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Ensino de filosofia e o enredo das definições de filosofia

Américo Grisotto

Professor das Faculdades Network (Nova Odessa/SP)

Bonde da filosofia

RESUMO

Esta comunicação tem o propósito de tomar as definições de filosofia comuns nos manuais didáticos, ou as definições de filosofia utilizadas no ato do seu ensino e analisarem que medidas atendem ao apelo de determinações, bem como o seu contrário, quando centradas, são, na verdade, descentradas e propiciam deslocamentos, ou seja, o que há de desinteressante no ensino de filosofia quando o viabilizamos a partir de uma definição, em termos de fechamento, e quando mesmo definindo-lhe damos o seu avesso. Estas proposições têm sua razão de ser pelo fato de que tal ensino tem lá suas peculiaridades e estas não estão reservadas apenas ao cuidado que se deve ter com o que lhe é próprio, mas a um certo descentramento comum em sua prática.

Considerem-se os períodos da história de
um povo nos quais o homem douto ganha
evidência: são épocas de cansaço, muitas vezes
de crepúsculo, decadência - a força que
transborda, a certeza da vida, a certeza de
futuro se foram.

Genealogia da Moral, III, 25

1. PARA INÍCIO DE CONVERSA

Na condição de professor quem já não se deparou, no início do ano letivo, com as famosas reuniões de planejamento. Afinal de contas, temos que esclarecer a que nos propomos na nossa atividade docente.

Assim, nesta ocasião, tecemos objetivos, sugerimos uma metodologia para as aulas, esclarecemos qual será o nosso tipo de avaliação, fechamos um conteúdo programático.

As posições mais críticas desconjuram com veemência esta prática e sugerem que a organização de um plano, para o ano, seja feita em conformidade com a realidade dos alunos. Com isto, em muitos casos, a tarefa do professor de planejar as atividades letivas prorroga-se para além da semana de integração.

Se levarmos em conta este comedimento, independente do que pode ser posto anteriormente, ensejando momentos de confraternização com os alunos, ou investigando lhe o nível de aprendizagem, o planejamento apresenta-se como base de definição da trajetória do professor no calendário das aulas. Para isto são previstos os dias de reunião.

A propósito de a palavra definir, seria bom não nos esquecermos, significa limitar, terminar, explicar, descrever, determinar, fixar, concluir, acabar. Assim, mesmo que se proponha um certo realismo, como tática para amenizar a insensibilidade da burocracia para com os participantes do ato educativo, o professor terá que dar cabo, fim, fechamento, aos propósitos de sua prática e sem isto não estaria liberado para dar prosseguimento ao seu trabalho.

Em acréscimo a este procedimento, de encaminhar o que traz na bagagem, outras recomendações se somam à tarefa desse pivô da educação, provenientes do Estado, por intermédio do Ministério da Educação e Cultura (MEC), das delegacias de ensino estaduais, das secretarias municipais, conforme o vínculo que o estabelecimento mantiver. E, como se não bastasse tudo isto, a sua escola, pode ter optado por uma certa linha pedagógica como suporte dos rumos que pretende seguir e neste episódio é bastante comum que algumas pessoas, iniciadas nestes assuntos, venham proferir suas recomendações. Um tipo de sobreaviso de que não basta ao professor recorrer apenas aos domínios da sua especialidade.

Nestas tormentas do retorno à atividade docente, que nos retira dos bons dias de férias e do aproveitamento de verão, nos organizamos, somamos forças, sabe-se lá de onde, e tocamos em frente. Enfim, as contas precisam ser pagas e se tivemos alguns dias de descanso foi graças ao trabalho que desempenhamos durante meses. E mais, nesta época de desemprego conjuntural nem é bom maldizermos o que nos traz o pão de cada dia.

Prosseguindo, sem deixar de considerar estas pontuações e agora tratando do professor de filosofia, acredito que teremos como problematizar a questão se mantivermos com o pensamento uma relação direta e não propriamente o destino que lhe tem dado a reflexão crítica, o fundamento e a visão de conjunto ancorada nas ciências. Isto terá uma explanação mais elaborada nos demais tópicos do texto. Voltemos ao professor de filosofia agora em confronto com seus protocolos.

Os órgãos que controlam a educação, desde o Estado, em termos mais amplos, e a escola, mais especificamente, trabalham em cima de um padrão e isto mesmo quando se declaram democráticos. E o padrão nada mais é do que um rolo compressor que pretende nivelar todas as ações. Imagino até que os operacionalizadores destas estratégias intencionem atingir a todos com seus enunciados e queimem as pestanas para que isto ocorra. Mas, como podem ter essa onipotência de determinar a priori todas as ações dos professores e consequentemente a dos alunos?

Como somos capazes de notar, esta trama oscila entre ações, que poderiam ser encaradas como específicas, a dos professores, seguindo o que estabeleceu para sua prática em sala de aula e as ações padronizadas, aquelas tecidas pelos órgãos competentes, desde as previstas no regimento escolar até os documentos das instâncias governamentais. Como a primeira está contida na segunda, não há escapatória, senão cumprir o que está determinado.

Diante destas colocações alguém poderia argumentar que a saída mais viável seria dar um jeitinho na situação, burlar o sistema. Cumprindo com as exigências da burocracia e ao mesmo tempo levar as coisas malandramente, sem muito compromisso e são muitos que não descartam totalmente esta hipótese.

No entanto, penso que estas estratégias, de por um lado centrar de vez a prática educativa a ponto de cumprir rigorosamente o que está sendo estipulado e de outro descentrar de vez buscando subterfúgios, não seriam muito plausíveis.

A questão estaria mais bem resolvida se o professor de filosofia conseguisse inserir, no interior das práticas comuns às ações educativas, em que são exigidas definições, determinações, uma iniciativa díspar. Com isso, teria lá seu gorjeio, a sua música, segundo suas preferências filosóficas; prontificaria-se a orientar os alunos, quando exigido; mediaria os debates esclarecendo pontos intricados se necessário, enfim, estaria centrando descentrando por mais contraditório que possa parecer. Seria esta, talvez, uma possibilidade de fazer algo que diz respeito somente a ele, sem deixar de cumprir o que se exige formalmente. Mas, não seria esta a vizinhança que me interessa propriamente e sim a relação professor-aluno, embora este assunto, do professor frente ao que advém das instituições, venha à baila vez ou outra no corpo do texto.

Prosseguindo pretendo passar à prova algumas definições comumente utilizadas nas aulas de filosofia.

2. IMPASSES DAS DEFINIÇÕES DE FILOSOFIA RELACIONADAS AO ENSINO

As definições de filosofia, comuns no ato do seu ensino, embora se apresentem como adequadas, por grande parte dos docentes, podem dar mostras do contrário quando viabilizadas a partir da sua experimentação.

Antes de qualquer coisa, gostaria de dizer que a problematização destas definições, mais precisamente, de filosofia como reflexão, fundamento e interdisciplinaridade, já foram trabalhadas com muita argúcia por um filósofo da educação (Sílvio Gallo) em vários dos seus textos e qualquer coisa que gostaria de dizer a respeito parecem esgotadas por suas intervenções. No entanto, pretendo me servir, não só de seus referenciais, mais de algumas de suas explanações e estendê-las, especificamente, à relação professor-aluno procurando analisar-lhes as implicações.

Suponhamos que um professor de filosofia tomasse, no desenrolar do seu conteúdo, como princípio desta disciplina, a reflexão crítica dos fundamentos das ideias e das práticas cotidianas e encaminhasse suas atividades incentivando os alunos a exercer tal propósito. Penso que se eles forem rigorosos no ato de filosofar, segundo esta vertente, acabarão constatando o que algumas pessoas pensaram e acabarão por adotar-lhes as ideias.

Por que digo isto? Esta proposta nada mais é do que um movimento de volta sobre si mesmo ou de volta do pensamento para conhecer-se a si mesmo.

Nota

Neste momento é quase impossível não trazer da memória a famosa frase de Sócrates "Conhece-te a ti mesmo" que, sem sombra de dúvida, endossa esta concepção.

Se ele, aluno, resolver verificar porque pensa o que pensa, diz o que diz e faz o que faz, chegará à conclusão que os motivos, as razões, as causas, o conteúdo, o sentido, a intenção e a finalidade do porque pensa, diz e faz é justamente o fato de que algumas figuras, dignas de nota, os filósofos contemplados na história da filosofia, ensaiaram tal possibilidade. Realmente estes construtores de conceitos exerceram genialmente a atividade do pensamento inventariando sentenças e nos permitindo chegar a muitos dos avanços que presenciamos hoje.

Neste, porém, nada mais sensato, para as pessoas comuns, do que lhes tomar as ideias para seguir pensando, de maneira mais correta, o que pensam, dizendo o que dizem e fazendo o que fazem. Uma tarefa árdua, porém necessária, de recolher ao que já foi pensado no pensamento.

Arriscando-me um pouco, diria que se estes alunos, deslocassem as figuras, não mais visualizando os filósofos e os seus sistemas, que às vezes parecem inacessíveis, mas as personalidades que exercem algum tipo de pensamento sobre eles - pai, mãe, professor, diretor de escola, um ídolo - tenderão a aceitar, por exemplo, e de bom grado, as exortações que lhes são conferidas, pois voltando-se criticamente sobre si mesmo, na história que lhes é mais próxima, irão verificar que algumas verdades fundamentais permeiam sua formação e que seguir o caminho determinado por eles é o melhor a ser feito.

Mas, o que é mais intrincado e problemático nisto tudo não são os fatos em si, mas o que decorre deles, ou seja, as condições que os alunos se impõe, abdicando de seguir suas trajetórias singulares de vida, para servirem-se de modelos e imitar-lhes as orientações. Não digo, com isto, que refletir criticamente, buscar referências, sejam atos reprováveis, mas que não consistiria numa possibilidade interessante para o exercício do pensamento.

Do lado do professor de filosofia as coisas não se diferem muito daquelas enfrentadas pelos alunos, que prontamente se impuseram à tarefa de refletir. Enveredando-se por este caminho da crítica reflexiva, ou da procura de fundamentos, pode estar construindo, paralelamente ao que lhe é cobrado, uma nova parede, a da crítica, opondo uma contra a outra, sem se aperceber que, na verdade, está no meio disso tudo, atraindo para si o risco eminente de que os destroços lhe caiam sobre a cabeça.

Prosseguindo pois, penso que, por ora, estas colocações dão conta das propostas de filosofia como reflexão crítica e fundamento histórico. Partamos para a concepção que ficou em aberto. Trata-se da interdisciplinaridade, ou de enxergar a filosofia como exercício de tal possibilidade e aí estaríamos adentrando pelo viés do saber mais comumente socializado nos meios escolares - o saber científico.

Para nós e para os interessados nesta questão, a trajetória é bastante conhecida. A princípio, a ciência estava ligada à filosofia cabendo ao pensador refletir sobre todos os campos da indagação humana. Com o passar do tempo, irrompeu-se um desligamento e as diversas ciências decretando sua independência, começaram a se pronunciar a partir de seus respectivos objetos de estudo, orientando-se por um único método, fundado na experimentação, observação e matematização. Isto possibilitou, ao campo do conhecimento científico uma perspectiva de uniformidade e objetividade, destinando-lhe a tarefa de emitir juízos sobre a realidade mostrando como os fenômenos ocorrem, quais as suas relações e como poderíamos prevê-los.

No interior desta emancipação das ciências particulares em relação à filosofia houve também a substituição do conteúdo filosófico pelo de caráter científico. E aí acabou-se por montar um dilema: que atividade atribuir a esta senhora de um pouco mais de dois mil e quinhentos anos? Simples, a lacuna deixada por este novo saber traçado muito mais pelas linhas da especialização em recorte pelo real, do que por visão de conjunto da realidade. Se os problemas da ciência eram resolvidos parcialmente, caberia à filosofia, em acréscimo, abarcá-los na sua totalidade e reunir seus fios.

Transportando esta noção de filosofia, como interdisciplinaridade, para o contexto da sala da aula, o professor poderia tê-la sugerido no rol do seu curso.

Tomemos, hipoteticamente, um aluno, em particular, cursando a segunda série do ensino fundamental, que resolveu adotar e inserir em seu cotidiano a atitude filosófica como sendo uma atitude interdisciplinar pelo fato do professor ter explorado esta ideia em sua última aula.

Este nosso personagem, numa sexta-feira à tarde, querendo adiantar os deveres escolares, priorizou a tarefa que lhe demandava mais tempo: acompanhar o desenvolvimento de um pé de feijão desde o seu plantio até o momento que irrompesse a sua primeira haste.

Embora se tratasse de um experimento um pouco infantil, realizado inúmeras vezes nas séries anteriores, a professora aconselhou que o fizessem objetivando, com isto, retomar alguns pré-requisitos que considerou já esquecidos pelos alunos.

Entre a preparação do que lhe era necessário para esta sua experiência e sua execução propriamente dita, nosso aluno lembrou-se do que havia lhe dito o professor de filosofia e se pôs a pensar interdisciplinarmente, servindo-se aleatoriamente das aulas que mais gostava.

Prontamente disse para si mesmo, que não era o único que experimentara aquele tipo de tarefa, muitos outros já a executaram e que, portanto, poderia ser redigida uma história sobre tal empreendimento, bastaria estudar seu passado para ver as possibilidades que o presente lhe destinava e assim planejar seu futuro com mais segurança. Mas isto não bastaria, a elaboração desta história não poderia prosseguir apenas por aquele caminho. Seria importante compreendê-la criticamente, afinal esta pequena experiência sobre o crescimento das plantas pode ter um sentido maior de matar a fome de quem precisa e não simplesmente para encher o bolso dos mais ricos. Cogitou também alguma coisa sob o viés da geografia, folheando alguns livros e verificando quais os melhores solos para aquele tipo de cultivo, o clima mais propício, os lugares adequados para este tipo de plantio. Embora a professora não lhe houvesse pedido um relatório da experiência, pensando filosoficamente, tratou de anotar cada passo de suas observações. Afinal, estava aprendendo a usar corretamente a língua portuguesa e não seria nada mau exercitá-la naquele momento. Além disso, outras pessoas, que não presenciaram em loco suas conclusões, podiam interessar-se pelo que houve e as anotações estariam à mão.

Voltando à escola, na segunda-feira, nosso estudante já tinha encaminhado muita coisa por meio daquele tipo de atitude. Entre os dez minutos que antecediam o sinal de entrada e o início da aula de ciências procurou o professor de filosofia e apresentou-lhe seu resultado. Argumentou que gostaria de tirar proveito de suas aulas para continuar aquele trabalho, esperando, com isto, um certo apoio.

O professor ouviu-lhe as argumentações e lhe explicou que tinha um conteúdo a cumprir e que se aquela definição de filosofia foi posta, o foi como conteúdo do programa e que não havia tempo hábil para exercitá-la. No entanto, percebendo o interesse do aluno incentivou que continuasse, por sua conta, tal empreendimento.

Bom, nosso aluno realmente prosseguiu e acabou por construir os mais diferentes arranjos em torno dos fenômenos que lhe interessavam e a sua matéria-prima não podia deixar de ser outra, senão aquela proveniente dos conhecimentos científicos. E aí entendo que sua tentativa estaria mais voltada à questão da epistemologia, por estar a todo o momento às voltas com a ciência e seus estatutos. Um tipo de filosofia sob um viés muito específico. Mas ainda, quanto ao nosso aprendiz, digo-lhes que prosseguiu os estudos e acabou enveredando pelo ramo da ecologia.

Comentando um pouco a postura do professor, nesta historinha hipotética, não podemos esquecer que o lhe dá a possibilidade do exercício de sua profissão trata-se de algo muito específico, dentro do que chamamos grade curricular, que não deixa de ser, propriamente, a configuração que as diversas ciências tomam no meio escolar. O seu emprego, advindo da forma como absorveu os conhecimentos na universidade, por exemplo, está vinculado a uma função específica e se ele foi contratado, tal lógica não deixará de ser observada.

Mas, digamos que ele resolva-se, mesmo assim, se valer, na prática, da interdisciplinaridade com postura filosófica. Primeiro teria que abrir mão do suposto conteúdo da sua disciplina, estabelecendo um diálogo com os colegas das outras disciplinas e elegendo alguns assuntos que poderiam ser trabalhados em conjunto. Em segundo lugar, daria um outro propósito às suas aulas de forma que os alunos experimentassem este procedimento, o que os levaria a requisitar o auxílio das outras matérias segundo seus interesses, desajustando o que é específico em outras áreas.

Sem enveredar ainda mais por este caminho, acredito que já podemos visualizar as mudanças que tudo isto ocasionaria, pois se trata de uma outra disposição para as incumbências que a escola se põe tradicionalmente e a tendência seria reajustar-lhe a estrutura. No entanto, no que diz respeito à filosofia, confesso que não sei se estariam todos, professores e alunos, despertando seu exercício, senão encontrando arrumações mais elaboradas para o fazer científico.

Nota

Pronunciando-se sobre esta questão, a partir do viés epistemológico, podemos encontrar referências importantes no trabalho de Edgar Morin, desde a obra "O paradigma perdido", publicado pela editora kairós na Espanha, Barcelona, em 1974 até "Ciência com consciência" que, na minha opinião, possui um estudo bastante consistente, nesta perspectiva, editado pela Bertrand Russel, revisado e ampliado pelo autor, em 1998. No que diz respeito, especificamente, às contribuições de Edgar Morin, Guy Palmade, autor da obra Interdisciplinarité et ideologies (Paris: Anthropos, 1977), diz que tais trabalhos, que estavam apenas iniciando na época, de alguma maneira, são inspirados na teoria de sistemas, ou seja, "... en contraste con el análisis de sistemas, la teoría de sistemas se presenta como una ciencia de las ciencias, y ha producido con la teoría general de sistemas nociones que son a menudo interpretadas como el núcleo de una ciencia...". A explanação da teoria dos sistemas, e, por conseguinte, os obstáculos, ou dificuldades quanto às iniciativas sobre tal teoria podem ser encontrados no item "Ambiguedades de la teoria de sistemas" no capítulo "interdisciplinariedades e ideologias" e nas referências de página que seu índice temático faz aos verbetes teorias de sistemas p. 12, 18, 34, 52, 120, 131, 179, 206, 208, 209, 210, 212; transdisciplinaridade p. 22, 23, 24, 26, 27, 29, 30, 32, 35, 54, 57, 61, 101, 174, 191, 211; transracionalidade p. 45 - 47, 22, 25, 26, 52, 71, 101, 211. Cf. Guy PALMADE.: Interdisciplinariedad e Ideologías. Barcelona, Narcea, 1979.

 

3. DESCENTRAMENTO NO ENSINO DE FILOSOFIA: ISTO É POSSÍVEL?

Em bate-papos com meus alunos percebo o interesse que lhes subsiste quando se põe a interrogar-se sobre o que é filosofia. A propósito do que até então venho problematizando, o que fica posto, inclusive pela minha pessoa, em muitas ocasiões, ou por aqueles que tiveram alguma instrução neste campo, é que filosofia ensina a pensar, a refletir, a criticar etc. Às vezes estas colocações sofrem alguma variação por conta dos conceitos elaborados pelos próprios filósofos, sem mudar muito o que se conjeturou anteriormente. Tudo isto tem lá suas conveniências, sejam elas a da relação de simbiose que os alunos mantém com o professor e a instituição, ou a observância que pode ser dada às suas reivindicações.

Notemos, no entanto, que todos estes encaminhamentos para a atividade de ensinar filosofia atendem a uma configuração do que já se pensou nos idos da história filosófica e que as pessoas, no nosso caso os alunos e os professores na aula de filosofia, seguem usando sua energia vital para arregimentar invenções de outros problemas que não os seus, sem se darem conta que, fazendo isto, se subtraem de si mesmos, não pensam estas criações conceituais para dar razão para aos seus problemas.

Entrementes, como qualquer outra coisa, as questões são fabricadas. A arte de construir um problema é muito importante, inventa-se um problema, uma posição de problema, antes de se encontrar a solução. Se as questões são colocadas, se não permitem que o indivíduo fabrique suas próprias questões, com elementos vindos de qualquer lugar, de qualquer parte, não tem muito o que dizer (Deleuze, 1998).

Desterritorialização - conceito desenvolvido por Deleuze e Guattari, como sendo um movimento, um impulso do pensamento que desloca a ideia de sua forma usual e lhe dá um outro sentido e um outro uso.

Desterritorializando os ditos de Deleuze (1998), o ensino de filosofia dar-se-ia de uma maneira mais eficiente e eficaz se os alunos construíssem seus próprios problemas e conseguissem uma boa leitura da história da filosofia, tratando-a como se escuta um compact disc, como se recebe uma canção - qualquer tratamento da história da filosofia que reclamasse para ela um respeito especial, uma atenção de outra ordem, vem de outra época e condenaria definitivamente a história.

Estilo - conceito desenvolvido por Deleuze e Guattari, que se refere à condição de criar uma linguagem no interior da própria linguagem.

Ainda nesta linha de pensamento, cabe ressaltar que a história da filosofia para ser bem lida tem que se ter estilo, o que remete a singularidade de cada indivíduo e a intensidade de suas relações, isto é, estar sob a condição de não consistir em interpretações dadas, mas concernir ao uso da história, de multiplicar seu uso, de criar uma língua no interior de sua língua. Como também encontrar ideias e ser filósofo em devir, ou seja, não imitar ou fazer como os filósofos, mas tornar-se todos, para inventar novas armas ou forças - criar, fabricar, inventar conceitos.

Devir - conceito atualizado por Deleuze e Guattari, que se refere a um fenômeno de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos, que são sempre contra a natureza, pois o que cada um se torna não muda menos do que aquele que se torna. Os devires são geografia, são direções, orientações, vetores, entradas e saídas.

De acordo com Deleuze (1998), não há questão alguma de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades que lhes convêm ou não, que passam ou não passam. "Pop-filosofia". Não há nada a compreender ou interpretar.

Todavia, o ensino de filosofia nas escolas parece ter como observância a necessidade de fazer uma leitura interpretativa da história dos vários sistemas filosóficos, a fim de compreender como as diversas épocas contribuíram para a investigação e a resolução dos problemas e, consequentemente, reconhecer o progresso do pensamento humano. Esta concepção evolucionista, teleológica, transmite a ilusão de ser homogênea, resguardando seu poder pela verdade que ora se garante pelo etapismo dos acontecimentos, ora pela intimidação.

Para Deleuze (1998), a história da filosofia sempre foi agente de poder na filosofia, e mesmo no pensamento. Ela desempenhou o papel de repressora - como alguém quer pensar sem ter lido Platão, Kant etc? Uma fantástica escola de ameaça que fabrica especialistas do pensamento, mas que ajusta ainda mais aqueles que ficam fora. Existe uma relação da filosofia com o Estado, em que o pensamento toma de empréstimo sua imagem propriamente filosófica do Estado como bela interioridade subjetiva ou substancial. Ela inventa um Estado propriamente espiritual, como um Estado absoluto, já que funciona efetivamente no espírito. Por isso que as noções de método, de questão-resposta, reflexão, recognição ou reconhecimento, de ideias justas, universalidade são tão importantes.

Neste sentido, apresenta-se uma outra questão - o professor que se estabelece pelo saber filosófico e por este motivo tem o aval de atuar nas salas de aula como o próprio estadista. A relação com o aluno torna-se absolutista, não havendo possibilidades nem de criação, nem de autonomia.

E considerando que a história da filosofia deveria ser entendida como uma aprendizagem indispensável para se examinar os conceitos dos filósofos, identificar para quais problemas estes forneciam respostas, e quais possibilitariam atualizações, o papel do professor e do aluno, então, deveria também ser repensado. É óbvio que para a sistematização do ensino de filosofia o professor necessite, dentre outras coisas, de erudição, e o aluno, por sua vez, deveria realizar seu estudo com gravidade, porém, dois quesitos tornam-se essenciais: a história da filosofia deve ser lida, não de forma seriada, mas por meio de saltos que compreendam a criação de conceitos que forneceram soluções para problemas filosóficos, fabricados pelo próprio filósofo; e o professor, enquanto conhecedor das ideias filosóficas, possa ter a função de mediador do aluno junto ao seu encontro com a filosofia.

Todavia, o professor só seria eficiente nesta função se despojasse do poder potencializando-se e assumindo um papel de investigador junto ao aluno, viabilizando também o seu particular encontro com as ideias filosóficas e criando seus próprios conceitos.

Para tanto, Guattari (1977) oferece a noção de transversalidade, como uma maneira possível de romper com o poder, invertendo-o e a importância instituída nas relações hierárquicas também. A ideia deste autor consiste em substituir a noção de transferência, entendida como a delegação de poder que se daria de uma forma hierárquica, do inferior para o superior - pela noção de transversalidade. A transversalidade estaria em oposição a uma verticalidade e a uma horizontalidade no processo de construção e organização do conhecimento.

Desta maneira, haveria uma reestruturação tanto do papel do professor, quanto do aluno, que estariam despidos das vestes da verticalização e horizontalização, possibilitando encontros, devires e criação de conceitos.

Confirmando esta afirmação, Gallo (2002) observa que o conceito de transversalidade permite uma relação de atravessamento na qual as interações são mútuas e múltiplas, e não há hierarquia.

E conclui que a transversalidade do conhecimento implica em novos espaços de circulação e construção de saberes, exigindo um delineamento de um processo educativo e de uma sociedade em que o controle se exerça de forma mais diluída, uma realidade mais democrática de fato (Gallo, 1997).

Diante do que foi exposto, a questão seria experimentar a pontecialidade dos conceitos quando ligados a situações específicas, que parece atender às exigências de um processo educativo diferente do que até então se pôs, delineando não só uma outra prática pedagógica, mas atualizando a definição de Filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que, por centrar, descentrando, devolve a aqueles envolvidos com a filosofia a arte de criar conceitos.

Retomando um pouco o que expus até então, acredito que muito do que já se desenvolveu nas escolas como tentativa de viabilizar o ensino de filosofia que tem demonstrado que sua preocupação primeira é conduzir o aluno à autonomia do pensar, garantindo a formação de um cidadão crítico e reflexivo. Porém, este enfoque acabou reduzindo o ato de repensar a filosofia aos possíveis conhecimentos que poderiam ser empregados na sociedade capitalista em todos os sentidos.

Este tipo de pedagogia, baseada em conhecimentos, representações ou recognições, não despende a atenção precisa à possibilidade do pensamento constituir-se como próprio da filosofia.

Entretanto, os professores intentam abranger todo o conteúdo da disciplina filosofia optando por uma abordagem temática dos assuntos alimentando reflexões e fazendo referências à história da filosofia, que seria o fio de Ariadne dos temas. Esta organização dos conteúdos oferece um panorama evolutivo, em que subentende uma periodização, reverenciam os filósofos e suas concepções, subtraindo do aluno a autarquia na construção de conceitos necessários para responder aos problemas de sua vida quotidiana.

O conhecimento dado submete o professor a uma posição alienada de transmissor de saberes, garantindo o poder sobre o aluno que se constitui como um ser passivo em relação ao saber transmitido impedindo o exercício da criação de conceitos a partir da proposição de questões singulares próprias da sua vivência.

Tomando a história da filosofia conjuntamente com o que lhe é inerente, não mais como alicerce da reflexão crítica, do fundamento, da visão de conjunto das ciências e sim compreendida como ferramenta para a criação de conceitos, teríamos uma resposta mais interessante para alguns impasses quanto à sistematização de seu ensino, já que não se pode oferecer autonomia do pensar com base em abstrações, generalizações, juízos.

Corroborando com esta proposição, Deleuze e Guattari (1992:13) afirmam que o filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos.

Neste sentido, a reflexão e a comunicação não deixam de ser partes do processo de criar, mas não a própria criação, reservando para a filosofia a exclusividade de criadora de conceitos.

Nota

Devido ao fato da criação consistir num processo abre-se neste interior a possibilidade de se sugerir, na relação professor e aluno, atividades de pensamento com vistas à criação de conceitos, ou mais significativamente possibilitar, entre interessados em filosofia, tempos/espaços, que não se constituam num impedimento para a criação de conceitos.

4. FINALIZANDO...

É sabido que a filosofia se deparou muitas vezes com pretendentes rivais que almejavam substituí-la dos quais já mencionei as ciências, nos seus diferentes enfoques, em razão da filosofia ter desprezado sua vocação de criar conceitos para se refugiar nos universais. Atualmente, o marketing, o design, a informática e todas as disciplinas da comunicação apoderaram-se a sua maneira da própria palavra-conceito, se erigindo como seus verdadeiros donos (Deleuze e Guattari, 1992).

E foi este curvar-se das concepções filosóficas que possibilitou se observar nas escolas o seu ensino amparado em informações prontas e acabadas. Aluno e professor foram como que desempossados da vocação da filosofia, deixaram de participar ativamente do processo da cultura de si, pois perderam de vista a possibilidade de inaugurarem em suas vidas o processo de exercício do pensamento.

No entanto, Deleuze e Guattari (1992) alertam que o conceito não é formado, ele próprio se põe em si mesmo, autoposição; não é criado, está por criar. As duas coisas se implicariam, já que o que é verdadeiramente criado, desfruta por isso mesmo de um caráter autopoético e uma autoposição de si. Quanto mais o conceito é criado, tanto mais ele se põe. O que se põe em si mesmo depende de uma atividade criadora livre, necessariamente e independentemente - o mais subjetivo será o mais objetivo.

Nota-se que esta noção de conceito contrasta com o princípio da representação mental - constituindo-se em um pensamento sem imagem, ou melhor, um pensamento sem imagem universal, ou modelo universal. Neste sentido, o conceito é um pensar sem imagem, porque ele ainda não o é, é um vir-a-ser, está por ser criado, produzido, fabricado, inventado por cada singularidade em particular. Assim, o conceito quando criado torna-se virtualidade para que outro possa atualizar e criar seu próprio conceito.

Por esta razão, a pedagogia do conceito deveria analisar as condições de criação como fatores de momentos que permanecem singulares, pois a "enciclopédia" universal do conceito, em que os pós-kantianos giravam em torno, remete a sua criação a uma pura subjetividade, e a formação profissional comercial reporta para o desastre absoluto do pensamento, quaisquer que sejam, bem entendidos, os benefícios sociais do ponto de vista do capitalismo universal (Deleuze e Guattari, 1992).

Contudo, o ensino de filosofia, por não priorizar as condições de criação, tomam a história da filosofia, como centro ou referencial, intentando levar os alunos a refletirem, buscarem fundamentos, visualizarem em conjunto dos saberes científicos para debaterem a respeito de questões atuais, comuns e emergentes da sociedade capitalista como o principal propósito do pensamento. Penso que estas questões não tratam de uma problemática singular, mas de problemas que seriam de interesse coletivo, que por serem gerais, o propósito não seria respondê-los, e sim sair deles.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BADIOU, Alain. Deleuze - clamor do ser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

DELEUZE, G. e Guattari, F. O que é Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

DELEUZE, G. Uma conversa, o que é, para que serve? (parte I) Em: Deleuze, G. e Parnet, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.

DELEUZE, Gilles e Guattari, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Ed. 34, 1995 - 1997, 5 vols.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

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Publicado em 31 de janeiro de 2006

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