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Hegel Fitness Center

Pablo Capistrano

Ando tramando alguma revolta luciferiana contra os determinismos genéticos, mas até agora não consegui encontrar nada que ao menos se compare ao que o personagem de John Milton fez em "O Paraíso Perdido". Vou explicar. Depois de seis meses de uma rigorosa dieta, quilos perdidos e massa muscular reposta ao devido lugar, não é nada reconfortante saber que suas taxas de triglicérides ainda estão estratosféricas."Você deve ter algum problema no fígado", disse o meu médico. Ótimo.

Comecei a maldizer algum ancestral meu que me passou uma droga de um gene vagabundo que não faz o fígado trabalhar como devia. Espero que ninguém resolva botar a culpa no vinho. Lembrei logo de Nelson Rodrigues que costumava dizer que não acreditava em nenhum homem que se dizia honesto e que não tivesse gastrite. Comecei a pensar que talvez, como consolo, a honestidade nos dias de hoje afetasse o fígado.

Saí do consultório e fui a uma das livrarias da cidade pegar minha esposa e minha filha. Ando com o hábito de olhar a data das edições dos livros nas livrarias. Tiragens nacionais de 3.000 exemplares datadas de 1998, 2000, 2001. Todas encalhadas nas prateleiras. Penso sempre: "que @#%&*#!". Não os livros. Mas o fato de viver num país onde ler um livro é um ato quase subversivo. Também gosto daquelas livrarias que têm uns aparelhinhos eletrônicos, nos quais você pode tocar com a ponta dos dedos e ver o estoque, informação sobre os autores e sobre os livros. Procuro logo o meu. Pequenas Catástrofes (um livro muito bom, diga-se de passagem. Adorei escrevê-lo e mais ainda lê-lo e acho que você, amigo leitor, se ainda não comprou, não sabe o que está perdendo). Depois vou procurar o Hegel. Um possível doutorado me obriga a ler Hegel. Não gosto da Fenomenologia do Espírito. Acho o texto muito circular. Sempre que eu leio a Fenomenologia, fico tonto. Mas as Preleções sobre Estética, redimiu Hegel para mim e me fez colocá-lo no centro do meu cânone particular. Olho o preço da obra - 63 reais. Salgado. Dois volumes. Mas... De repente, vejo uma coisa estranha. A máquina me oferece: 1. Título: Estética; 2. Autor G. W. F. Hegel; Assunto: Fitness; 3. Estante: Saúde, esporte e lazer. Olho outra vez. 3. Assunto: Fitness.

O termo Estética vem do grego aisthesis e tinha a ver com a ideia de "percepção". A Estética nasceu fundamentalmente como uma disciplina filosófica que estuda a percepção e só a partir da obra de A.G. Baumgarten, discípulo de Leibniz, mais ou menos em 1750, passou a ter ligações com o estudo da beleza sensória, que incluía a beleza natural e artística. Nunca havia parado para pensar que a obra de Hegel, suas tão cuidadosas Preleções sobre Estética, também tivessem ligações com a cultura das academias de fisiculturismo e dos corpos sarados. Sei que o renascimento do culto ao corpo na Europa teve início a partir da expedição de Bassai, ainda no século XIX. Época em que os ingleses foram até Atenas e trouxeram vários jarros com desenhos de atletas gregos nus, mostrando os músculos e os pênis minúsculos. Mas imaginar Hegel como alguém que trata do fitness para mim foi uma grande surpresa.

Acho que estou sentindo meu fígado doer. Será que o fígado dói? Ou será que é apenas um sinal para ir embora da livraria? Talvez eu esteja desenvolvendo uma forma hepática do bom e velho sentido de Aranha do Peter Parker. Sempre que o Parker se encontrava numa situação de perigo, o sentido de Aranha o alertava. Mas qual seriam os riscos que eu estaria correndo numa livraria limpa e iluminada? Talvez seja o sinal da avassaladora crise de anorexia que toma conta do mundo. Uma recusa, não em comer, mas em pensar. Não quero ser frankfurtiano. Prefiro sair da livraria, comer uma bela macarronada e depois ir para casa, arquitetar o próximo passo da minha vingança luciferiana contra os determinismos genéticos

www.pablocapistrano.com.br

Pubicado em 30/1/2006

Publicado em 31 de janeiro de 2006

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