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Montaigne: um subversivo em profundidade
Cláudia Dias Sampaio
O que nos faz sofrer a dor com tanta impaciência é não estarmos acostumados a buscar na alma nosso principal contentamento
(E, 1580, I, XIV, 57).
Uma época conturbada, marcada por guerras religiosas e profundas transformações políticas, sociais e culturais: nesse cenário da França do século XVI viveu Michel Eyquem de Montaigne, autor de Os Ensaios. Célebre por ter sido o precursor do gênero ensaio, Montaigne nos deixou uma obra tão fecunda que até hoje, quase cinco séculos após a publicação do primeiro livro, leitores diletantes e especialistas se surpreendem com as reflexões suscitadas por seu texto.
Nossa intenção é apresentar alguns aspectos da obra deste escritor, a partir do estudo empreendido por Luiz Costa Lima, em "A sagração do indivíduo: Montaigne", no livro Limites da voz.
Luiz Costa Lima
Um dos grandes pensadores da literatura brasileira, cujas pesquisas são de extrema importância para os estudos literários em nosso país. Desde o início de sua trajetória intelectual persegue com insistência duas ideias: a revisão do conceito de mímesis e a afirmação da existência de um controle do imaginário vigente pelo menos desde a abertura dos tempos modernos, a partir do Renascimento. O que torna especial os estudos de Costa Lima – que se estende por mais de vinte livros dedicados à teoria e à crítica literária – é sua preocupação constante em pensar a literatura brasileira a partir de suas especificidades.
"Decididamente, o homem é um assunto espantosamente vão, variado e inconstante. Sobre ele, é difícil estabelecer uma apreciação firme e uniforme". (E 1580, I, I, 9)
Quando pensamos em conhecimento, é importante lembrar que nem sempre o sujeito, o Eu, esteve no centro das teorias. Na Antiguidade, a ordem cósmica era o que importava. Era uma visão substancialista do mundo, o sentido da vida estava nas coisas, estas se encontravam prontas no Cosmos e ao ser humano cabia o papel de tão somente copiá-las.
"No mundo antigo (...) o elemento bastante para a caracterização da individualidade é o valor concedido de antemão a algo distinto do eu, que regula a conduta apropriada a cada eu". (Costa Lima: 2000, 26).
Tratava-se de um sujeito heterodirigido, pois suas as ações se davam em função do que estava no Cosmos. Esse pensamento começa com Platão, se refina em Aristóteles e se consolida com o cristianismo platônico.
A igreja e a nobreza eram as instâncias que mantinham esse mundo fixo e impunham seu conservadorismo como barreira ao perigoso pensamento de um sujeito vão, inconstante e diverso, que representava um risco à fixidez daquele ideal de mundo.
O pensamento de que as coisas já estavam prontas no Cosmos implicava uma posição fixa do sujeito, portanto, nessa 'cosmovisão', não havia novidade cabível ao homem. Tal imposição se manteve até a Alta Idade Média, não por motivos filosóficos, mas pelas relações humanas que acabaram se estabelecendo daquela maneira. Com a chegada do Direito, à medida que foram surgindo as Leis, o direito à individualidade começou a ser constituído.
Ao colocar o sujeito no centro da questão do conhecimento, o filósofo Immanuel Kant empreendeu a revolução que se iniciou com os pensamentos de Locke e Descartes.
"O que irá marcar os tempos modernos é a existência de uma consciência individualizada e a dissolução dessa concepção substancialista do mundo". (Costa Lima, 200, 25).
Ponto zero
Pensemos, portanto, em dois momentos da teoria do conhecimento: antes e depois do reconhecimento da primazia do Eu. Nesse contexto, Montaigne assume uma posição que poderíamos chamar de ponto zero. Quando ele escreveu Os Ensaios, essa situação filosófica - da transição de uma concepção antiga, para uma moderna de mundo - não tinha sido estabelecida. O que nos mostra que a obra do escritor estava além do que ele próprio havia concebido.
A inovação de Montaigne foi ter expressado um Eu desgarrado dessa tradição, "um Eu que se autonomiza, movente, inconstante". (Costa Lima, 2000, 37).
À deriva do ensaio, trouxe à tona, também, a experiência da heterogeneidade. Montaigne era leitor dos antigos: como Sêneca, Plutarco, Platão e Cícero e era através dos exemplos retirados das obras desses escritores que ele empreendia sua crítica aos padrões fixos da Antiguidade, inclusive ao pensamento desses próprios escritores. A multiplicidade dos exemplos nos revelou a experiência da heterogeneidade, afinal, qual é o exemplo de homem? Qual seria a conduta exemplar?
Morte e liberdade
Montaigne elegeu o tema da morte para empreender sua crítica mais contundente ao conservadorismo da igreja e da nobreza, que através de seus rituais fúnebres cultivavam o terror a esse inelutável acontecimento. Para Montaigne, ao se livrar do temor da morte, o homem estaria em estado pleno de liberdade.
"Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento." (E,1580, I, XX)
No entanto, ao mesmo tempo em que o pensamento dele continha uma força de renovação, ainda se mantinha, de algum modo, preso à tradição que o sustentava. Pois ele não podia simplesmente romper ou relegar a tradição, afinal, obedecer aos padrões vigentes era o que garantia a circulação de sua obra. Além disso, lembremos que não se admitia aquele tipo de sujeito: vão, múltiplo e inconstante expressado por Montaigne.
Segundo a análise de Costa Lima, Montaigne seria um "subversivo em profundidade", pois sua obra teria abalado as estruturas de uma ordem secularmente estabelecida. O problema mais complexo apontado pelo teórico surge justamente após esse abalo: o que fazer diante da terra em que teremos de viver depois de arrasada?
O sujeito moderno e o vazio
Os valores que passam a dirigir o sujeito dentro da concepção de mundo na modernidade são mutáveis e não mais fixos como era na concepção antiga. Com isso, o ser humano tem diante de si o vazio, resultado desses valores intercambiáveis que, no final das contas, são nada, pois se revelam como convenções criadas por ele mesmo.
Atualmente o que observamos é ou o desprezo, ou uma ideia negativa a respeito do vazio que se abre a partir da concepção moderna de sujeito. Ainda é rara a lembrança de que esse vazio diz da possibilidade de intervir no mundo.
No caso de Montaigne, o valor de sua obra estaria exatamente no fato dele ter conseguido trazer para sua obra a representação desse vazio. A análise de Costa Lima nos mostra que a escrita seria justamente a concretização do vazio com o qual o escritor se depara após ver fracassado seu ideal de retrato. O caráter irresoluto, de uma obra em construção, dos Ensaios nos coloca diante dos limites da ciência, por mais que ainda hoje se enfatize o contrário, ela não dá conta das indagações desse sujeito vão, variado e inconstante.
La Boètie e o ideal do retrato
Morria-se cedo naquela época, aos 38 anos Montaigne renunciou aos encargos públicos e a sua condição de nobre para viver um exílio voluntário no castelo que herdara do pai. Passava os dias entre os livros de sua biblioteca com a intenção de se dedicar à leitura e à escrita. Ele pretendia, deste modo, dar um outro rumo à vida. O que o levou a tal decisão foi por um lado a proximidade da morte e por outro o desejo de se dedicar à memória de seu grande amigo Étienne de La Boètie. Este sim morreu jovem sem deixar grandes feitos que pudessem ser contados em um livro, só restava a Montaigne traçar o retrato daquela amizade. Mas como escrever sobre a amizade? Num primeiro momento, o que lhe restou foi a tarefa de construir seu próprio retrato:
"(...) restava a Montaigne um eu que agora, a pretexto de exaltar a memória do amigo, não dispunha mais que de si mesmo" (Costa Lima, 2000, 25).
A impossibilidade de retratar a amizade levou Montaigne à reflexão sobre o retratista e no que ele poderia fazer a partir da prática dos pintores que usavam o arabesco. No retrato temos a moldura feita de arabescos, um ornamento de origem árabe cuja forma diz: nada. O arabesco não está dentro do retrato, portanto, conclui-se que no retrato não há lugar para o arabesco.
Para Costa Lima, Os Ensaios são como um work in progress, uma obra em aberto, pois Montaigne vai descobrindo a falência de seus ideais primeiros, à medida que constrói a sua obra. Não há uma maneira de representar a amizade, mas de senti-la, desse modo, a dificuldade de formular a ideia do vazio se integra ao retrato e o arabesco que constituía a moldura, deixa de ficar na margem, entra no próprio quadro, é a representação do vazio - representação do que não se representa, já que como vimos um arabesco por si não representa nada.
"Se nos divertíssemos com nos examinar e se o tempo que empregamos em observar os outros e em nos informar acerca do que não é de nossa conta nós o consagrássemos a ver dentro de nós mesmos, compreenderíamos logo quão frágil e insignificantes são as peças de que somos feitos. Não constitui, com efeito, prova de imperfeição o fato de que nada nos dê inteira satisfação?" (E, 1580, I, LIII)
O arabesco se converte na escrita dos ensaios cujo ponto final será a própria literatura. A escrita é o lugar do irrepresentável, ou seja, da ausência, é a concretização do vazio. Desse modo, a obra em aberto de Montaigne encontra seu desfecho no leitor que assim como bem sabia Montaigne também é um sujeito vão, variado e inconstante.
Bibliografia
Montaigne, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1996, volumes I e II.
Costa Lima, Luiz. Limites da voz. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.
_____________. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
Leia mais
- Montaigne: a história sem ornatos, por Luiz Costa Lima
- Montaigne: o teatro do mundo, por Rodrigo Petrônio
Publicado em 7 de novembro de 2006
Publicado em 07 de novembro de 2006
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