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Professor João Alfredo Medeiros

Karla Hansen

Um combatente imprescindível

Professor João Alfredo
Professor João Alfredo

"Alguma coisa só é lixo ou rejeito se você não souber o que fazer com ela". Essa é a receita que o professor João Alfredo Medeiros, do Departamento de Química Analítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dirige aos professores de crianças e jovens. "Os professores têm que transmitir essa ideia. Eles exercem um papel fundamental no combate ao terrível desconhecimento que há em ciência básica, física e química". Desconhecimento esse que tem, a seu ver, uma relação direta com os principais inimigos do meio ambiente: a poluição e o desperdício.

Mais que uma receita, essa é a filosofia de vida seguida pelo mestre. O entusiasmo e a paixão do professor por seu trabalho são contagiantes. João Alfredo é um dos mais respeitados e requisitados especialistas do país quando o assunto é poluição em áreas contaminadas por produtos químicos tóxicos, como, por exemplo, o acidente radioativo de 1987, em Goiânia, com o Césio 137. Atualmente, o professor está à frente do Projeto Emergencial Ingá, criado em 2003, em Itaguaí, para recuperação do meio ambiente devastado por metais pesados, à beira da Baía de Sepetiba, em consequência das atividades da indústria de zinco metálico Ingá Mercantil, falida em 1998.

Há duas semanas, ele nos recebeu, generosamente, em seu laboratório, no Instituto de Química da UFRJ, onde nos apresentou a maquete que representa cerca de um milhão de m² da área ocupada pela Ingá, em que se destacam uma lagoa de 250 milhões de litros de água contaminada e um morro com três milhões de toneladas de rejeitos químicos tóxicos, primordialmente a base de Zinco, Chumbo, Arsênio e Cádmio, em concentrações altamente nocivas à natureza e à saúde humana. O professor nos contou sobre seu trabalho no projeto de descontaminação da área e sobre sua dedicação à defesa da causa ambiental, a começar por sua história pessoal.

Lição de Casa

Depois de se formar pela antiga Universidade do Estado da Guanabara (UEG), hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), João Alfredo voltou para sua terra natal, Blumenau (SC), onde lecionou, por cinco anos, ciências e química para o Ensino Médio e montou o primeiro curso de graduação em química do Estado de Santa Catarina. Desde então, ele trabalha com reciclagem química de materiais. Aliás, foi graças a esse trabalho, que tem sido uma constante em sua carreira, que ele revela ter conseguido se manter no Rio de Janeiro, quando decidiu retornar para fazer o Mestrado:

- Eu recuperei prata de fixador de fotografia, porque o que eu ganhava da bolsa - tinha o aluguel e dois filhos pequenos -, não dava para eu viver no Rio. Vim com um estoque de prata que me permitiu viver dois anos aqui.

Em Goiânia, preocupação com a saúde dos operários

Em 1987, o professor coordenou a equipe de descontaminação química, em Goiânia, no maior desastre radioativo já visto no Brasil, também considerado o maior do mundo com este metal. Seu foco principal era descontaminar casas e locais contaminados pelo Césio 137, além de urina e fezes. Nesse trabalho, também teve de descontaminar fossas de esgosto de um hospital e do Estádio Olímpico da cidade. Para isso, ele contou que precisava de uma grande quantidade de ácido fluorídrico, um produto químico bastante perigoso.

- Para eu conseguir o ácido fluorídrico levaram-me a uma fábrica que o utilizava como uma das substâncias para limpar carburador de automóvel, era um produto espetacular! Cheguei lá, e havia um vapor terrível no ambiente. Como é que o pessoal trabalhava? Sem proteção alguma! Todos os operários, ou não tinham mais unha, ou elas estavam marrom, eu ficava imaginando o pulmão deles! Mais tarde, voltei lá, levando caixas e mais caixas de luvas, máscaras e botas e expliquei que eles tinham que usar aquilo.

O lema é aproveitar tudo

Criado em 2003, a pedido da Justiça Federal, o Projeto Emergencial Ingá, coordenado pelo professor, tem como objetivo tratar, prioritariamente, a água contaminada da lagoa, mas a poluição está por toda parte naquela região de mangue e já chegou a, aproximadamente, 26 metros do subsolo. Mas, devido à falta de recursos - a verba pública de 2,5 milhões do fundo ambiental destinado ao projeto acabou em julho de 2005 -, o trabalho teve que ser interrompido em dezembro do ano passado.

Também neste projeto, ele aplica seu princípio básico. Mesmo em se tratando de substâncias altamente tóxicas, o lema é aproveitar tudo:

- Lá, na Ingá, a filosofia é a mesma. É ver o que tem de útil, principalmente o Zinco, e, agora, estamos vendo que, também, podemos aproveitar o Manganês e o Cádmio. Todos os metais pesados e outros elementos tóxicos que contaminam a área podem ser removidos e processados quimicamente para aproveitamento.

Durante os dois anos em que esteve à frente do projeto Ingá, o professor coordenou uma equipe que trabalhava 24 horas por dia - todos os dias da semana, incluindo sábado, domingo e feriados. As instalações da fábrica, que estavam sucateadas, foram parcialmente recuperadas, para dar abrigo a uma estação de tratamento, onde trabalhavam os profissionais. A pleno vapor, a equipe era formada por cerca de 40 pessoas - hoje, por falta de verba, são apenas oito pessoas, quatro seguranças, um gerente, dois técnicos em química e um engenheiro.

Por isso, João Alfredo conta, com entusiasmo, o que "sem dinheiro nenhum e economizando ao máximo", ele e sua reduzida equipe têm feito. De dentro de um pequeno armário, ele traz vários potes e nos explica o que é cada um deles e para que servem. São metais e compostos químicos que foram extraídos dos rejeitos industriais da Ingá.

O primeiro pote que ele nos apresenta contém Cádmio sólido.

- Como o Cádmio, é altamente tóxico. Se comer, dizem que a primeira coisa que causa é infarto. Ele vai para o sangue e faz a mesma coisa que o Chumbo ou Mercúrio, só que esse vai parar no fígado. Do jeito que está é perigoso, mas se processar tem valor. Essas pilhas recarregáveis todas tem Cádmio. A Ingá exportava bastões de Cádmio para o Japão. Era uma indústria química bem sofisticada.

No segundo pote está acondicionado um outro inerte, um composto da mesma cor do morro - um tom avermelhado - que, se descontaminado, é um material excelente para fazer cerâmica. O professor lembra que, em 1997/1998, chegou a produzir 50 toneladas de tijolos e telhas desse material, numa unidade piloto, na fábrica.

- Fizemos isso até sem tirar o Zinco, só inertizando na cerâmica. Hoje, nós evoluímos. Já é possível, por nosso processo, extrair: um resíduo contendo Ferro, dióxido de Manganês, que tem demanda para a indústria de pilha, um concentrado de Cádmio e Chumbo, um concentrado para reciclar e produzir dióxido de Chumbo para bateria de automóvel e Cádmio eletrolítico para negociar, para não contaminar mais o ambiente.

Em seguida, ele mostra outro pote, contendo uma mistura rica em Zinco:

- Essa mistura tem valor. Com ela alguém pode produzir óxido de Zinco, sulfato de Zinco ou cloreto de Zinco.

E, por último, um concentrado de hidróxido de Magnésio:

- Praticamente todo o hidróxido de Magnésio que a gente usa vem das salinas, da água do mar. Ao invés de jogar água descontaminada de volta no ambiente, como nós fizemos, esta água vai ser reutilizada, para não gastar água. E, para isso, tenho que tirar o Magnésio, senão ele vai concentrando, aí, começa a atrapalhar. Por outro lado, temos uma fonte de Magnésio, também.

Para concluir, o professor sentencia:

- Ou seja, de todos aqueles contaminantes, a gente faz uma série de produtos que podem gerar receita e lucro para alguma empresa que queira investir.

Na Ingá, há um trabalho gigante, ainda por fazer. Tanto o terreno, quanto a água estão altamente comprometidos. E como se trata de uma região de mangue, a contaminação já está a 26 metros de profundidade do solo, chegando à rocha. Na lagoa, não existe nenhum sinal de vida. Além disso, há sempre o risco iminente de haver vazamentos, pelo rompimento da barragem de contenção, para a Baía de Sepetiba, principalmente, quando chove forte. Mas o professor não perde a motivação e já está com tudo preparado para retomar, em setembro, em uma nova fase do projeto que prevê a descontaminação da área por meio de um processo químico que poderá extinguir a bacia de rejeitos em três anos.

Ao falar de seus planos para essa nova etapa, o professor tira da gaveta de sua mesa de trabalho um outro pote contendo um grão dourado e nos explica, com os olhos brilhando:

- Isso aqui é uma resina trocadora de íons. Não é mais fabricada no Brasil. Só que aqui, na UFRJ, nós temos uma grande quantidade dessa resina. Eu fui guardando, já visando à Ingá. Desde o final de 1997, que estou guardando, é uma doação de Furnas para a UFRJ. Isso é usado para tratamento de água, por vezes precisa-se deionizar água. Essa aqui usaremos para tirar o Zinco, o Cálcio, o Ferro, o Manganês e o Cádmio, da lagoa.

Como um professor que tem prazer em dividir o seu conhecimento, João Alfredo costuma receber professores e alunos no projeto Ingá.

- Eu tenho levado, de vez em quando, professores e alunos lá. A juíza, uma época, tinha proibido visitas. Começou a aparecer muito político, muita gente para bisbilhotar. Por isso, ela decidiu permitir as visitas só aos domingos. Eu disse: "olha, eu tenho professores da Federal, da CEFET de Nilópolis, da Fluminense (UFF), alunos daqui..." E ela respondeu: "Tudo bem! Para professor e aluno está liberado!".

Além disso, João Alfredo defende uma abordagem multidisciplinar do problema ambiental, ainda mais num caso de proporções como o desse projeto. Ele conta, por exemplo, que uma bióloga esteve lá e chamou sua atenção para uma alteração nas árvores do mangue.

- Ela me mostrou que as árvores menores estavam todas verdes e as maiores continuavam pretas, morrendo. Isso é sinal que as raízes mais profundas contém mais contaminantes. Quando levo uma pessoa de outra formação, ela vê coisas que a gente não vê. Por isso, eu sugeri uma equipe multidisciplinar.

Animado, ele lembra que a própria natureza está se defendendo da poluição pesada e, aos poucos, se regenerando.

- O subsolo do mangue está reagindo, é interessante! As bactérias, sulfobactérias, solubilizando o Zinco, o Cádmio, o Chumbo... tirando o oxigênio do sulfato, ou seja, as bactérias que respiram o oxigênio do sulfato estão lá! Com isso, a solubilidade dos compostos (de Zinco, Cádmio e Chumbo) cai milhões de vezes, eliminando a toxidade e gerando uma jazida de sulfeto de zinco...

Atualmente, o trabalho continua na Ingá, mas só com as operações de tratamento emergencial, a céu aberto, para minimizar o problema. Além disso, João Alfredo e sua equipe continuam trabalhando em laboratório, buscando alternativas para minimizar os custos da nova etapa do projeto de descontaminação, o que pode ser resolvido em poucas semanas, acredita o professor.

Se não fosse a fita do gravador acabar, teríamos ficado conversando com o professor até o final da tarde. A impressão mais forte que fica é a de se tratar de um homem como aquele que o dramaturgo alemão Bertold Brecht imortalizou no verso: "Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons, mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis".

29/8/2006

Publicado em 29 de agosto de 2006

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