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Quando entrar Setembro
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia
O Sacrifício de Isaac, Caravaggio
Na manhã do dia 11 de setembro de 2001 eu estava em sala de aula, com uma turma de ensino médio numa escola privada em Natal. Não tenho ideia do motivo, mas a aula acabou descambando para uma discussão sobre terrorismo. Quando saí da escola peguei um ônibus e antes de chegar em casa topei com uma colega de faculdade que me disse: "Teve um acidente em Nova York. Dois aviões bateram nas torres do World Trade Center". Quando entrei no meu apartamento fui logo ligando a TV e assistindo ao plantão da Globo News pôr no ar a reprise da queda das torres. 11 de Setembro é assim, uma data coletiva. Todo mundo que tinha a idade certa naquela época vai lembrar do que estava fazendo quando as torres caíram ou de como soube do acontecido. Estranhamente, sempre que eu lembro desse dia penso em Caravaggio e em Kierkegaard.
Há um quadro de Caravaggio que me espanta há muito tempo. Chama-se O Sacrifício de Isaac e é, provavelmente de 1605. Ele parece ser uma versão mais elaborada de um outro quadro homônimo de 1600 e mostra Abraão no momento em que vai executar o sacrificio de seu filho, sendo interrompido por um anjo que lhe mostra uma ovelha. Essa história sempre foi uma das minhas preferidas. Não só pelo ciúme e pela insegurança doentia de Yaweh que procura sempre testar a fidelidade do seu povo, mas também pelo modo como Abraão aceita o absurdo. Kierkegaard fala dessa história num texto chamado "Temor e tremor". Para o filósofo dinamarquês a história de Abraão e de seu filho representaria o estado psicológico do homem de fé, que aceita o mergulho no abismo. Mergulhar nesse abismo é abrir as portas para o vazio de significado que parece se ocultar por trás de alguns dos supostos "desígnios de Deus". A aceitação do absurdo e a confiança em Deus levariam Abraão a cometer um dos mais hediondos crimes. Mas, para Kierkegaard ele estaria imune ao julgamento ético de seu ato, porque a fé poderia, de uma forma ou de outra, suspender teologicamente a moral.
Não há como ler esse texto do mesmo modo depois de 11 de Setembro de 2001. A ideia de uma suspensão teológica da moralidade tomou conotações sinistras depois dos atentados que derrubaram as torres gêmeas. O som da voz de um dos terroristas pilotando um dos aviões que se chocou contra as torres anunciando: "Deus é grande!" impediu-me definitivamente de ver o quadro de Caravaggio e ler a justificativa de Kierkegaard com os mesmos olhos que eu tinha quando era estudante do curso de filosofia.
O 11 de setembro marca um momento de virada no curso da história recente. Ele nos mostra que os velhos fantasmas de uma intolerância religiosa, que pareciam estar sepultados pelas disputas ideológicas do século XX, nunca morreram de fato. Se pensarmos num alinhamento de fatos que envolvem a disputa entre cristãos, judeus e mulçumanos pela posse da verdade divina, poderíamos pôr as cruzadas, a inquisição, as guerras religiosas do século XVII, os polgrons contras judeus do século XIX e o terrorismo religioso desses anos como uma mesma e contínua reação contra os pressupostos de uma razão laica e livre. Todos os esforços de Kant de sustentar moralmente uma religião da razão parecem ir por terra quando alguém usa o nome de Deus para justificar a "suspensão da própria moralidade". A fé é um instrumento poderoso. Um instrumento que lança luz sobre a mente do homem. Como toda boa luz, pode tanto iluminar quanto cegar; pode tanto libertar quanto aprisionar os espíritos mais inquietos. Por isso, eu tenho medo da fé e prefiro responder, quando alguém me pergunta qual a minha religião, roubando a frase de alguém que não me lembro quem é, mas que já possui no uso capião das citações roubadas dessas centenas de livros que tenho na estante: "Acredito muito em Deus, mas desconfio veementemente daqueles que se dizem seus funcionários".
Leia também: Lições da intolerância
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Publicado em 12/09/2006
Publicado em 12 de setembro de 2006
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