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O lugar dos estudos literários

Cláudia Dias Sampaio

Especial: X Congresso Internacional ABRALIC

Literatura contemporânea: interdisciplinaridade e experiência estética

A divergência de opiniões nem sempre aponta para caminhos antagônicos, como pode parecer em um primeiro momento. Foi o que percebemos após a apresentação dos professores Eduardo Portella e Hans Ulrich Gumbrecht na mesa plenária de abertura do Congresso Internacional de Literatura Comparada, da Abralic - Associação Brasileira de Literatura Comparada -, que aconteceu este mês na Uerj, e revelou o quanto pode ser polêmica a reflexão sobre o papel dos estudos literários em nossa sociedade.

Durante a apresentação inicial, o professor João César de Castro Rocha, que estava mediando a mesa, falou sobre a trajetória intelectual de Portella e Gumbrecht, tentando criar uma aproximação entre os convidados. Citou o diálogo que ambos mantém com a esfera pública, através da intensa publicação de textos nos suplementos literários dos jornais.

A atuação dos dois professores no mercado profissional foi outro ponto em comum destacado por João César: Eduardo Portella já foi Ministro da Educação e Presidente da Biblioteca Nacional e Gumbrecht coordenou o primeiro Programa de doutorado para estudos teóricos na Alemanha, quando, então, destacou-se como organizador dos importantes colóquios de Dubrovnik, na Iugoslávia.

E, numa última tentativa de criar amenidades, João César, lembrou que Portella foi um dos primeiros no Brasil a desenvolver os estudos literários a partir de uma perspectiva heideggeriana. Em seguida, associou o paradigma da produção de presença, desenvolvido pelo professor Gumbrecht, também, a um diálogo com o pensamento do filósofo Martin Heidegger.

O clima conciliatório permaneceu até o momento da exposição do alemão Gumbrecht. Após ouvir a fala de Eduardo Portella, o professor alemão confessou que estava pensando em como iria introduzir sua reflexão já que esta era, segundo ele, completamente oposta ao que havia sido colocado até então.

Eduardo Portella colocara a questão da interdisciplinaridade como fundamental para o progresso dos estudos literários. Ele alega que este é o caminho necessário para se dar conta da complexidade progressiva do conhecimento nas últimas décadas. O conselho de Portella é não nos fecharmos dentro de uma disciplina, no que ele chama de gueto disciplinar. Ele lembra que ainda é recente o postulado de uma visão especializada do conhecimento, mas que a mudança ocorreu na medida em que as coisas, a história, o homem, o real e a razão foram ficando cada vez mais complexos. A consequência é que fomos percebendo a dificuldade de se pensar, no interior de uma disciplina, a própria disciplina e começamos a investir nas fronteiras da disciplina.

Na literatura, essa perspectiva da interdisciplinaridade nos leva ao Romantismo alemão, quando homens como Schlegel, Novalis, Tieck, Schelling e Höelderling imprimiram contundência às suas obras com a rentabilidade extraída do diálogo entre literatura e filosofia.

Apesar de recorrer, por exemplo, a filosofia, para fundamentar suas ideias, Gumbrecht discorda da defesa de Portella por um pensamento interdisciplinar. Para ele, a tendência de uma ideologia de interdisciplinaridade está produzindo um desvio que ameaça a sobrevivência das próprias disciplinas. No entanto, ele admite que as próprias disciplinas não possuem um valor absoluto e, certamente, terão um fim.

Entre contradições, e preferindo respostas às perguntas, o que o professor parece perseguir é uma especificidade do lugar da literatura. Ele insiste na diferença entre os saberes e não concorda com interpretações que buscam a superioridade de um determinado discurso sobre o outro. Ele cita como exemplo, o absurdo de se fazer uma leitura da literatura da obra de Samuel Beckett como uma ilustração da filosofia de Adorno e completa que, infelizmente, isto é muito frequente. Gumbrecht também se opõe a uma definição da literatura por via histórica ou cultural.

Para Gumbrecht, tanto o conceito, quanto a função da literatura hoje, se aproximam da definição de uma modalidade da experiência estética específica do nosso momento. São várias as definições de experiência estética, o professor se vale do pensamento de Niklas Luhmann ao chamar a atenção para a peculiaridade que constitui a experiência estética: onde a percepção e o contato com o mundo tangível das coisas fazem parte do conteúdo da comunicação.

A proposta de Gumbrecht é semelhante, ele fala de experiência estética na modernidade como oscilação entre efeito e sentido. Nesse momento começa a exposição das ideias sobre materialidade da comunicação e os efeitos de presença concebidas pelo professor alemão e bastante difundidos nos departamentos de Comunicação e Letras de nossas universidades.

Ao falar sobre efeitos de presença, Gumbrecht se refere ao contato sensual, tangível, espacial e até corporal com o mundo, seria como se sentir em casa no mundo das coisas. Nesse sentido, a experiência estética enfatizaria, transportaria o sentido, a semântica e também essa sensação de se sentir integrado ao mundo das coisas.

O que Gumbrecht julga decisivo em nosso momento histórico que, segundo ele, teve início no primeiro Renascimento, é a tendência central de desenfatizar, de pôr entre parênteses esses efeitos de presença. Segundo ele, a nossa existência cotidiana é cada vez mais uma existência sistemática. Portanto, nesse contexto, a experiência estética, no caso a literatura, passa a ser, na modernidade, o único espaço institucional onde ainda nos resta a esperança de desfrutarmos da experiência dos efeitos de presença, da inscrição palpável de uma presença no mundo.

A possibilidade de concretude da literatura hoje seria possível, segundo Gumbrecht, a partir da interessante noção de stimmung. Gumbrecht sugere um neologismo, voicidade, como tradução para a palavra que é de origem alemã, mas, na verdade não possui um correspondente em nossa língua.

Ele explica que a stimmung não é um conceito. Freud, por exemplo, a relacionava com algum tipo de esperança. Podemos pensá-la como o otimismo e o pessimismo presentes, por exemplo, na bolsa dos valores. Mas a dificuldade é que ela não possui um objeto intencional, o céu, a temperatura, uma música, podem produzir stimmung.

Gumbrecht afirma que a stimmung não é somente uma temporalidade, como a descreve Heidegger, ao classificá-la como uma modalidade específica do passado individual com o futuro individual. Para Gumbrecht, ela depende da impressão, da segurança de estarmos integrados ao mundo em que vivemos. Gumbrecht propõe a dimensão da stimmung como papel central na literatura hoje. Segundo ele, temos que abandonar a ideia da literatura contemporânea como papel consolador para nossos anseios políticos. E acrescenta que devemos aceitar a literatura como compensação a nível individual, que não dá conta de uma solução do problema político social.

Se partirmos do princípio que a stimmung é uma dimensão importante na literatura, a literatura passaria a ser encarada como uma consolação intelectual. Isso obrigaria que nosso conceito contemporâneo de literatura se tornasse mais existencialista e menos político. Para Gumbrecht, o sujeito da recepção literária, hoje, é muito mais existencialista do que o era há 15, ou 20 anos. E conclui a exposição com a ideia de que a literatura pode ser pensada, portanto, como uma possibilidade de reinscrição no mundo das coisas.

Publicado em 22/08/2006

Publicado em 22 de agosto de 2006

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