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Gregório de Mattos
Luiz Alberto Sanz
Paixão barroca para tempos sombrios
Paixão barroca para tempos sombrios
Vou dedicando estas palavras a Armindo Bião, aos Lobato - Lúcia e Ronald e a tantos amigos e companheiros que tenho nas terras da Bahia, que, no universo poético de hoje, representam o mundo.
Em 1975, José Miguel Wisniki organizou, para a Editora Cultrix uma seleção de poemas de Gregório de Matos (Poemas escolhidos). Eu vivia na Suécia, onde os livros da Cultrix não costumavam chegar, só se enviados ou levados por alguém. Então, vim a conhecer a seleção e a introdução de JMW em uma nova edição, em 1983, impressa pelo Círculo do Livro. Eu já conhecia algo da obra de Gregório de Matos, incluso o poema que distribuo hoje. Mas fui realmente motivado a saboreá-lo após a leitura pública de "Amo por amar, que é liberdade", peça de Francisco Pereira da Silva (quem não o conhece, precisa conhecer, não se pode falar em teatro brasileiro sem falar do FPS), que põe no palco as falas e a vida de Gregório. A leitura foi um dos pontos altos do Seminário de Dramaturgia "Os malditos", realizado pelo Sindicato dos Artistas, em 1983. A diretora cultural do Sindicato era Luiza Barreto Leite e o idealizador e organizador do Seminário era o Sérgio Sanz, na ocasião, diretor da Escola Dramática Martins Penna.
Terminado o Seminário, comprei e mergulhei no livro, para meu deleite. Anos mais tarde, dando aula como convidado na Martins Penna, trabalhei com os alunos de Interpretação III (Construção de personagens) o texto de Pereira da Silva. Emocionou-me o impacto sobre os jovens da densa poesia e da vida conturbada e intensa do poeta de quem alguns lembravam vagamente de uma citação em música de Caetano Velloso (Triste Bahia! Ó quão dessemelhante...). Recentemente, tornei-me amigo-irmão de Armindo Bião, principal fundador e primeiro presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em Artes Cênicas. Bião é profundo conhecedor da obra e da vida de Gregório. Como ator, interpretou-o no teatro e no cinema. Infelizmente, não conversamos muito sobre ele, outras tarefas, quase sempre prosaicas, nos tomavam demasiado tempo nas reuniões das diretorias da Associação.
Pensei com meus botões: são tempos em que precisamos reler Gregório de Matos e Guerra. Assim, fui à prateleira buscar o livro e folhear suas páginas já manchadas e amareladas, provando que as aparências enganam. Nem o volume empoeirado, nem a data dos poemas (Século XVII) reduzem a atualidade desses versos. Para introduzi-los, uns trechos de Wisniki e algo de Bião sobre a cultura baiana da época e sua influência.
WISNIKI, na obra citada, diz:
Já se definiu a sátira como "a luta cômica de duas sociedades, uma normal e outra absurda (...)". De imediato, é o caso: na sátira de Gregório a sociedade "normal" a do homem douto e bem-nascido, é revirada pela sociedade absurda a dos pasguates instalados no poder, gozando de prestígio. Para combater "um mundo cheio de anomalias, injustiças, desatinos e crimes", que ela mesma considera "permanente e indeslocável", a sátira declara uma guerra intransigente do tipo da de Davi contra Golias, mesmo que modulada pelas esquivas malandras ("Ponto em boca!"); pela falsa adesão ("Já entre os grandes me alisto, / e amigos são quantos topo: / estou fábula de Esopo / vendo falar animais, / e falando eu que eles mais, /bebemos todos num copo"); pela fuga para espairecer, na praia ou no dique. No combate satírico, a agudeza, "esplêndida concordância" de conceitos, "expressos em um único ato de entendimento", transforma-se numa agudeza prática, concreta, cortante, ferina, referencial, capaz de provocar represálias por parte dos atingidos.
Mas essa oposição entre uma sociedade instalada, vista como absurda, e outra destituída, vista como normal, tem um fundo a mais: é que a Bahia absurda tem, para um homem que privilegia a experiência como Gregório, a vantagem de ser real. Esse fato é a raiz de um duplo movimento paródico que poderíamos definir assim, adaptando a fórmula da sátira: na poesia de Gregório de Matos trava-se a luta de duas sociedades, cada uma delas absurda perante a outra. O bacharel, com seu arsenal inútil de leis, sua cultura livresca, sua poesia galante, parece tão absurdo diante da realidade da Bahia, quanto a realidade da Bahia é absurda aos olhos do bacharel.
Desse impasse Gregório de Matos parece ter feito o centro da sua existência de homem histórico e de poeta. Nas linhas de frente da sacra, da lírica e da satírica; aos olhos de Deus, de si mesmo e dos outros; a poesia aparece como a única possibilidade de salvação, na mesma proporção em que essa possibilidade aparece a um náufrago que nada. Nada para onde, no entanto? Eis uma boa pergunta, já que a vida mergulha o mortal na perdição (como ditava a moral contrarreformista), o amor é fonte de enganos (como confirmava a experiência), e o mundo está condenado a ficar em poder dos homens errados (como lhe provava o seu deslocamento).
BIÃO falando da Bahia do século XVI dá-nos a dimensão do mundo de Gregório Matos que vivia no meio das ruas e das gentes que originaram
(...) estilo barroco que, de fortes marcas espanhola e italiana, daria espaço social mais amplo à prática teatral e mesmo ao surgimento de uma possível identidade brasileira - e baiana -, marcada pelas grandes festas públicas espetaculares, entre os séc XVII e XVIII. (Bião, Temas em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo: Annablume; Salvador: GIPE-CIT, 2000, p. 20)
Agora, vamos às poesias, bons exemplos da condenação do mundo a ficar em poder dos homens errados, do mergulho do mortal na perdição e do amor como fonte de enganos, acima citados por JMW:
JUÍZO ANATÔMICO DOS ACHAQUES QUE PADECIA O CORPO DA REPÚBLICA, EM TODOS OS MEMBROS, E INTEIRA DEFINIÇÃO DO QUE EM TODOS OS TEMPOS É A BAHIA
Epílogos
1
Que falta nesta cidade? Verdade.
Que mais por sua desonra? Honra.
Falta mais que se lhe ponha? Vergonha.
o demo a viver se exponha
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
2
Quem a pôs neste socrócio. Negócio.
Quem causa tal perdição? Ambição.
E o maior desta loucura? Usura.
Notável desaventura
De um povo néscio, e sandeu,
Que não sabe que o perdeu
Negócio, ambição, usura.
3
Quais são os seus doces objetos? Pretos.
Tem outros bens mais maciços? Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos? Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
Dou ao demo a gente asnal,
Que estima por cabedal
Pretos, mestiços, mulatos.
4
Quem faz os círios mesquinhos Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas? Guardas.
Quem as tem nos aposentos? Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.
5
E que justiça a resguarda? Bastarda.
É grátis distribuída? Vendida.
Que tem que a todos assusta? Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa
O que el-rei nos dá de graça,
Que anda a justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
6
Que vai pela cleresia? Simonia.
E pelos membros da Igreja? Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha Unha.
Sazonada caramunha
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja, unha.
7
E nos frades há manqueiras? Freiras.
Em que ocupam os serões? Sermões.
Não se ocupam em disputas? Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluís, na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões, e putas.
8
O açúcar já se acabou? Baixou.
E o dinheiro se extinguiu? Subiu.
Logo já convalesceu? Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece,
Cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, subiu, e morreu.
9
A Câmara não acode? Não pode.
Pois não tem todo o poder? Não quer.
É que o governo a convence? Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma Câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.
À cidade da Bahia
Soneto
Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz brichote.
Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
No sermão que pregou na Madre de Deus, dom João Franco de Oliveira, pondera o poeta a fragilidade humana
Soneto
Na oração que desaterra a terra,
Quer Deus que a quem está o cuidado dado
Pregue que a vida é emprestado estado,
Mistérios mil que desenterra enterra.
Quem não cuida de si, que é terra erra,
Que o alto Rei, por afamado amado,
É quem lhe assiste ao desvelado lado,
Da morte ao ar não desaferra, aferra.
Quem do mundo a mortal loucura cura
A vontade de Deus sagrada agrada,
Firma-lhe a vida em atadura dura.
Ó voz zelosa, que dobrada brada,
Já sei que a flor da formosura usura,
Será no fim desta jornada nada.
Resposta a um amigo em matéria amorosa
Soneto
Fábio, que pouco entendes de finezas!
Quem faz só o que pode a pouco obriga:
Quem contra os impossíveis se afadiga,
A esse cede amor em mil ternezas.
Amor comete sempre altas empresas:
Pouco amor muita sede não mitiga;
Quem impossíveis vence, este me instiga
Vencer por ele muitas estranhezas.
As durezas da cera o Sol abranda,
E da Terra as branduras endurece,
Atrás do que resiste o raio se anda:
Quem vence a resistência se enobrece;
Quem pode o que não pode impera e manda,
Quem faz mais do que pode, esse merece.
Aos amores do autor com dona Brites
Soneto
Ontem a amar-vos me dispus; e logo
Senti dentro de mim tão grande chama,
Que vendo arder-me na amorosa flama,
Tocou Amor na vossa casa o fogo.
Dormindo vós com todo o desafogo,
Ao tom do repicar saltais da cama:
E vendo arder uma alma que vos ama
Movida da piedade, e não do rogo,
Fizestes aplicar ao fogo a neve
De uma mão branca que livrar-se entende
Da chama, de quem foi desprezo breve.
Mas ai! que se na neve Amor se acende,
Como de si esquecida a mão se atreve
A apagar o que Amor na neve incende?
Publicado em 17 de outubro de 2006
Publicado em 17 de outubro de 2006
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