um livro. Mas sim o aborrecimento pragmático que indica que, para exercer o oficio de escritor, é necessário ser mais do que um simples escritor. É necessário primeiro estar vivo num mundo muito maior e muito mais vasto do que os que se guardam nos livros. Num mundo no qual a linguagem está a serviço da vida, com tudo de dano e benefício que isso possa provocar.

Publicado em 15/08/2006

Publicado em 15 de agosto de 2006

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