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Quilombos fluminenses lutam para manter sua identidade

Leonardo Soares Quirino da Silva

Uma segunda-feira de manhã, ao invés de pegar o carro e ir direto para o Rio, para a redação do Portal, fui visitar o Quilombo de Santana, em Quatis. Meu objetivo era ver como, 118 anos depois da abolição e 311 da morte de Zumbi, vivia uma das 25 comunidades quilombolas do estado, o que havia sobrado de suas tradições, sua religiosidade, sua cultura. Afinal, o Dia Nacional da Consciência Negra se aproximava e seria interessante contar pelo menos a história de um desses quilombos para os leitores do Portal.

O sol a pino era a garantia de poder chegar com meu carro mil pela estrada de terra. Segui pela estrada que leva ao distrito de São Joaquim, em Quatis. Pelo caminho, um viaduto da Ferrovia do Aço, um Urutu do exército sendo rebocado e campos sem um pé de qualquer coisa ou uma cabeça de gado. Uma explicação para isso talvez fosse o sol. Com o calor que fazia, só um jornalista ou os militares do Urutu para enfrentar por amor as suas artes.

Como só podia acontecer, a boa estrada de terra não ia direto para Santana. Era preciso pegar um desvio que me fez entender porque o presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo de Santana, Miguel Francisco da Silva, disse que em dia de chuva só dava para chegar de jipe.

A primeira construção visível para quem chega ao quilombo de Santana é a antiga capela da fazenda de mesmo nome que pertenceu ao comendador Manoel Marques Ribeiro. O comendador era sogro do filho do primeiro barão de Cajurú, um dos maiores criadores de mulas do Império e veterano da retirada da Laguna. Por conta disso, os restos mortais do barão, de seu filho e da esposa deste estão enterrados lá. O comendador foi gozar seu descanso eterno em outras paragens.

Sobraram, da construção de 1867, as paredes e as lápides no chão. Há cerca de 50 anos, fazendeiros da região e o padre resolveram levar as imagens, entre elas o anjo da guarda de mármore carrara que ornava o túmulo do barão, e os objetos sacros para outro lugar, bem como destelhar a igreja.

Esta foi salva pela comunidade, que construiu novo telhado com apoio da irmã Elizabeth Alves, há uns dez anos atrás. A irmã também ajudou a trazer algumas das peças do acervo da capela de volta para a comunidade, entre elas a imagem de Sant'ana.

Segundo a religiosa, quando descobriu a situação em que viviam as pessoas do quilombo resolveu ajudar. Marcou uma reunião com os moradores e foi pensando que eles iam priorizar a construção de casas ou de um posto de saúde ou ainda de uma escola. O resultado foi uma surpresa. A maior prioridade era reconstruir a capela, pois os membros da comunidade disseram que "desde que tiraram nossos santos só andamos para trás".

A destruição da igreja, para Miguel, fazia parte de tentativa de apagar o passado e expulsar a comunidade. A própria estrada que leva à Santana ficou fechada por muitos anos, depois de servir de caminho entre Quatis e Amparo por quase 200 anos.

Feliz, Miguel mostrou-me ainda a escola do quilombo, construída sobre as fundações da antiga senzala. Precisando de reformas, em duas das três salas há buracos nas telhas, a escola atende a 19 alunos nas séries dos anos iniciais, que correspondem à antiga classe de alfabetização e as quatro séries do primário. Na única sala que tem as telhas inteiras estão os objetos da capela, entre eles a imagem de Santana.

O resto da conversa com Miguel rendeu muito sobre luta pela terra e pouco sobre as tradições da comunidade. Por que? Com disse o líder da comunidade, os mais velhos "não tiveram a preocupação de passar essa história". Miguel ainda sabe alguma coisa porque gostava de ficar ouvindo as conversas dos mais velhos.

O que se sabe ao certo é que, quando da libertação, os ex-escravos da fazenda Santana receberam a posse da terra de boca dos antigos proprietários. Era vontade do antigo dono que a terra ficasse para os negros quando da morte de seu filho, segundo Miguel. O testamento do proprietário foi registrado na igreja e, história comum a outras comunidades, foi perdido em incêndio do cartório, neste caso o de Barra Mansa. Hoje, a associação briga junto ao INCRA pela posse dos 826 hectares que pertenceram à fazenda. Atualmente, a comunidade está restrita aos 3 hectares entorno da capela.

Saí de Santana com a sensação de que, de certa forma, os que queriam apagar a memória da comunidade tinham atingido parcialmente seus objetivos. Insatisfeito com o que consegui, peguei o telefone da Fundação Palmares com o Miguel e liguei para eles para obter um quadro mais amplo dos outros quilombos do estado.

Sempre que falam de quilombo, imagino que eu e a grande maioria das pessoas se lembrem imediatamente de Palmares. Fundado por escravos fugidos nos idos de 1590, o quilombo símbolo da resistência à escravidão conseguiu sobreviver por mais de cem anos. Apesar de destruído em 1695 pelo bandeirante Domingos Jorge Velho e seus homens, grupos de escravos continuaram resistindo na região até os anos de 1710.

As duas principais lideranças conhecidas do quilombo foram Ganga Zumba e Zumbi. O primeiro foi o líder que unificou os mocambos (esconderijos em banto) contra as tentativas de captura e reescravização. Depois, ele aceitou um acordo de paz com a coroa portuguesa e os donos de engenho. Há divergências sobre quem o matou. Alguns autores dizem que ele teria se suicidado por desgosto; outros que teria sido morto por um partidário de Zumbi. De comum, nas duas versões, está o fato de que morreu envenenado.

Mas o Dia Nacional da Consciência Negra, por sua vez, foi escolhido em razão de ser a data da morte seu sobrinho e provável mandante de seu possível assassinato. Ao contrário de Ganga Zumba, que conduzia guerra de guerrilha contra as expedições organizadas pelos donos de engenho e pela coroa portuguesa, Zumbi decidiu resistir. Depois da destruição do principal mocambo - Macacos - ele fugiu. Foi morto após seu esconderijo ter sido delatado por um de seus tenentes, em 20 de novembro de 1695. Sua cabeça foi levada por Domingos Jorge Velho para Recife, onde ficou em exposição até apodrecer.

Atualmente, os dois únicos estados em que o dia 20 novembro é feriado são Alagoas, onde ficava o quilombo, e o Rio de Janeiro. A despeito de na internet haver várias menções ao feriado aprovado pela prefeitura de São Paulo em 2004, foi na cidade do Rio de Janeiro que, pela primeira vez, decidiu-se comemorar a data com a suspensão do trabalho, em 1999.

Contudo, a escolha da data como dia de comemoração da consciência negra começou bem antes, mais exatamente em 1971, em Porto Alegre (RS), a 3,6 mil quilômetros da região ocupada pelo quilombo de Palmares. Membros do movimento negro gaúcho discutiam datas alternativas ao 13 de maio. A razão era que a data da assinatura da Lei Áurea não tinha grande significado para a comunidade.

Na busca de datas alternativas, o poeta e historiador Oliveira Silveira encontrou a data em uma revista da Editora Abril, depois confirmada por um livro português que transcrevia cartas do período em que Zumbi foi morto. Em entrevista para o Portal Afro, o poeta gaúcho disse que a escolha se deveu ao fato de ter constatado "que a passagem mais marcante era o Quilombo dos Palmares". No dia 20 de novembro do mesmo ano, foi realizada a primeira comemoração, com a criação do grupo Palmares. O lugar do encontro não poderia ter nome mais significativo: Clube Marcílio Dias. Em 1978, o Movimento Negro Unificado adotou a data.

Dez anos depois era aprovada a lei que criou a Fundação Cultural Palmares no âmbito do Ministério da Cultura. Entre as missões da fundação está a de identificar, reconhecer, demarcar e dar título de posse para comunidades quilombolas. Bom, diante disso, era uma boa alternativa para continuar minha reportagem.

Liguei para Brasília e falei com a chefe da Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afrobrasileiro, Maria Bernadete Lopes da Silva, e expliquei meu problema. Rápida, ela sugeriu que procurasse a Laura, no Rio de Janeiro. O número que a secretária me deu era DDD 24. Tive a esperança que ela morasse no Médio Paraíba, de preferência em uma das cidades próximas a Dutra. Ledo engano.

O Campinho da Independência fica a 20km de Parati. Das 25 comunidades reconhecidas no estado é a única a ter a titularidade da terra, conseguida em 2002. É lá que mora Laura Maria dos Santos, secretária da Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro - Acquilerj.

Laura explica que nenhum dos atuais quilombos do estado são comunidades de escravos fugidos como Palmares. Na verdade são comunidades de remanescentes de ex-escravos que ficaram na terra após a abolição e que se identificam como quilombolas. Ela explica que o artigo 68 dos Atos das Disposições Transitórias da Constituição assegura a essas comunidades a posse e propriedade da terra que ocupam. O artigo foi regulamento pelo Decretro nº 4.887/2003.

Pergunto sobre a manutenção das tradições no Campinho e outros quilombos e ela disse-me que em uma ou outra comunidade essas tradições estão mais ou menos preservadas. O melhor exemplo, segundo ela, é o quilombo de São José da Serra, em Valença, mas em Bracuí, por exemplo, ainda existem pessoas que sabem dançar o jongo.

Laura fala do livro editado pelo MEC sobre quilombos e sugere que procure Rede de Desenvolvimento Humano - Redeh, responsável pelo desenvolvimento do material distribuído pelo Ministério para as escolas das comunidades quilombolas em todo o Brasil.

Se os quilombos de hoje são na verdade comunidades remanescentes de ex-escravos, alguém pode perguntar-se se não existiram quilombos no estado. Existiram e de dois tipos, seguindo a classificação de Eduardo Silva, autor de As Camélias do Leblon.

Os primeiros eram os de resistência que, a exemplo de Palmares, reuniam escravos fugidos. Talvez o mais famoso seja o Manoel Congo, que na verdade não se concretizou. Perseguidos pela Guarda Nacional, Manoel e parte dos 400 escravos que fugiram sob sua liderança foram presos três dias após a fuga. Ao escapar, os escravos se dividiram em dois grupos que fugiram em direções diferentes para confundir os perseguidores. Preso e julgado, Manoel Congo foi enforcado em setembro de 1839, em Vassouras.

Outro, mais duradouro e menos lembrado entrou para a história como a Hidra de Iguaçu. A "hidra" situava entre os rios Iguaçu e Sarapuí, na Baixada Fluminense. O nome apareceu em carta do Ministro da Justiça, de 1878, para a polícia da província do Rio de Janeiro pedindo que se reprimissem os quilombos da região de Iguaçu para lhes pôr fim, impedindo que se reproduzissem como a hidra de Lerna. A primeira menção ao quilombo é de 1808.

A exemplo de outros quilombos, o de Iguaçu mantinha intercâmbio comercial com a sociedade local, segundo Flávio Gomes dos Santos em Histórias de Quilombolas. As redes de relacionamentos faziam que homens livres protegessem os quilombos da Baixada da ação das forças policiais. Talvez aí esteja o segredo de sua longa sobrevivência.

Eduardo Silva diferencia este tipo de quilombo de outro, que chama abolicionista. Criados com apoio de sociedades que defendiam o fim da escravidão. Vale a pena dar uma olhada no artigo "As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura" para entender com eram essas relações.

Bom, onde andam essas comunidades hoje? Uma pista é dada pela história do Quilombo da Sacopã. Encravado em plena Zona Sul do Rio de Janeiro, no alto da rua Sacopã, seus membros são descendentes de escravos que fugiram de uma fazenda na região de Nova Friburgo e vieram se esconder na corte. Aqui, moraram primeiro no Quilombo da Catacumba, criado pela baronesa Rodrigo de Freitas, que dividiu suas terras com seus ex-escravos. Depois, a área virou a favela da Catacumba, removida para conjuntos habitacionais Cidade de Deus, Vila Kennedy e outros. Os moradores da Sacopã ainda esperam o reconhecimento.

Terça-feira de chuva na cidade do Rio. Uma semana depois de ter começado minha reportagem, esgueiro-me entre grossos pingos de chuva que caem das beiradas dos prédios da rua Álvaro Alvim, na Cinelândia. Estou indo entrevistar o professor Paulo Correa na sede da ONG Rede de Desenvolvimento Humano - Redeh.

Professor de pedagogia, como ele mesmo diz, de várias universidades, Paulo pesquisou junto com a coordenadora da Redeh, Schuma Schumaher, para escrever dois materiais. O primeiro deles é o libreto Quilombos - espaço de resistência de homens e mulheres para uso pelos professores.

O outro, a revista em quadrinhos Quilombos, voltada para as crianças quilombolas. A revistinha é a história de uma professora e seus alunos que viajam para conhecer outros quilombos do estado do Rio.

O projeto surgiu para atender a uma demanda conjunta da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC e da Secretária Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República que se enquadrava na linha "Por uma educação não-discriminatória" da ONG.

Uma vez escolhido pelos órgãos governamentais, Paulo e Schuma deram início à pesquisa que incluiu a ida a cinco quilombos do estado. "Aprendi história pra caramba", disse mais de uma vez Paulo. Mais exatamente, "aquela história que a escola não ensina ou ensina superficialmente, sobretudo a partir de uma ótica eurocêntrica".

Nas visitas, o foco era entrevistar os mais antigos e os mais novos. Os primeiros para conhecer a história do quilombo contada pela própria comunidade, suas tradições, seus costumes. As conversas com os mais novos visavam descobrir o que havia ficado das tradições e histórias da comunidade.

Desses contatos, o que mais chamou a atenção do educador é como a escola é estática, porque a história ensinada é descontinuada, como se ela acabasse nos capítulos. Um exemplo que ele deu seria o de um livro cujo o primeiro capítulo é o descobrimento e o seguinte a vinda da Família Real, como senão tivesse ocorrido nada nesse meio tempo. Ele observa ainda que a tendência a tornar o ensino de história em "decoreba" de datas e fatos acaba desestimulando os alunos e não estimulando a reflexão sobre a relação entre diferentes momentos histórico.

Esse problema foi tratado no livro para os professores. Segundo Paulo, o objetivo do livro é levar os professores a refletirem sobre a história e as versões disseminadas no senso comum, e não oferecer um receituário, um guia de como fazer, como ensinar.

Com isso, o material responde a uma das necessidades identificadas nas entrevistas com os jovens, que disseram que "embora as escolas fossem dentro ou próximas, elas pouco trataram da questão quilombola".

O livro, além de ter uma parte geral sobre a história da escravidão no Brasil e dos cinco quilombos visitados pelos pesquisadores, propõe aos professores atividades em que os alunos pesquisem a história e a cultura de sua comunidade ao perguntar, por exemplo, por onde andam as assombrações.

Estimular esse tipo de atividade é importante. Ao perguntar sobre o ele observou de costumes preservados, Paulo responde-me que o que tem foi consigo a duras penas pelos próprios moradores e a Acquilerj. Ele cita os quilombos que preservaram o jongo, outros uma música chamada fado, que de semelhante com o que se faz em Portugal só tem o nome.

Quem chegou até aqui deve estar lembrado que o líder da Associação de Santana dissera que os mais velhos não tiveram a preocupação em passar a tradição para os mais novos. Na conversa com o Paulo e lembrou que no quilombo da Raia, em Búzios, a dona Uia cuja declaração se encontra no livro para os professores e que transcrevo, em parte, a seguir:

- Tinha constrangimento de dizer que era descendente de africano... É porque falavam que era um pessoal muito sofrido, que era um pessoal escravizado e que o pessoal era muito pobre, era negro e muitos não queriam ter essa descendência, se escondia...Então agora [depois do movimento de reconhecimento dos quilombos] que a gente está começando a levar para eles, p´rá dizer a história, como era...

Bom, se ao sair de Santana tinha ficado com a sensação de que parte da história tinha se perdido, vejo agora que a situação começa a mudar.

28/11/2006

Publicado em 28 de novembro de 2006

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