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Fernando Pessoa
Luiz Alberto Sanz
O poeta é um fingidor
O querido amigo Zé Pereira, já há alguns dias, enviou-me uma sugestão-contribuição temperada com algo que pode ser lido como reivindicação, mas também como crítica delicada e sensível. A leitura que fiz incorpora ambos sentimentos, afinal, marginal, identifico-me mais com aqueles poetas que podem estar em todas as esquinas, mas não estão em todos os balcões de livraria. Uns banidos por serem considerados chatos (e o mais que querido Ascenso expressa tal sentimento sobre Camões, que nos impingiam como educação cívica em vez de arte) e outros simplesmente esquecidos ou desconhecidos de quem vende e de quem compra. O chamado de Pereira se refere a um dos mais JUSTAMENTE badalados, que não iria nos faltar, embora eu tenha essa preferência por instigar as torturantes perguntas: "Por que eu não li esse cara? Por que não conheço esta poeta?". No entanto, digo em minha defesa que em breve trarei aqui Cecília Meirelles, nunca esquecida, que engrandeceu a poesia, como poeta, e simultaneamente prejudicou-a, como educadora, ao combater as aulas e as atividades de declamação, prática que achava horrorosa. E virão outras e outros.
Obrigado, Pereira.
Saudações a todos.
Pereira diz:
Um pouco de Fernando Pessoa (melhor, Álvaro de Campos) para você. Temos sido presenteados com autores nem sempre muito conhecidos e de ótima sensibilidade.
Te mando um poema, que tenho certeza que você já conhece mas, que é sempre bom relembrar.
Pereira.
Ora, quem seria eu para não amar Fernando Pessoa, ainda mais Álvaro de Campos. De Fernando sinto muita inveja, confesso. Como gostaria de ser capaz de escrever como ele! Mas esta não é a maior inveja. Remoo-me porque ele conseguiu, melhor que ninguém, aquilo que me tem sido impossível: administrar suas múltiplas personalidades, organizá-las em heterônimos e deixá-las, todas e cada uma, alcançar suas próprias grandezas. Capacidade essa que o acompanhou por toda a vida, como ele mesmo conta:
"(.) Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida-real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar."
Carta a Casais Monteiro (13-1-1935).
Eu não vou me arriscar a escrever sobre ele. Espero que, sobre a multiplicidade de personas, gente mais capaz (Vera Canabrava, Beth Müller, Ana Lúcia Castro, Nádia do Nascimento, Maria do Carmo Cabral e outras mais que leem estas mensagens se animem); quanto à arte, há entre nossos leitores muitos estetas. Em todo caso, recomendo especialmente uma visita ao sítio Vidas Lusófonas (http://www.vidaslusofonas.pt/) , criado e gerido por Fernando Correia da Silva onde encontrarão um belo texto da jornalista e escritora paulista Mirna Queiroz (http://www.vidaslusofonas.pt/fernando_pessoa.htm), de onde tirei os dados biográficos e o trecho da carta a Casais Monteiro (aliás, concunhado do Lincoln Oest, dirigente do PC do B) a quem conheci na minha infância, amigo de papai (José Sanz) e mamãe (Luiza Barreto Leite). Quantas vezes pude ouvi-los discutindo poesia e outros assuntos na pequena sala do apartamento do edifício dos bancários da rua Senador Vergueiro, onde vivíamos. Há muitos sítios dedicados a Pessoa, recorri a outros dois, que vão citados abaixo.
O máximo que vou fazer é acrescentar alguns poemas ao indicado por Pereira (que fala, aliás, das dores que muitos de nós vivem neste momento), este belo Poema em linha reta.
Começo com Pessoa, o próprio (1888: Nasce Fernando António Nogueira Pessoa, em Lisboa. - 1893: Perde o pai. - 1895: A mãe casa-se com o comandante João Miguel Rosa. Partem para Durban, África do Sul. - 1904: Recebe o Prêmio Queen Memorial Victoria, pelo ensaio apresentado no exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança. - 1905: Regressa sozinho a Lisboa. - 1912: Estreia na Revista Águia. - 1915: Funda, com alguns amigos, a revista Orpheu. - 1918/21: Publicação dos English Poems. - 1925: Morre a mãe do poeta. - 1934: Publica Mensagem. - 1935: Morre de complicações hepáticas em Lisboa) e pelo poema mais óbvio, talvez o mais citado de ouvir-dizer.
Recolhido em "Cancioneiro", fui buscá-lo em www.revista.agulha.nom.br/pessoa.html
Autopsicografia
(Fernando Pessoa)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Sigo com Álvaro de Campos (1890 - 1935?): Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. (http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/index.html)
Poema em linha reta
(Álvaro de Campos)
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Passo por um de Alberto Caeiro (1889 - 1915): é considerado o mestre de todos os heterônimos de Fernando Pessoa. Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso. (http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/index.html)
"Pensar em Deus é desobedecer a Deus",
Recolhido de O Guardador de rebanhos:
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
Sigo adiante com Ricardo Reis (1887 - 1935?): nasceu no Porto. Educado em colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria (http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/index.html).
"Para ser grande, sê inteiro"
Encontrado em Odes de Ricardo Reis:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Publicado em 21 de novembro de 2006
Publicado em 21 de novembro de 2006
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