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Constituição no varejo

Pablo Capistrano

Ronald Dworkin, analisando o caso Roe versus Wade de 1973, que abriu o precedente a favor do aborto com base na hipótese da viabilidade da vida fetal, aponta para um fato curioso. Quem defende o aborto aposta numa visão específica do que significa uma constituição como a norte-americana. Quem é contra, defende uma visão oposta. Isso indica que, de uma forma ou de outra, a visão que se tem acerca do sentido e significado de uma constituição, varia de acordo com os interesses particulares e as visões políticas acerca de pontos específicos, como, por exemplo, o direito ao aborto.

Essa constatação mostra que uma constituição, na maioria das vezes, se define de baixo para cima. São pressões políticas dos grupos sociais e econômicos que determinam, não apenas o conteúdo jurídico dessa suposta norma fundamental, mas também seu significado. Norte-americanos tem uma relação muito forte com sua constituição. Não é possível pensar nos EUA sem pensar na constituição americana, isso porque, antes da constituição, não existia país. Como uma carta de fundação da nação, é a constituição que sacraliza a criação do país e sua validade é que mantém o país unido. Pensar na possibilidade da constituição americana ser rasgada implica diretamente em pensar que a unidade que liga esses diversos estados independentes se espatifou. Foi assim na guerra da secessão e será assim sempre que os americanos sentirem que a constituição não representa mais o contrato político fundamental que gerou sua nação.

No Brasil a situação é completamente diversa. Pense rápido, amigo leitor, quando o Brasil nasceu? Resposta óbvia: 1500. A data de fundação da nação brasileira, no inconsciente coletivo nacional não é a data da primeira constituição ou da independência. Nossa data é a da primeira missa, da primeira viagem oficial do colonizador português, a data da chegada do deus branco que trouxe a morte, a doença e a escravidão para o povo índio. Nascemos sem constituição e, inconscientemente pensamos que podemos muito bem viver sem uma. Não temos nenhum pudor de cortar, rasgar, borrar e reformar esses supostos princípios gerais derivados de normas eternas e imutáveis da razão universal. Aliás, essa história de razão universal nunca colou por essas praias (Kant que me perdoe o atrevimento). Cada governo tece sua constituição particular adequada às variações de humor dos mercados ou da opinão pública.

Nossa dificuldade em manter uma constituição qualquer não é derivada apenas de um impasse teórico. Não estamos discutindo só o que uma constituição é. Não se trata simplesmente de saber se ela é um conjunto enxuto de poucos princípios gerais, de ordens abstratas que obrigam os governos a respeitarem um conjunto uniforme de direitos fundamentais; ou se é uma constituição de detalhes (como aponta Dworkin). Um documento que exprime normas específicas e concretas que espelham interesses particulares dos legisladores da hora.

Nossa dificuldade em manter uma constituição mais ou menos inteira por uma década, reflete o estado de um povo que se acostumou a viver à margem de qualquer tipo de ordem jurídica formal. Um povo mestiço que sempre enxergou no Estado nacional e no direito dos funcionários desse Estado, um simples instrumento de opressão e espoliação. No varejo constitucional dos últimos dois séculos, o brasileiro sempre foi um cliente pouco opinativo. Um freguês que é obrigado a levar para casa um produto que nem sempre quis comprar. No fim das contas, saber se vamos ou não vamos ter uma nova assembleia nacional constituinte para fazer a reforma política da estação, vai continuar a ser um assunto para os sábios, doutos e poderosos. E o tédio continua. Eleição após eleição, o povo, esse detalhe incômodo da política brasileira, vai continuar assistindo ao drama constitucional do Brasil, esperando o próximo capítulo da novela, para ver se no fim o mocinho casa com a mocinha e o vilão termina morto ou no manicômio.

Publicado em 22 de agosto de 2006

Publicado em 22 de agosto de 2006

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