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Dos diálogos de Sócrates

Luiz Alberto Sanz

Fui buscar o texto de hoje pensando em meu filho João Luiz que me reaproximou de Sócrates e Platão, quando decidiu estudar Filosofia na UFRJ, curso que interrompeu para voltar a percorrer seu caminho do radialismo, que o levou para Brasília, um pouco mais longe do Largo de São Francisco que Itaipu.

Não vou me arriscar a examinar o pensamento socrático. Afinal, não é a minha praia e o grande educador, cuja referência serve aos epistemólogos como divisor de águas da História da Filosofia eurocêntrica em pré-socráticos e pós-socráticos, é um personagem, principalmente, de Platão e Xenofonte e, secundariamente, de seu inimigo Aristófanes. Nada tendo deixado escrito, é praticamente impossível determinar o que saiu de sua boca e o que sofreu contribuições essenciais de seus biógrafos ou transcritores.

Paul Tannery observa, na introdução ao livro aqui consultado, que em meio às divergências entre seus mais destacados discípulos, somos conduzidos à hipótese "de que tanto Platão como Xenofonte deformaram igualmente as conversações de Sócrates, e assim caímos na mais completa incerteza".

Mas são as falas deste personagem, intermediado por Platão, que influenciaram a posteridade, estabelecendo os diálogos socráticos como método educacional sempre presente, contrapondo-se à instrução autoritária e escravizante. O princípio da dúvida como essencial ao processo de descoberta da verdade, mesmo que em eterna mutação, estendeu-se da Ética (campo principal das falas de Sócrates) às ciências naturais e influenciou todo o conhecimento humano.

Ainda Tannery:

"O que Sócrates procurava estabelecer era a definição. É certo que a procurava com um objetivo dialético, como um ponto de partida necessário que ele propunha ao adversário, como base fixa para conduzir uma discussão ou uma crítica. É pouco provável que ele atribuísse valor científico aos seus enunciados (...)"

Mas, mesmo insuficientes, os trechos de Sócrates/Platão são, por si só, bastantes para despertar nossa curiosidade filosófica. No entanto, é preciso uma contextualização: Sócrates era soldado, pensador e místico. Nasceu, viveu e morreu em Atenas (470/469  a 399 a. C.) . Aos 40 anos, de volta da Guerra do Peloponeso, viu-se em uma sociedade profundamente afetada pela demagogia e a corrupção. Passou a dedicar-se ao ensino da virtude e da sabedoria, vivendo nas ruas e não aceitando remuneração. Acusado de corromper a juventude e de propagar novos deuses, foi condenado a tomar cicuta. O texto de a Apologia de Sócrates (PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 61-72) é a versão de Platão para o que foi dito no julgamento. É considerado pelos especialistas com um dos mais belos escritos da Filosofia clássica.

(...)

A pitonisa era a sacerdotisa do templo de Delfos. Segundo o comentador de As Nuvens, a resposta verdadeira foi esta: "Sábio é Sófocles, mais sábio é Eurípedes, mas, entre todos os homens, Sócrates é sapientíssimo".

Conheceis bem Xenofonte. Era meu amigo de infância, também amigo do vosso partido democrático, e participou do vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis também como era Xenofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez, de fato, indo a Delfos, ousou interrogar o oráculo (...) e perguntou-lhe, pois, se havia alguém mais sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio. E a testemunha disso é o irmão dele que aqui está.

VI

Avaliai bem a razão por que digo isso: estou para demonstrar-vos de onde nasceu a calúnia. Em verdade, ao ouvir isso, pensei: "Que queria dizer o deus e qual é o sentido das suas palavras obscuras? Sei bem que não sou sábio, nem muito nem pouco: que quer dizer, pois, afirmando que eu sou o mais sábio? Sem dúvida, não mente, não é possível". E fiquei por muito tempo sem saber o verdadeiro sentido de suas palavras; depois de grande fadiga, resolvi investigar a significação do seguinte modo. Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por meio deles, sem dúvida, o oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a minha resposta: "Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que sou eu o mais sábio". Examinando esse homem - não importa o nome, mas era, cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava esta impressão - e falando com ele, parecia ser um verdadeiro sábio para muitos e principalmente a si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser.

Daí veio o ódio dele e de muitos dos presentes contra mim. Então, pus-me a considerar, comigo mesmo, que eu sou mais sábio do que esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e de bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei.

Em seguida, fui a outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e me pareceu que todos são a mesma coisa.

Daí veio o ódio também a este e a muitos outros.

VII

Depois prossegui sem mais me deter, embora vendo, amargurado e temeroso, que estava sendo odiado; mas, também, me parecia dever dar mais valor à resposta do deus. Para procurar, pois, o que queria dizer o oráculo, eu devia ir a todos aqueles que diziam saber qualquer coisa. (...)

(...) Depois dos políticos, fui aos poetas trágicos, e dos ditirâmbicos fui aos outros, convencido de que, entre esses, eu me classificaria como mais ignorante do que eles. Tomando, portanto, os seus poemas, dentre os que me pareciam os mais bem-feitos, eu lhes perguntava o que queriam dizer, para aprender também eu alguma coisa com eles.

(...)

Em poucas palavras direi ainda, em relação aos trágicos, que nada daquilo que faziam era por sabedoria, mas por certa natural inclinação, e intuição, assim como os adivinhos e os vates; e em verdade, embora digam muitas e belas coisas, não sabem nada daquilo que dizem.

O mesmo se poderia dizer dos outros poetas: e também me recordo de que eles, por causa das suas poesias, julgavam-se homens sapientíssimos ainda em outras coisas, nas quais não eram. Por essa razão, pois, andei pensando que, nisso, eu os superava, pela mesma razão que superava os políticos.

VIII

Finalmente, também procurei os artífices, porque estava persuadido de que por assim dizer nada sabiam, e, ao contrário, devo dizer que os achei instruídos em muitas e belas coisas.

Em verdade, nisso me enganei; eles, realmente, eram dotados de conhecimentos que eu não tinha e eram muito mais sábios do que eu. Contudo, cidadãos atenienses, parece-me que também os bons artífices tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitar bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas outras coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber.

Assim, eu ia interrogando a mim mesmo, a respeito do que disse o oráculo, se devia mesmo permanecer como sou, nem sábio, nem ignorante como eles, ou ter ambas as coisas, como eles têm.

Em verdade, respondo a mim e ao oráculo que me convém ficar como sou.

IX

Dessa investigação, cidadãos atenienses, me vieram muitas inimizades e tão odiosas e graves que delas se originaram outras tantas calúnias como também me foi atribuída a qualidade de sábio; pois que, a cada instante, os presentes acreditam que eu seja sábio naquilo que refuto aos outros. Do contrário, ó cidadãos, o deus é que poderia ser sábio de verdade, ao dizer, no oráculo, que a sabedoria humana é de pouco ou nenhum preço; e parece que não tenha querido dizer isso de Sócrates, mas que se tenha servido do meu nome, tomando-me, por exemplo, como se dissesse: "São considerados sapientíssimos dentre vós, ó homens, aqueles que, como Sócrates, tenham reconhecido que em realidade sua sabedoria não tem nenhum mérito".

Por isso, até agora procuro e investigo segundo a vontade do deus, se algum dos cidadãos e dos forasteiros me parece sábio; e, quando não, indo em auxílio do deus, demonstro-lhe que não é sábio. E, totalmente empenhado em tal investigação, não tenho tido tempo de fazer nada de apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados, mas encontro-me em extrema pobreza, por causa do serviço do deus.

Além disso, os jovens com maior disponibilidade de tempo, os filhos dos ricos, seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas vezes me imitam, por sua própria conta, e se decidem também a examinar os outros; e então, imagino, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa, mas pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles e, por essa razão, dizem que há um tal Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E quando alguém lhes pergunta o que é que ele faz e ensina, não sabem responder, pois ignoram. Para não parecerem embaraçados, repetem aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos: que ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a tomar mais forte a razão mais débil. Sim, porque não querem, a meu ver, dizer a verdade, ou seja, que descobriram a sua presunção de saber, quando não sabem nada. Assim, suponho, sendo eles ambiciosos e resolutos e em grande número, e falando de mim concordemente e persuasivamente, vos encheram os ouvidos caluniando-me de há muito tempo e com persistência. Entre estes, insurgiram-se contra mim Meleto, Anito e Lícon: Meleto pelos poetas, Anito pelos artífices, Lícon pelos oradores. (...)

Nota

Sócrates refere-se a seus acusadores: Meleto, poeta lírico, o mais ativo dos acusadores; Anito, rico industrial e muito influente no governo popular; Lícon, um orador medíocre.

(...) Agora procurarei defender-me de Meleto, tido como homem de bem e amante da pátria, e um dos últimos acusadores.

Voltemos, portanto, ao ato de acusação, jurado por ele, como por outros acusadores. Consta mais ou menos assim:

- Sócrates comete crime corrompendo a juventude e não considerando como deuses aqueles em que todo povo acredita, porém outras divindades novas. - Esta é a acusação.

Examinemo-la agora em todos os seus vários pontos. Diz que cometo crime, corrompendo a juventude. Ao contrário, eu digo, cidadãos atenienses, Meleto é quem comete crime, porque brinca com coisas sérias.

Conduzindo com facilidade os homens ao tribunal, dissimulando ter cuidado e interesse por coisas em que de fato nunca pensou. Procurarei mostrar-vos que é bem assim.

XI

- Agora, dize-me, Meleto: não é verdade que te preocupas muito que os jovens se tornem cada vez melhores, tanto quanto possível?

- Sim, é certo.

- Vamos, pois, dizer a estes senhores quem os toma melhores: é evidente que tu o deves saber, coisa que te preocupas, tendo de fato encontrado quem os corrompe, como afirmas, já que me trouxeste aqui e me acusas. Continua, fala e indica-lhes quem os torna melhores. Vê, Meleto, calas e não sabes o que dizer. Portanto, não te parece vergonhoso e suficiente prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em nada disso? Mas, dize, homem de bem, quem os torna melhores?

- As leis.

- A pergunta que faço não é essa, ótimo homem, mas qual o homem que sabe, em primeiro lugar, isso exatamente, as leis.

- Aquelas pessoas, Sócrates, os juízes.

- Como, Meleto? Essas pessoas são capazes de educar os jovens e os tomar melhores?

- Certamente.

- Todos, ou alguns sim, outros não?

- Todos.

- Muito bem respondido, por Juno: Vê quanta abundância de pessoas úteis! Como? Também estes, que nos escutam, tornam melhores os jovens ou não?

- Também estes.

- E os senadores?

- Também os senadores.

- É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os cidadãos da assembleia, ou também todos esses os tornam melhores?

- Também esses.

- Assim, pois; todos os homens, como parece, tornam melhores os jovens, exceto eu, só eu corrompo os jovens. Não é isso?

- É exatamente isso que afirmo.

- Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E responde-me: será assim também para os cavalos? Todos os homens os tornam melhores e um só os corrompe? Ou será o contrário, que um só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que entendem de cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-los, os estragam? Não é assim, Meleto, para os cavalos como para todos os animais? Sim, certamente, ainda que tu e Anito o neguem ou afirmem. Pois seria ótimo para os jovens que um só corrompesse e os outros lhes fossem todos úteis. Na realidade, porém, Meleto, mostrastes o suficiente que jamais te preocupaste com os jovens, e claramente revelaste o teu desprezo, que nenhum pensamento te passou pela mente, disso de que me estás acusando.

XII

- Por Zeus, Meleto, diz-me ainda: que é melhor, viver entre virtuosos cidadãos ou entre malvados? Responde, meu caro, não te pergunto uma coisa difícil. Não fazem os malvados alguma maldade aos que são seus vizinhos, e alguns benefícios os bons?

- Certamente.

- E haverá quem prefira receber malefícios a ser auxiliado por aqueles que estão com ele? Responde, porque também a lei manda responder. Há os que prefiram ser prejudicados?

Nota

A lei proibia qualquer interrupção que algum adversário fizesse ao outro, mas dava a ambos o direito de se interrogar reciprocamente. A interrogação e a ironia eram o método de S6crates, para ensinar, para que o discípulo descobrisse, por si mesmo, pelo próprio raciocínio, as verdades que lhe desejava transmitir e que estão dentro de cada ser humano; adota o mesmo método para os adversários e para os acusadores.

- É claro que não.

- Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que corrompe os jovens e os torna piores, voluntariamente ou involuntariamente?

- Para mim, voluntariamente.

- Como, Meleto? Tu, nesta idade, és mais sábio do que eu, tão velho, sabendo que os maus fazem sempre mal aos mais próximos e os bons fazem bem. Eu, no entanto, sou tão ignorante que não sei nem isso: que, se tornassem maus alguns daqueles que estavam comigo, correria o risco de receber dano, se é que faço um tão grande mal, como dizes. Não me convences, Meleto, quanto a isso, e ninguém te dá crédito, penso.

No entanto, ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é sem querer, e em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente, não há leis que mandem trazer aqui alguém, por tais fatos involuntários, mas há as que mandam conduzi-lo em particular, instruindo-o, advertindo-o; é evidente que, se me convencer, cessarei de fazer o que estava fazendo sem querer. Tu, em vez de orientar-me com teus ensinamentos, evitaste encontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a lei ordena trazer os que precisam de castigo e não de instrução.

XIII

Contudo, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram o que eu sempre disse. Jamais Meleto prestou atenção a tais coisas, nem muita nem pouca. Todavia, explica, Meleto, o que significa a tua expressão, dizendo que corrompo a juventude. É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo, que ensino a não respeitar os deuses que a cidade respeita, porém outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais coisas?

- Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso.

- Então, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora estás falando, fala ainda com mais clareza, a mim e aos outros. Não consigo entender se dizes que eu ensino a acreditar que existem certos deuses - e em verdade creio que existem deuses, e não sou de todo ateu, nem sou culpado de tal erro - mas não são os da cidade, porém outros e é disso que exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou afirma que eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino isso aos outros?

- Eu afirmo que não acreditas inteiramente nos deuses.

- Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não creio, pois, do mesmo modo que os outros homens, que o sol e a lua são deuses?

- Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que o sol é uma pedra, e a lua, terra.

- Tu acreditas estar acusando Anaxágoras, caro Meleto; e me desprezas tanto e me consideras tão sem instrução a ponto de não saber que os livros de Anaxágoras Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De modo que os jovens aprendem coisas de mim, pelas quais podem talvez, pagando todos no máximo uma dracma, rir-se de Sócrates, quando se lhe atribui arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus, assim te parece, que eu creio que não exista nenhum deus?

- Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo.

- És, decerto, indigno de fé, Meleto, e também a ti mesmo, me parece, tais coisas são inacreditáveis. Porque este homem, cidadãos atenienses, me parece a própria arrogância e imprudência, e certamente escreveu essa acusação por medo, intemperança e leviandade juvenil. De fato, ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um enigma e diga, interrogando-se a si mesmo: "Perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou zombando dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros que me ouvem?" E, ao contrário, penso que, no ato da acusação, se contradiz de propósito, como se dissesse: "Sócrates comete crime, não acreditando nos deuses, mas acreditando nos deuses". E isso, na verdade, é fazer zombaria.

XIV

Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que modo me parece que ele diz isso. Responde-nos, tu, Meleto, e vós, senhores, como pedi a princípio, não façais rumor contra mim, se conduzo o raciocínio deste modo. Existem entre os homens, Meleto, os que acreditam que há coisas humanas, mas que não há homens? Que responda ele, ó juízes, sem resmungar ora uma coisa ora outra. Há os que afirmam que não há cavalos, ao mesmo tempo acreditam que existem coisas relacionadas aos cavalos? Ou acreditam que não há flautista, mas apenas coisas relativas às flautas? Não há? Ótimo homem, se não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos outros presentes. Ao menos, responde a isto: Há quem acredite que há coisas demoníacas, e demônios não?

- Não há.

- Oh! como estou contente que tenhas respondido de má vontade, constrangido por outros! Tu afirmas, pois, que eu creio e ensino coisas demoníacas, sejam novas, sejam antigas; portanto, segundo o teu raciocínio, eu creio que há coisas demoníacas e o juraste na tua acusação. Ora, se creio que há coisas demoníacas, é absolutamente necessário que eu creia também na existência dos demônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que o admites, porque não respondes. E não consideramos os demônios como deuses ou filhos dos deuses? Sim, ou não?

- Sim, é verdade.

- Se, então, creio na existência dos demônios, como dizes, se os demônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que não acredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses, porque ao menos creio na existência dos demônios. Se, ainda, os demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras mulheres, das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia ter a certeza de que são filhos dos deuses se não existem os deuses? Seria do mesmo modo absurdo que alguém acreditasse nas mulas, filhas dos cavalos e das jumentas, e acreditasse não existirem cavalos e asnos. Mas, Meleto, a tua acusação foi feita para me tentar, ou também por não saber a verdadeira culpa que me pudesses atribuir: por que, pois, te arriscas a persuadir um homem, mesmo de mente restrita, de que pode a mesma pessoa acreditar na existência das coisas demoníacas e divinas, e, de outro lado, essa pessoa não admite demônios, nem deuses, nem heróis? Isso não é possível.

xv

Portanto, cidadãos atenienses, para demonstrar que não sou réu, segundo a acusação de Meleto, não me parece ser necessária longa defesa, mas isso basta. Aquilo, pois, que eu dizia no princípio, que há muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem sabeis que é verdade. E isso é o que vai me vencer, se eu for condenado... e não Meleto, ou Anito, mas a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão se perderam muitos outros homens virtuosos e outros ainda, creio, serão derrotados, pois esse mal não termina comigo. Mas talvez alguém pudesse dizer: "Não te envergonhas, Sócrates, de te aplicares a tais ocupações, pelas quais agora estás arriscado a morrer?" A isso responderei com justo raciocínio: "Não estás falando bem, meu caro, se acreditas que um homem, de qualquer utilidade, por menor que seja, deva fazer caso dos riscos de viver ou de morrer, e, ao contrário, só deve considerar o seguinte: ao executar qualquer tarefa, deve avaliar apenas se .está procedendo de maneira justa ou injusta, se está agindo como homem virtuoso ou desonesto". Porquanto, segundo a tua opinião, seriam desprezíveis todos aqueles semideuses que morreram em Troia. E, com eles, o filho de Tétis, o qual para não sobreviver à vergonha, desprezou de tal modo o perigo que, desejoso de matar Heitor, não ouviu as palavras de sua mãe, que era uma deusa, e a qual lhe deve ter dito mais ou menos isto: "Filho, se vingares a morte de teu amigo Pátroclo e matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamente depois de Heitor, o teu destino está terminado". Ouviu tais palavras, fez pouco caso da morte e dos perigos, e, temendo muito mais o viver ignóbil e não vingar os amigos, disse: "Morra eu imediatamente depois de ter punido o culpado, para que não permaneça aqui como objeto de riso, junto das minhas naus recurvas, inútil fardo da terra" (Homero - llíada, XVIII.). Crês que tenha feito caso dos perigos e da morte? Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses: onde quer que alguém se tenha colocado, considerando-o o melhor posto, ou se for ali colocado pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de enfrentar os perigos, sem se importar com a morte ou com coisa alguma, a não ser com as torpezas.

XVI

Cometeria erro grave, cidadãos atenienses, quando os comandantes, por vós eleitos para me dirigirem, me designaram um posto em Potideia, em Anfípole, em Délio, e eu não tivesse ficado onde me colocaram como qualquer outro e correndo perigo de morte. Quando, pois, o deus me ordenava, como penso e estou convencido, que eu devia viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros, então eu, se temendo a morte ou qualquer outra coisa, tivesse abandonado o meu posto, isso seria deveras intolerável. Nesse caso, com razão, alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e acusar-me de não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e temendo a morte, e reputando-me sábio sem o ser.

Pois que, senhores, o temer a morte não é outra coisa que parecer ter sabedoria, não tendo. É, de fato, parecer saber o que não se sabe. Ninguém sabe, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto dos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber o que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos talvez nisso seja diferente da maioria dos homens, e diria isto: não sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei. No entanto fazer injustiça, desobedecer a quem é melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem, é mau e vergonhoso. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por acaso, não são boas, em confronto com as más, que sei que são más. Anito disse que, ou não se devia, desde o princípio, trazer-me aqui, ou, uma vez que me trouxeram, não é possível deixarem de me condenar à morte, afirmando que, se eu me salvasse, imediatamente os vossos filhos, seguindo os ensinamentos de Sócrates estariam de fato corrompidos. Mesmo se me dissésseis: "Sócrates, agora não damos crédito a Anito, mas te absolveremos contanto que não te ocupes mais dessas tais pesquisas e de filosofar, porque se fores apanhado ainda a fazer isso, morrerás"; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria:

"Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos deuses em vez de obedecer a vós e, enquanto eu respirar e estiver na posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de instruir cada um, quem quer que seja que vier à minha presença, dizendo-lhe, como é meu costume: Caro cidadão de Atenas, tu que pertences à maior cidade e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te envergonhas de fazer caso das riquezas para guardares quanto mais puderes e da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te importares da sabedoria, da verdade e da alma, para tê-la cada vez melhor?" (...).

Publicado em 31 de outubro de 2006

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