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A resistência feminina contra a segregação do gênero durante o regime Taliban no Afeganistão
Michéle Tancman C. da Silva
Professora de Geografia do Curso de Extensão da Fundação Cecierj - Consórcio Cederj e Doutoranda da USP
O presente artigo é parte da pesquisa que venho desenvolvendo no Programa de Pós-graduação em Geografia na USP (doutoramento). Trata-se de um estudo que procura acompanhar os debates sobre o uso das tecnologias no espaço de fluxos das redes comunicacionais onde é possível processar e armazenar informações em função da sua natureza técnica. Os usuários da rede se beneficiam comunicando-se uns com outros, criando networks, buscando dados e potencializando movimentos sociais.
O artigo em tela tem como objetivo apresentar uma das formas de resistência promovida por algumas mulheres do Afeganistão, que diante do regime Taliban e fundamentalismo islâmico, fortaleceram a RAWA, uma associação constituída por cerca de duas mil mulheres e, a partir da rede de comunicação, promoveram, através de um único acesso à internet, a oportunidade para denunciar ao mundo, as barbáries cometidas pelo regime Taliban.
Hoje, com a derrubada do Taliban, e a permanência de um governo que inclui membros da aliança do norte (grupo político e uma mistura de elementos de várias regiões e grupos étnicos nomeados pela Loya jirga, uma assembleia tradicional), continuam o movimento de resistência, utilizando a rede, para discutir temas inerentes à condição da mulher islâmica.
As mulheres, de acordo com os fundamentalistas islâmicos, são consideradas, "qualquer coisa", menos humanas. Elas servem para procriação e cumprir tarefas que os homens não fazem. Quando o Regime Taliban, em 1992, assumiu o governo do Afeganistão, esta forma de olhar a mulher, foi elevada ao status de política social. Instaurou-se o regime de terror com aplicação distorcida da lei islâmica chamada Sharia. Toda a liberdade foi cruelmente sufocada. As mulheres tiveram os seus direitos totalmente cortados das participações social, econômica, cultural e política no país.
Os impactos na sociedade do Afeganistão foram marcantes e potencializados, por serem as mulheres, mais da metade da população (segundo Suraya Rahim, ministra para assuntos femininos, 52% da população é constituída por mulheres, sendo que 60 mil delas são viúvas habitantes da capital Cabul). Durante o regime Taliban, escolas para as meninas foram fechadas, o direito ao trabalho feminino foi impedido e as que tinham emprego deveriam ser imediatamente substituídas por homens. Nenhuma delas poderia andar nas ruas sozinha ou até mesmo viajar. No caso de urgências médicas, somente poderiam ser atendidas por outras mulheres. Nenhuma mulher poderia entrar com uma petição diretamente na corte. Não podiam mostrar o rosto em público ou a um estranho e, em casa, nada de se maquiarem ou usar roupas coloridas ou sapatos de salto alto. Em público, só usando burkas, que é uma versão mais radical do xador, trata-se de uma veste feminina que cobre todo o corpo, até o rosto e os olhos.
Segundo a RAWA, as mulheres também foram consideradas como escravas sexuais de Guerra, "seus corpos são outro campo de Guerra de partidos degenerados". Elas, por qualquer razão eram agredidas, preferencialmente, em público e algumas vezes levada à morte.
Depois da invasão ao Afeganistão, em sete de outubro de 2001, pelos Estados Unidos, em represália ao 11 de setembro, as mulheres aparentemente conquistaram a revogação de prisioneiras do lar, mas, segundo depoimentos, a realidade atual não lhes é favorável.
Ao contrario de suas aspirações e ao contrário das expectativas da Comunidade Internacional e da Aliança do Norte, ainda existem forças políticas que apoiam o Taliban e Al Qaeda. Na verdade, os líderes da Aliança do Norte não têm diferenças ideológicas com o Taliban. Chegam até aceitar "eleições" ou "direitos das mulheres", porém, paira um clima tão preconceituoso quanto o do Taliban.
Em algumas regiões do país continuam os casamentos forçados e algumas mulheres ainda usam burkas porque temem por sua segurança. O nível de violência no dia-a-dia do Afeganistão é algo difícil de se imaginar.
Algumas mulheres preferem colocar fogo em seus próprios corpos a se casarem com homens mais velhos em 30-40 anos. A rebelião das jovens mulheres contra casamentos arranjados é tão violenta quanto o abuso que elas sofrem. Nas províncias de Herat e Farah as organizações humanitárias internacionais falam de dezenas, e até mesmo de centenas de casos.
Um exemplo doloroso é o caso de Amim que em 24 de abril de 2004 morre apedrejada por adultério, em público, depois de uma decisão judicial. O adultério é proibido e o castigo pode ir desde a flagelação ou apedrejamento, até a morte. A prática tornou-se popular com o regime Taliban.
Contudo, algumas mulheres lutam pelos direitos humanos e pela justiça social no Afeganistão. Elas empreendem essa resistência através da Rawa. Trata-se de uma Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão e é a única organização política/social feminista das mulheres afegãs, antifundamentalista, que luta pela paz, liberdade, democracia, e pelos direitos das mulheres no maligno fundamentalismo afegão.
A RAWA, desde 1997, se apropriou da tecnologia de informatização e comunicação, utilizando a internet como um veículo para divulgar, através de imagens, reportagens e outros, as atrocidades ocorridas no regime Taliban e ao mesmo tempo provocaram uma cibermilitância ideológica que mobilizou parte da sociedade internacional. Contou com ajuda de jornalistas que foram os primeiros a enviar material para que, debaixo das burkas, elas pudessem registrar os acontecimentos.
Segundo o site da RAWA, depois que a porta-voz descreveu na TV como as mulheres escondiam suas câmeras debaixo dos véus para capturar imagens de execuções públicas e chicotadas, as imagens passaram a ser publicadas e dezenas de câmaras e material fotográfico foram doados a elas.
Hoje elas mantêm um site com tradução para sete idiomas e apoiam a Anistia Internacional. Veja a figura abaixo.
Rawa - www.rawa.org
A associação publica matérias sobre a mulher, produz livros e, em breve, pretende realizar um de seus principais objetivos: expandir e redirecionar as atividades para a educação de mulheres e crianças, através do estabelecimento de escolas modernas e públicas, instituições, e cursos; publicação de livros textos e fitas audiovisuais com conhecimentos modernos e científicos, que serão distribuídos gratuitamente entre os alunos. O desenvolvimento de bibliotecas também é outra iniciativa que a RAWA pretende empreender, não apenas nas cidades, mas, também, nas áreas rurais e distantes.
Para muitas mulheres afegãs não existem opções, muitas passam por um processo de mendicância, prostituição ou cometem suicídio, cuja taxa é alta. Estes motivos justificam a atuação da RAWA. A guerra contra o terrorismo removeu o Taliban, mas não removeu o fundamentalismo religioso que é a principal causa da miséria local.
Bibliografia
BAROCCI, Silvia. Mulheres afegãs ateiam fogo em si mesmas contra casamentos.
http://www.ansa.it/ansalatinabr/notizie/rubriche/entrevistas/20051123102533732940.html
BENARD, Cheryl. Veiled Courage: Inside the Afghan Women's Resistance.
Broadway Books. 2002.
LIETH, Norbert. A sharia do horror. http://www.chamada.com.br/mensagens/sharia.html
Revolutionary Association of the Women of Afghanistan (RAWA).
SILVA, Michéle Tancman C. da. A Melhor Geografia.
SILVA, Michéle Tancman C. A (Ciber)Geografia das cidades digitais. Rio de Janeiro. Niterói:UFF, Tese de Mestrado, 2002.
http://www.tamandare.g12.br/cidadedigital
_____. Mulher afegã morre apedrejada por adultério.
http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2005/04/24/ult729u46249.jhtm.
Publicado em 19 de setembro de 2006
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