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A Hermenêutica das Vacas

Pablo Capistrano

KEN BURNS, na sua série Jazz, conta uma história curiosa sobre Charlie Parker. Para quem não conhece, Parker foi um dos maiores músicos de jazz. Ele redimensionou a forma de tocar swing (desenvolvida por Louis Armstrong) e acrescentou, às suas estruturas melódicas, o aprendizado retirado das audições de Igor Stravinsky. Desconstruindo a linha original das melodias, Parker introduziu um fraseado rápido e improvisado, irrepetível, que orientava caminhos novos e inusitados para a música.

Mas vamos à história. Burns conta que um dia, nos idos dos anos cinquenta, Parker estava passeando de carro pelo campo com um grupo de amigos quando alguém disse que as vacas gostavam do som de saxofone. Parker ficou excitado com essa informação e imediatamente pediu que o carro parasse no acostamento, próximo de uma cerca. Parker atravessou a cerca com seu saxofone e pôs-se a tocar pelo pasto em meio a uma grande comunidade bovina que pastava calmamente no local. Seus amigos contemplaram atônitos os mais belos solos de Parker durante uns vinte minutos. As vacas, no entanto, não pareciam compreender o que estava acontecendo. Atônitas e incomodadas com a sofisticação stavisnkiana das melodias, começaram a ficar cada vez mais irritadas. Alguém, então, teve que retirar às pressas Parker do pasto, percebendo que, se o músico continuasse com seu número, poderia ser chifrado por alguma mimosa perturbada por seu show particular.

Triste perceber que, na maioria das vezes, as populações humanas parecem partilhar da mesma capacidade hermenêutica das vacas. Existem obras de arte que não se entregam fácil. É necessário um certo esforço, por parte do ouvinte, do leitor ou do espectador, no sentido de "chegar" à obra. A falta de uma cultura, de uma educação estética, condena a grande maioria da população a um estágio de letargia, a uma preguiça sonora bovina. Nos acostumamos a ouvir no rádio músicas de uma simplicidade gritante, que não obrigam o ouvido a nenhuma ginástica interpretativa. Essa parece ser a regra do mercado. O único esforço que o mercado deve exigir do consumidor parece ser o de sacar o cartão de crédito. Quando a obra exige uma contrapartida ativa do expectador (ouvinte ou leitor) a coisa complica.

Acredito que a única solução para esse estado de coisas passa pela formação de um público minimamente ativo. Um público treinado para desenvolver uma hermenêutica mais sofisticada do que a das vacas ou dos dromedários.

Agora eu pergunto a você, amigo leitor, quantas horas seu filho passa na escola treinando a apreciação estética? Quando tempo é dedicado à música, à contemplação e produção da pintura, ao teatro, à leitura de obras literárias? Na média, das trinta horas semanais que nossos adolescentes passam na escola, vinte e duas são de disciplinas técnicas (Física, Química, Biologia, Matemática e uma Linguística Aplicada que o povo chama de Português), seis horas são para as humanidades do vestibular (História e Geografia) e sobram duas horinhas para o resto (Literatura, Filosofia, Artes). Agora eu pergunto: dá para culpar a população pela sua preguiça hermenêutica? Se há uma característica que nos faz diferentes das vacas de Charlie Parker é a capacidade de compreender aquilo que não é dado espontaneamente pela natureza e de produzir o inusitado. Enquanto as amplas dimensões de nossa humanidade não forem cultivadas em nossas escolas, vamos continuar de quatro, mascando grama e regurgitando preguiçosamente o pasto de nossa própria mediocridade.

Publicado em 10/10/2006

Publicado em 10 de outubro de 2006

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