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A Teoria da literatura entre nós
Luiz Costa Lima
Especial: X Congresso Internacional ABRALIC
(...) Saber as grafias
cambiáveis, para uma paisagem
de dissoluções (...) (Claudio Daniel)
O prof. Walnir Chagas, relator do parecer nº 283, aprovado em 19.10.1962, propunha um currículo mínimo para o curso de Letras, composto de "uma parte comum e outra diversificada", incluindo-se a teoria da literatura na segunda; o relator justificava que a teoria não deveria integrar a parte comum, isto é, básica e obrigatória, porque fazê-lo "implicaria admitir improvisações que da autenticidade levariam fatalmente ao descrédito" (Chagas, W.: 1962, 227).
Com efeito, embora Roberto Acízelo mostre que a matéria já havia sido ensinada em diversas ocasiões e universidades - na extinta Universidade do Distrito Federal, de 1935 a 1937, por Cecília Meireles, e, em 1938, por Prudente de Morais Neto; por Afrânio Coutinho, a partir de 1950, na antecessora da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro; por Augusto Meyer, a partir de 1953, na antecessora da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro; por Antonio Candido, no início dos anos 60, na Universidade de São Paulo; por Hélcio Martins, na mesma época, na Universidade de Brasília (cf. Acízelo, R.: inédito, nota 24) -, a descontinuidade das experiências e a falta de publicações que houvessem derivado dessas experiências mostram a extrema sensatez do parecer citado.
No entanto, apesar de sua advertência, o ensino da teoria se propagou a tal ponto que desconheço algum curso de letras que não o tenha introduzido. Passou-se a viver uma situação curiosa: conquanto o curso de teoria da literatura não fosse obrigatório, esteve sempre presente. Se o seu objeto principal teria a ver com a matéria ficcional, antes mesmo de saber-se o que nele se diria, era ele cercado por um clima de como se: a teoria não era (e continua a não ser) obrigatória, mas é sempre oferecida. A ficcionalidade se impunha a propósito mesmo da matéria que deveria dela tratar.
A situação, burocraticamente intrigante, estimula a pergunta: que entendemos por ensino da teoria da literatura? Em vez de uma discussão abstrata, será mais eficaz começar por dois pequenos relatos. No fim da década de 1970, o jornal Opinião publicou um artigo meu, "Quem tem medo de teoria?", que seria republicado em livro (cf. Costa Lima, L.: 1981, 193-8). Lamento não haver guardado as respostas. No mínimo, eram elas bastante indignadas. Relacionava-se a introdução do estudo da teoria ao baixo nível dos estudantes de letras, como se o tempo gasto com a teoria impedisse os alunos de ler mais literatura, e chegava-se a insinuar que a escolha da matéria houvesse sido uma manobra da ditadura (cf. Moriconi, I.: 1996, espec. 55-73). A criação do mito era curiosa: porque a ditadura temia os efeitos da literatura contra ela estimulava a sua teorização!
A segunda história é bem recente. Há poucos meses, no intervalo de uma das sessões de seminário que se realizava na Fundação Casa de Rui Barbosa, aproximou-se de mim uma senhora, que se dizia professora aposentada de língua portuguesa; queria saber se eu continuava a ensinar e que linha teórica seguia. Como eu me mostrasse embaraçado em responder sua segunda questão, prestimosa, ela acrescentou: Ô, me desculpe, como você poderia aplicar alguma teoria ante a confusão de hoje em dia? Como se fosse um etnógrafo que acabasse de acolher uma informação preciosa, disse para mim mesmo: para essa dona, teoria é alguma coisa feita para se aplicar.
Mais de quarenta anos são passados depois do parecer de Walnir Chagas, quase o mesmo tempo em que me tenho dedicado a escrever e a ensinar teoria, e o que se estabeleceu, entre nós, como teoria, é ridiculamente isso: algo que se faz para ser aplicado. Não se diria melhor de um manual de instrução de como montar uma mesa ou uma bicicleta que se compre desarmada.
Os dois relatos serão índice de alguma coisa ou estarei eu imitando algum cronista de jornal que procura ser divertido? Na dúvida, recorro a outro argumento. Quando este texto me foi pedido, solicitei a vários alunos e ex-alunos de letras que me enviassem por escrito como haviam sido seus cursos em teoria. Sem que tivessem sido muitas as respostas, elas não só reiteravam o princípio da aplicação como insistiam em duas outras constantes: (a) a falta de organicidade dos cursos. Segundo os informes recebidos, costuma-se analisar dois ou três teóricos, sobretudo contemporâneos e (quase sempre) já traduzidos e, em caso algum, se refere algo como e porquê da disciplina; (b) a absoluta falta de sua contextualização, das metas que a teoria se proponha e de suas interrelações.
Enquanto lia esses informes, me perguntava: como o aluno poderia saber que a própria expressão só fora usada, e esporadicamente, em 1804, que, ao longo do século XIX, nenhuma universidade pensou em acolhê-la, que sua difusão só começara, nos Estados Unidos, durante a Segunda Grande Guerra? Muito menos, sequer de passagem, era assinalada a integração forte que tinha com a filosofia e, nos países eslavos, com o desenvolvimento da linguística. Em poucas palavras, em nenhum caso se prestava atenção à sua diferença ou mesmo seu questionamento dos estudos - legitimados desde o começo do século XIX - de história literária; isso para não falar em seu caráter radicalmente reflexivo.
Cabe então indagar por que, entre nós, se estabeleceu tamanho divórcio da teoria com sua raiz primeira, isto é, seu caráter de indagação reflexiva? A resposta é tão simples como frustrante: porque não temos, nem nunca tivemos tradição reflexiva. Na verdade, para que a teoria da literatura se firmasse entre nós teria ela de contrariar hábitos que vêm desde o início das considerações sobre a literatura nacional, ou seja, desde Gonçalves de Magalhães. Em seu "Discurso sobre a história da literatura no Brasil" (1836), a literatura era apresentada como a quintessência do que haveria de melhor e mais autêntico em um povo. E, como o país se tornara independente sem um prévio sentimento de nacionalidade que integrasse as regiões, o serviço que ela, de imediato, haveria de prestar seria de incentivá-lo. Teria, portanto, de conter uma palavra empolgada, entusiasta e logo sentimental, que entrasse mais pelos ouvidos do que exigisse inteligência. Dentro deste circuito curto, o interesse se dirigia à formação de um Estado e quase nada concernia à própria literatura.
Para infelicidade nossa, essa conjectura se cumpria em um século fundamentalmente voltado para o desenvolvimento tecnológico e que procurava, no campo do que vinha a se chamar de ciências humanas, explicações deterministas, que parecessem prolongar as causalidades comprovadas no campo das ciências da natureza. Daí a importância que assumiria um Sílvio Romero e a timidez com que seu adversário, José Veríssimo, intentava uma aproximação razoavelmente próxima do que fosse a constituição do texto. Em suma, nacionalidade, explicação histórico-determinista e manutenção de uma linguagem de fácil acesso eram traços que mantinham o fazer literário fora de um circuito bem distante do reflexivo.
A genialidade machadiana teria sofrido o mesmo ostracismo que enterrou um Joaquim de Sousândrade se o romancista não tivesse aprendido a usar a tática de capoeira nas relações sociais. Primeiro sinal de sua esperteza: não insistir no exercício da crítica. Se houvesse perseverado em artigos como seu "Instinto de nacionalidade" (1873), provavelmente teria multiplicado inimigos ferozes. Em troca, a criação da Academia Brasileira de Letras lhe punha em relações cordiais com os letrados e com os compadres dos "donos do poder". Sua salvação intelectual, no entanto, foi paga pela estabilização das linhas fixadas desde a independência.
Deste modo não medrou, entre nós, nem o veio especulativo que tornou a Alemanha um centro de referência, mesmo quando, no século XVIII, era politicamente um zero à esquerda, nem a linha ético-pragmática que distinguiria a Inglaterra. Em vez de uma ou de outra, mantivemos, como toda a América Hispânica, a tradição da palavra retórica - e isso sem sequer nos darmos ao cuidado de estudar os tratados de retórica -, abrandada pela formulação de textos de fácil acesso. O léxico podia ser complicado, extremamente complicado, como n'Os Sertões ou ainda em Augusto dos Anjos, desde que tudo aquilo não passasse de uma névoa, com aparência de erudita, que ocultasse formulações fáceis, aceitas pelos gramáticos e pela ciência da época - exemplo trágico é a aceitação por Euclides da diferença de potencial das raças.
Essa marca da literatura brasileira vigorou mesmo durante os anos áureos da reflexão teórica internacional - as décadas entre 1960 e 1980; ela aqui permaneceu, atravessou-as incólume e chegou até hoje. Ao passo que naquelas décadas a teoria da literatura fez sentir sua presença mesmo em áreas vizinhas - a reflexão sobre a escrita da história e o reexame da prática antropológica - em nossos dias, diz a frase de abertura de um livro recente sobre teoria da lírica: "A teoria da literatura (Literaturwissenschaft) cada vez menos participa dos processos de autocompreensão da sociedade moderna" (Homann, R.: 1999, 7). O fato de que a autora não se refira a algum país em particular mostra que o desprestígio da teoria é generalizado. Mas isso não torna nosso caso menos grave ou dotado de características menos particularizadas. Embora a reflexão teórica e a própria obra literária já não tenham o prestígio que a primeira conquistara por algum tempo e a segunda mantivera desde o final do século XVIII, isso não impede que, no chamado Primeiro mundo, continuem a aparecer obras teóricas, analíticas e livros importantes de literatura, enquanto, entre nós, tanto a obra poética como a teórica correm o risco de os seus títulos sequer chegar ao conhecimento dos leitores; e, como não circulam, progressivamente escasseia a possibilidade de encontrarem editores. Pois à globalização tem correspondido a constituição de um abismo maior a separar o mundo desenvolvido e o resto.
Tal indicador parece acentuar que o próprio estudo da literatura necessita ser reformulado; que a sua drástica separação de áreas vizinhas, sobretudo a filosofia e a antropologia, lhe é catastrófica. E isso por duas diferentes razões: por um lado, porque a literatura não tem condições de se autoconhecer - pois a sua região passível de ser conceituada, tanto em prosa como em poesia, é a da ficção, isto é, aquela que se define como o que é o que não é - e, por outro, é incapaz de competir com os produtos dos meios diretamente industriais ou eletrônicos. Mas essa é uma questão que exigiria tratamento particularizado. Na impossibilidade de fazê-lo, apenas se acrescentem duas consequências imediatas: (a) a escassez da reflexão teórica ajuda a que se perpetuem os juízos críticos tradicionais. O cânone literário nosso se mantém menos por motivos ideológicos do que por ausência de alternativa; (b) com isso aumenta a impossibilidade de uma comparação efetiva com obras de outras literaturas, que, por um lado, se mantêm desconhecidas e, por outro, porque desconhecidas, aumentam o abismo entre a nossa e as outras literaturas.
Essas considerações, que talvez não sejam novas para nenhum dos ouvintes, só têm uma razão de ser: como se dirigem aos membros de uma associação de literatura comparada, espera-se que eles percebam que estamos diante de uma alternativa drástica: ou tomamos consciência do que se exige de nós e assumimos uma atitude ativa, diria mesmo agressiva, ou aceitamos a esterilização lenta, mas gradual de nossas profissões. Pois já não se trata de, simplesmente, acentuar o estigma de uma tradição antirreflexiva, historicizante, classificatória e normativa. Estamos obrigados a combater, e isso a partir de dentro mesmo da ABRALIC, em favor da política cultural eficiente que sempre nos faltou. Como não podemos esperar que ela venha da iniciativa privada, pois as nossas grandes empresas nunca se interessaram senão pela divulgação fácil de suas mercadorias, essa política cultural só poderá vir do governo. A nós, que somos eleitores de nossos governantes, nos cabe assumir o ponto de partida. Do contrário, deveremos nos contentar com os noticiários sobre o superávit primário que se haja alcançado, sobre o aumento ou a diminuição da taxa de risco para investimentos no país, sobre as oscilações do preço do petróleo, do euro e do dólar.
Um ponto de partida cabível seria o reexame da questão da literatura nacional. Afinal, quando nos dedicamos à literatura, nosso foco principal é a literatura ou seu qualificativo, ser ela desta ou daquela nacionalidade? Trata-se pois de verificar os próprios limites do conceito de nacional. Não se discute sua importância do ponto de vista sóciopolítico, mas sim sua validade na área da cultura. Ninguém cogita da nacionalidade do saber científico - se tal teoria química, física ou biológica é alemã, francesa ou norte-americana. A extensão do conceito de nacionalidade à literatura, e à cultura em geral, era explicável no contexto do século XIX e, para os países recém-independentes, no tempo em que ainda lutavam por consolidar sua autonomia política. Mantê-la, nos dias que correm, significa reduzir a literatura, no melhor dos casos, a documento do cotidiano. Pôr em questão os limites do conceito de nacionalidade quanto à literatura, implica automaticamente questionar o que entendemos por literatura comparada. A atitude agressiva de que há pouco falava tem como meta imediata perguntar-se como se pode pensar o comparatismo sem mais nos concentrarmos no Estado-nação. Na impossibilidade de desenvolvê-lo, apenas acrescentemos: essa agressividade exigirá de nós já não simplesmente ressaltar o lugar de onde se produz a obra ficcional, mas sim perguntar-se o que é a ficção literária.
Referências bibliográficas
Acízelo, R.: "Teoria da literatura", publicado anteriormente in Jobim, J. L. (ed.): Palavras da crítica; tendências e conceitos no estudo da literatura, Imago, Rio de Janeiro, 1992, pp 367-389. (Publicação autônoma no prelo)
Chagas, W. (relator): "Parecer nº 283/62 sobre o Curso de Letras, in Documenta, Ministério da Educação e Cultura/Conselho Federal de Educação, 10: 80-84, dez. 1962
Costa Lima, L.: "Quem tem medo de teoria?", republ. em Dispersa demanda. Ensaios sobre literatura e teoria, Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 1981
Homann, R.: Theorie der Lyrik. Heautonome Autopoieisis als Paradigma der Moderne, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1999
Moriconi, I.: Ana Cristina César. O sangue de uma poeta, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1996
Publicado em 29/08/2006
Publicado em 29 de agosto de 2006
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