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Anúncios de alimentos engordativos estão com dias contados

Leonardo Soares Quirino da Silva

Proposta da Anvisa acaba com anúncios de alimentos calóricos para público infanto-juvenil

Preocupados com o aumento no número de brasileiros acima do peso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária colocou em consulta pública uma proposta de Regulamento Técnico sobre a publicidade de alimentos ricos em açúcar, gorduras saturadas, gorduras trans, sódio (sal) e bebidas com baixo valor nutricional.

Para comentar a importância dessa medida, fomos conversar com a professora Inês Rugani Ribeiro de Castro, do Instituto de Nutrição da Uerj. Inês pesquisa a relação entre políticas públicas e o estado nutricional da população, além de ter feito parte da equipe da Prefeitura do Rio que preparou os termos do decreto que regulamentou a venda de alimentos saudáveis nas cantinas das escolas públicas da rede municipal.

Nessa entrevista, ela fala sobre a relevância da proposta da Anvisa e de como proteger as crianças desse tipo de anúncio, discorre sobre as três vertentes das políticas de promoção da alimentação saudável e, por fim, conta a história da implementação de regulamentos voltados para as cantinas escolares no município e no estado do Rio de Janeiro. Para Inês, o mais importante disso tudo é o processo de discussão que essas medidas proporcionam.

Na sua opinião, que resultados poderiam ser alcançados se a proposta de regulamento técnico sobre a publicidade de alimentos ricos em açúcar, gorduras saturadas, gorduras trans, sal e bebidas com baixo valor nutricional fosse implementada na íntegra?

A gente, os militantes da área, estamos muito orgulhosos desse produto. Assim como em outras áreas, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem, por lei, a competência de regulamentar vários assuntos, entre eles o de publicidade de produtos que tenham relação com a saúde. Eles já fizeram algo semelhante com anúncios de medicamentos. O mesmo grupo, agora, está fazendo um trabalho semelhante com alimentos. Esse documento é fruto de um grupo de trabalho intersetorial e que envolvia não só a Anvisa e outros setores do Ministério da Saúde, como a Coordenadoria Geral da

Política de Alimentação e Nutrição, que a gente chama de Cegepan, como também membros da indústria de alimentos, gente de fora do poder público. A ideia era construir um documento que, quando fosse à consulta pública, tivesse já algum nível de consenso sobre ele. Recentemente foi realizado um seminário internacional que discutiu a regulamentação de propaganda de alimentos, organizado pela Anvisa, que conseguiu trazer a Corinna Hawkes (do International Food Policy) e tiveram vários participantes de diversos setores do Brasil, que tomaram conhecimento dessa minuta. A reação da indústria de alimentos e da mídia, que são atingidos diretamente pelo projeto, foi muito tímida para o que a gente esperava. Não sei o quanto eles estavam esperando a publicação de fato, porque ela foi muito recente, saiu no dia 13 de novembro e vai ficar em consulta pública por 60 dias, até o dia 13 de janeiro. Nesse período, as pessoas podem mandar apoios, sugestões, críticas, o que quiserem. Essa é uma prática que a Anvisa tem e em várias outras resoluções a agência procedeu de forma semelhante, o que nós (da área de nutrição) achamos uma coisa supersaudável, porque eles fazem ajustes importantes de acordo com as sugestões das pessoas. Até semana passada não havia notícia de nenhuma grande reação formal de nenhum dos setores diretamente atingidos e estamos na expectativa de qual será a reação. Esse documento busca dar forma a uma diretriz da Organização Mundial da Saúde de que o poder público tem que ocupar seu espaço no que diz respeito à regulamentação de publicidade para o público infantil. Temos que lembrar que esse público não tem a capacidade de discernimento totalmente formada. Isso é algo que as próprias empresas levam em consideração. Mega empresas multinacionais, como a Pepsico e a Kraft, já assumiram de antemão que não fazem propaganda dirigida para menores de 12 anos. Podem fazer para os pais deles. Mas o que se vê hoje é que o público infantil pauta as compras de supermercado. Ele não é um consumidor do que o pai e a mãe possam indicar. Ele decide a compra. Ele influencia os pais. Dependendo de como os pais interagem, eles não conseguem, muitas vezes, pôr limites. O público infantil, influenciado pela propaganda, pauta essa compra. Temos que observar, ainda, que a limitação à publicidade de alimentos, sugerida na proposta de regulamento técnico, não atinge todos os alimentos. Ela visa a um grupo de alimentos que têm açúcar, sal, gordura saturada, gordura trans, que cobre a grande maioria dos alimentos industrializados dirigidos para o público infantil. Nos alimentos diferenciados, por exemplo, alimentos in natura - como frutas e hortaliças que foram congeladas, picadas, que tem algum nível de industrialização - essa legislação não se aplica. Além da publicidade desses produtos, a proposta de regulamentação tem uma seção específica para o público infantil, que trata de brindes, promoções, mensagens subliminares, apoio a projetos educativos patrocinados por empresas que vendem alimentos não saudáveis etc. O que se trabalha nessa área é que o alimento é um aspecto e que existem outros objetos de consumo do público infantil, como brinquedos, que embora consideremos muitas vezes nefastos para as crianças, no campo da saúde existe a preocupação concreta de que o consumo desses alimentos contribui para o aumento da obesidade. Então, isso é uma agenda da saúde. Isso é intransferível.

Mas será que essa medida é realmente necessária? Os publicitários criaram o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) justamente para evitar que o governo criasse uma lei censurando previamente a atividade?

A ideia é fazer o mundo perceber que a permissividade da publicidade para a criança era tamanha que precisava ser regulamentada. Alguns países, como os escandinavos, não têm mais propaganda voltada para o público infantil em hora nenhuma. Têm alguns países em que a publicidade é voltada para o público infantil, mas em horários pré-determinados. Essa coisa promíscua no Brasil e em muitos outros países. Além disso, também há estudos de psicólogos - trabalhando ou não para as empresas - que mostram que uma criança pequena não consegue discernir entre o que é publicidade e o que é notícia, o que é verdade e o que não é. Independente dessa proposta de regulamento, o que se tem discutido é que os mecanismos de acesso à criança são mecanismos muito destruidores da autoestima. São coisas do tipo: você junta a imagem do produto à possibilidade de transformar o consumidor em um ser melhor que os outros, que não consomem. Um exemplo seria um anúncio de vestido em que a menina que usa vira uma princesa ou um menino que quando come um produto fica mais inteligente. Determinadas abordagens da propaganda já estão regulamentadas pelo Conar, porém, no nosso entendimento, as medidas que eles tomaram foram insuficientes. Não atacam centralmente o problema. Por isso, consideramos, nós da área de saúde, que era necessário um documento mais contundente e de maior abrangência , que determine não só o cerceamento da propaganda, mas a veiculação de alerta de que aquele alimento, se consumido em excesso, cria problemas. Um argumento que se coloca contra esse tipo de medida é que o alimento não é em si um mal, depende do quando você consome, de como é a sua dieta. O que adoece não é o alimento, é a sua dieta. Contudo, em nosso entendimento, isso é um sofisma. Isso poderia fazer sentido em outro momento histórico, quando a indústria de alimentos não tinha a participação que tem hoje em nosso dia-a-dia. A quantidade de vezes em que a pessoa está exposta à publicidade ou ao acesso ao alimento é infinitamente superior ao que ela tinha. Se você pensar onde seu avô comprava, o quanto ele tinha de oferta de comida e o quanto você tem no mesmo lugar, hoje, a oferta é muito maior. Tem um documento, não me lembro de qual empresa, acho que da Coca-Cola, que estabelecia que a meta da empresa é que a pessoa não ande mais do que 100m sem encontrar um posto de venda. Então, enquanto não tiver de 100m em 100m não atingiu a meta. Isso para mostrar o nível de oferta.

Quais são os desdobramentos para a população dessa oferta de alimentos?

Costumamos dizer é que o perfil epidemiológico, hoje, mundial - no qual o Brasil se encaixa - é um ambiente obesogênico, é um ambiente onde, a não ser que você seja muito controlado e lidando com o ambiente de maneira muito consciente, você é convidado a ganhar peso, seja pela alimentação, seja pela falta de atividade física. Você é convidado a consumir alimentos e é convidado a ficar parado. Essas duas coisas, ao mesmo tempo, no caso de países como o nosso, estão imprimindo crescimento vertiginoso do problema da obesidade. Tem que se observar, também, que há muitas crianças que não estão obesas, mas que estão com hábitos não saudáveis. Elas podem não ficar, podem vir a ficar, mas podem, ainda, desenvolver outras doenças crônicas ligadas à alimentação, como dislipidemias [aumento anormal da taxa de lipídeos - colesterol e triglicerídeos - no sangue], hipertensão, diabetes, câncer e outras Doenças e Agravos Não-Transmissíveis (Dants). Cerca de 70% dessas doenças são causas por alimentação e hábitos inadequados. Estima-se que 30% dos cânceres são causados pela alimentação. Para você ter uma ideia, hoje temos, cada vez mais cedo, pessoas que têm diabetes. Existem dois tipos de diabetes. O tipo um, que é genético, e o tipo dois, que tem a ver com o envelhecimento e com o comportamento. O diabete do tipo dois está cada vez mais precoce. Por que? Porque o ambiente e o comportamento delas favorecem isso. Com pessoas que reagem dizendo que isso aqui é uma medida extremada, exagerada, que não cabe ao poder público fazer isso, dizemos - cabe sim, porque o problema está crescendo. No caso do Brasil comparado aos EUA, por exemplo, não temos, graças a Deus, o quadro dramático que eles, o México ou Chile têm. No México, hoje, por exemplo, cerca de 70% das pessoas apresentam excesso de peso. Eles já passaram os EUA. O Chile também está com estatísticas assustadoras. O Brasil está melhor do que isso, mas é preciso agir. É muito melhor a gente agir de forma precoce, ainda mais porque o tratamento da obesidade tem eficácia baixa. O número de pessoas que consegue controlar o peso depois de engordar é muito pequeno. Então, tratar a obesidade é complexo, caro e nem sempre efetivo. Essa não pode ser a solução para o sistema de saúde pública.

Propostas como essa e a da Cantina Saudável, da Prefeitura do Rio, não vão contra o princípio de se produzir referenciais positivos que está presente no Guia alimentar para a população brasileira?

Quando as pessoas falam em promoção da alimentação saudável, geralmente pensam em práticas educativas ou campanhas de marketing social a favor de frutas e legumes. Isso faz parte da promoção da alimentação saudável, também, dentro da vertente de incentivo. Contudo, a promoção da saúde e, consequentemente, da alimentação saudável, tem três vertentes. Essa primeira, recapitulando, de incentivo, visa aumentar o nível de informação e de motivação das pessoas para adotarem hábitos saudáveis. Só que informação é bom, mas não é suficiente. Não basta estar informado, é preciso estar motivado. Então há a segunda vertente, que é de apoio. É aquela que facilita a escolha saudável e busca oferecer no ambiente situações que estimulem a pessoa a fazer uma escolha saudável. Por que? Para que a escolha saudável seja uma escolha fácil e existente, possível. Por exemplo, se a cantina da escola só oferece alimento não saudável, mesmo que a criança queira consumir alimento saudável, não tem escolha. Então, um passo é o governo oferecer alimentação para ela, outro é ter alimento saudável na cantina para ela escolher. No caso da amamentação, por exemplo, que é uma prática de alimentação saudável, a mãe deve ter condições para isso. A lei de licença maternidade é um exemplo de ação de apoio que facilita que a mulher que esteja motivada tenha tempo para amamentar. A terceira vertente é a vertente de proteção, onde se encaixam todas as medidas de regulação. Essa vertente visa reduzir o nível de exposição do indivíduo ou de grupos populacionais a alimentos não-saudáveis. No caso da cantina escolar, além de você ter o alimento saudável que o aluno possa comprar, tem que evitar que alguns estejam ali presentes (aqeiles que o aluno escolhe só pela propaganda). Assim, não basta ter o suco natural. Tem que ter o suco e não ter o refrigerante. Aí, você está fazendo um ambiente que protege e facilita. Quando se tem, nesse mesmo ambiente - a escola -, uma ação educativa que promove o consumo de alimentos saudáveis, você tem o exercício das três vertentes.

Você foi da equipe de nutricionistas da Prefeitura do Rio de Janeiro que em 2002, preparou a proposta de decreto que resultou no projeto Cantina Saudável. Você pode falar sobre essa experiência, que tipos de resistências foram encontradas? Qual o balanço dessa iniciativa hoje?

Antes de falarmos desse decreto é preciso dizer que, na Prefeitura do Rio, existem várias ações, ações inclusive históricas, para o incentivo e o apoio da alimentação saudável. Em relação ao incentivo existem várias ações que são desenvolvidos com ajuda da área de nutrição e da área de saúde escolar da Secretária Municipal de Saúde. Vou lhe dar três exemplos. Um é a Semana de Alimentação Escolar que, uma vez por ano, convida as escolas para trabalhar um determinado tema. Esse evento foi instituído na década de 1950, quando o Programa de Alimentação Escolar foi criado. Quando o programa foi municipalizado, os municípios tinham que escolher quando iam instituir suas semanas. A cidade do Rio manteve na terceira semana de maio. A cada ano elegemos um tema. A semana não é um momento que promova mudança radical de hábitos de alimentação, é um momento de semeadura de algum assunto. E é aquela história, quem está mais mobilizado aproveita melhor. O projeto funciona assim: escolhe-se um tema de alimentação saudável, depois se prepara texto com sugestões de atividades que, em seguida, é encaminhado para todas as escolas. Algumas dessas unidades pedem a presença de um profissional de nutrição da Secretaria para participar de algum evento. A grande maioria, contudo, com base naquelas atividades sugeridas pela Secretaria Municipal de Saúde, vai identificar o que combina mais com o que está trabalhando no momento, o que é propício, e inventa outras atividades. Coisas legais que estão ocorrendo nos últimos anos: uma delas é o apoio da MULTIRIO, o pessoal é super simpático e receptivo com as atividades promovidas pela área de nutrição. Eles, por exemplo, ajudam a preparar o ânimo dos professores para essa semana nos programas de entrevistas, no site, na revista que eles mandam para os professores. Durante a semana, dão notícias direto. Assim, a MULTIRIO é uma referência de mídia. A outra coisa legal é a adesão progressiva das escolas particulares da cidade. Esse evento é dirigido às escolas públicas, mas, a partir de 2005, começamos a convidar as particulares por meio do sindicato de donos de escolas e eles estão aderindo. Outra coisa legal, que também começou há dois anos, é pesquisar o que aconteceu em cada escola. Para isso, mandamos um formulário para cada uma. O preenchimento não é de 100%, mas temos uma boa adesão. Com isso, ficamos com um retrato legítimo do que aconteceu com fotos, músicas, CDs, com mil coisas que eles produzem. É uma produção intensíssima. Temos conseguido espaços para mostrar para a rede de educação o que aconteceu. Assim, gera-se um efeito demonstração e, no ano seguinte, aquela escola que ficou com dor de cotovelo desenvolve algo melhor porque achou o máximo aquela vizinha aparecer lá na foto. Outra coisa que acontece é a escola não mandar o questionário, mas enviar os trabalhos que foram produzidos. Depois da semana, nossa sala fica cheia de material. Esse é um exemplo de projeto de incentivo. O outro projeto é o Com gosto de saúde, que, desde 2000, visa tornar disponível para o cotidiano da escola materiais que os professores possam incluir no currículo, mesclando às matérias básicas do currículo temas de alimentação saudável, dentro do espírito das disciplinas transversais. Na nossa parte do site da Secretaria Municipal de Saúde existe material que pode ser baixado, onde também se encontra o material sobre a Semana de Alimentação Escolar. Parte do material são atividades prontas e outras são sugestões de atividade. Um terceiro projeto é o Culinária, saúde e prazer voltado especificamente para professores, merendeiras e profissionais de saúde ligados à rede básica de saúde. Esse projeto visa a promoção da alimentação saudável e trabalha a culinária como eixo estruturante das atividades. Atualmente estamos na segunda fase do projeto. Na primeira fase, criamos atividades vivenciais e grupos focais para discutir esse assunto - culinária, saúde e prazer. Os grupos serviam para refletir sobre o tema e avaliar o projeto. Na segunda fase, estamos pensando nas ferramentas que devemos desenvolver para que esses professores se sintam potencializados para atuarem como agentes de mudança na sua realidade. A razão disso é que o retorno que recebemos dos participantes foi: "adoramos, ficamos super mobilizados, já estamos fazendo coisas na nossa realidade, mas faltam ferramentas". Agora montamos um grupo com 70 pessoas das redes de saúde e de educação, entre elas professores que estão lá na ponta com os alunos, para eles desenvolverem com a gente quais as ferramentas que eles precisam. Esses são exemplos bem concretos de iniciativas de incentivo.

Interessante que essas atividades estão no espírito da Política de Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), mas o texto da lei não fala nada sobre apoio ou proteção. Como, então, é possível esse tipo de atividade?

Você tem que levar em consideração que a PNAN foi discutida e aprovada em 1999 e revista em 2003. De lá para cá muita coisa avançou no campo da regulamentação, nesse eixo de proteção. Coisas que eram desejáveis ainda não eram políticas em 1999. O que percebemos é que, em linhas gerais, a PNAN anteviu várias coisas. Por isso tem vitalidade para abarcar os novos temas. No congresso latino-americano, foi comentado que está na hora de se fazer um novo mergulho na Política para complementar. Quando olho, acho que ela cobre tudo. Ela foi gestada de maneira muito madura e conseguiu incluir novidades. Por exemplo, a Estratégia Global de Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde foi publicada muito depois de 1999 e várias coisas que estavam em nossa política já estavam em sintonia com a estratégia global. Assim, fomos um dos países que deram subsídios para a formulação da Estratégia na Organização Mundial de Saúde. Uma delegação desse órgão da ONU esteve no Ministério da Saúde, na Prefeitura do Rio e em outros locais para saber o que estávamos fazendo e recolher dados para propor o documento. Isso porque o Brasil tem se antecipado em termos de saúde pública.

Bom, e na prática, como fica a aplicação da PNAN?

O Ministério da Saúde criou uma rede de acompanhamento para a implementação da política. O ministério repassa recursos para os gestores estaduais de nutrição e para centros colaboradores, que são instituições de pesquisa que devem apoiar os estados e o ministério na implementação da PNAN. Assim, os governos estaduais conseguem oferecer treinamentos para os municípios, conseguem produzir material educativo para os professores em consonância com a política. Os centros colaboradores regionais ajudam na parte de treinamento, de capacitação. Esses centros- Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - realizam pesquisas encomendadas pelo ministério para ajudar na implementação da pesquisa. O modelo que temos no Brasil é singular. Quando contamos nos congressos como funciona, os estrangeiros ficam surpresos. E aí você vai me perguntar: como isso chega ao cidadão? Bem, parte dele é aplicado via Sistema Único de Saúde (SUS), com todos os problemas que tem, via os agentes de saúde do Programa de Saúde da Família (PSF), por exemplo. As ações são difundidas pela rede saúde. Tem uma vertente da lei, que é a de vigilância e de segurança nutricional, que acompanha pessoas em risco nutricional como crianças, idosos e mulheres grávidas. Contudo, o SUS não é o único caminho. A política criou interfaces, relações, com outros ministérios como os da Agricultura, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, do Desenvolvimento Agrário e da Educação. Por um lado, esse tipo de coisa dá muito trabalho porque temos uma cultura de ação vertical programática e não de ação intersetorial. Mas, por outro lado, acho que é um grande pontencializador de ações. Hoje, o grupo de Alimentação Saudável do Ministério da Saúde senta-se com o grupo do Bolsa Família e da Alimentação Escolar para discutir o tema. Recentemente saiu uma portaria que estabelece diretrizes para a Promoção da Alimentação Saudável nas Escolas onde está a regulamentação de cantinas. Temos que observar que quanto às ações de estímulo, ninguém tem nada contra, todo mundo acha bom fazer. Nas de proteção, contudo, geralmente há conflito de interesses. Por isso, neste caso, demora-se mais a chegar a um consenso. E também tem a questão de não se fazer lei por fazer. A lei deve ser aplicável. Neste momento está se discutindo exatamente isso sobre as cantinas escolares.

Quando vocês fizeram essa ação das cantinas escolares, no Rio, foi o primeiro tipo de ação desse tipo no Brasil?

Não. A primeira lei foi de Florianópolis. A nossa foi a terceira. Aqui, começou com um decreto do prefeito para regulamentar os produtos vendidos nas cantinas das escolas públicas. Em 2002, no Instituto de Nutrição Annes Dias (Inad), o instituto de nutrição da Secretaria Municipal de Saúde, tínhamos acabado de fazer um senso para saber como as cantinas funcionavam e o que era vendido. Quando estávamos concluindo o trabalho do censo, por outras razões, o prefeito César Maia fez uma visita à Inglaterra, onde conheceu uma cidade na qual as cantinas eram regulamentadas. Na volta, ele pediu um decreto. E nós fizemos um congresso, sugerimos fazer uma coisa mais democrática e, hoje, acho que ele estava certíssimo, porque ele falou assim: "Eu acho que estou me omitindo se não regulamentar as cantinas das escolas públicas municipais, porque essas escolas estão sob minha alçada. Esperar que as pessoas adiram lentamente vai demorar muito. Nós vamos fazer o contrário. Vamos criar polêmica, as pessoas vão discutir o assunto e a gente vê o que vai acontecer". Antes do decreto, 76% das escolas tinham alguma forma de venda de alimentos. Depois, as cantinas fecharam, em regra, porque o decreto municipal é super, hiper restritivo porque tínhamos dois entendimentos. O primeiro era de que havia um programa de alimentação escolar que fornece alimentação gratuita, então a necessidade da cantina era menor. Outro era que as cantinas não eram atividades regularizadas. Por isso, sua infraestrutura era precária. Para trabalhar com alimento mais saudável pressupõem-se a manipulação. E aí você atende um lado, que é o nutricional, e piora um outro, que é o sanitário. Então foi uma medida muito drástica e a regra foi as cantinas fecharem.

Como o juiz Ciro Darlan entrou nessa discussão?

Ele entendia que a alimentação saudável era de sua competência porque no Estatuto da Criança e do Adolescente está colocada a questão da saúde e que a alimentação faz parte dela. Inspirado pelo decreto do prefeito, o então juiz da Primeira Vara da Infância e da Juventude, Ciro Darlan, procurou o então secretário municipal de Saúde, Ronaldo Cezar Coelho, para ter assessoria técnica, para fazer uma portaria que cobrisse escolas públicas e particulares. Foi montado um grupo de trabalho que incluía a Primeira Vara, a Prefeitura e o Conselho Regional de Nutrição para formular uma portaria. Esse processo foi mais amplo que o da Prefeitura. Fizemos algumas assembleias chamando donos das escolas, representantes dos pais e donos de cantinas, porque estava todo mundo muito assustado com essa medida. Nesse processo, discutimos as listas dos alimentos. Chegamos a uma versão dessa lista e a portaria foi publicada. Por seis meses, o juiz optou que seus fiscais iriam às escolas não para punir, mas para orientar. A escola que não estivesse adequada recebia uma notificação. Os fiscais já iam as escolas por outros motivos e o juiz achou que eles também deveriam olhar esse aspecto. Outro desdobramento dessa medida foi que montamos um curso de alimentação saudável dirigido aos donos de cantinas. Eles podiam dizer "tudo bem, não quero envenenar as crianças, mas agora, o que faço?". Uns diziam que não queriam nem saber - vendo o que a criança quiser - e outros diziam que eram pais e não sabiam que esse negócio era tão ruim. Os cantineiros que fizeram o curso adoraram e deram mil ideias, mil receitas para aprimorar. Com isso, abriu-se mais um espaço de extensão universitária, mais um espaço para a associação dos nutricionistas e o conselho.

Mas a portaria do juiz foi contestada na Justiça...

O que se sabia na época e se comprovou depois é que poderia haver um questionamento da constitucionalidade do ato na Justiça. Tanto o decreto do prefeito quanto essa portaria foram alvos de questionamento junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) entrou com ação contra a Prefeitura alegando que a portaria era inconstitucional porque o governo municipal estava legislando e sua função era executar e não legislar. Essa ação não entrava no mérito da portaria, mas da competência administrativa do agente para promulgá-la. A Abia perdeu no TJ e recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça, onde perdeu também. O que o prefeito alegou era que o objetivo dele era proteger os clientes da rede municipal e que isso era de sua competência. Com isso, temos um precedente jurídico fundamental. No caso do juiz da Primeira Vara, isso não aconteceu. O TJ foi pela inconstitucionalidade da medida. Quando isso aconteceu o documento do juiz já tinha uns 12 meses de vigência. Com isso, muitas escolas voltaram a funcionar como antes, mas muitas outras mantiveram o sistema e o usaram como um diferencial, "se você quer que seu filho tenha uma alimentação saudável, venha para esta escola". Os donos de escolas perceberam que, com o tempo, as que não estavam enquadradas é que seriam as esquisitas. Mas a discussão não acaba aí. No início de 2005 foi sancionada a lei do deputado Roberto Dinamite que regulamenta a venda de alimentos em todas as cantinas escolares do estado - públicas ou particulares. Por um lado, essa lei era tudo o que queríamos, porque havia o argumento de que a medida não tinha vindo do Legislativo. Agora era lei e estadual. Por outro lado, o teor da lei - que foi estudada pela professora Luciana Azevedo Maldonado, do Instituto de Nutrição da Uerj - é que da forma como está ela tem grandes chances de não "pegar" por ser super restritiva. A parte técnica da lei é praticamente uma cópia do decreto da Prefeitura, só que ela também pretende atingir as escolas particulares que, em tese, não poderiam manipular alimentos. Daí, não tem como fazer um suco, uma salada de frutas. O deputado deve ter sido assessorado por alguém da Comissão de Saúde que colocou essa parte e não procurou nos ouvir e nós também não sabíamos da iniciativa. Logo que a lei saiu fomos procurá-lo para sugerir modificações, que ele aceitou. Por causa dessa lei, também estamos negociando com o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado do Rio de Janeiro (SinepeRio). Como nós, o sindicato procurou o deputado após a promulgação da lei para negociar modificações.

Dessa discussão sobre a regulamentação das cantinas, o que você achou mais importante?

O processo. Quando o César Maia publicou o decreto foi taxado de maluco. As pessoas diziam "esse cara está querendo aparecer". Quando o Roberto Dinamite conseguiu que o projeto dele fosse aprovado, ninguém falava mais isso. E aconteceu que essa lei saiu um mês depois da pesquisa sobre orçamentos familiares que diziam que tinham muitos obesos e que falava do aumento no consumo de refrigerantes, de biscoitos. Então as pessoas ficaram assim "esse assunto é um assunto importante mesmo, não é maluquice". Isso é uma coisa que não podemos perder de vista. Levaremos muito tempo, por isso temos que começar logo. E esse é o espírito do grupo de trabalho. Podemos saber que essa batalha da proposta de regulamentação da publicidade de alimentos não-saudáveis pode ser muito mais estratégica em termos gerais, mas se o mais fácil e o que posso fazer são as cantinas, então vamos encarar esta. Então, a mídia espontânea - jornal, debate em rádio - fez com que o assunto entrasse na pauta. A gente conseguiu conversar com o Sinepe sobre isso? Se não houvesse uma portaria em questão, uma medida legal, o sindicato patronal não ia querer discutir esse assunto. Ele tem que sentar e se posicionar. O processo de implementação é um processo construtor de massa crítica sobre o assunto e acho que, muitas vezes, a gente desqualifica o processo.

O que você acha da lei que proíbe as cantinas escolares de vender doces e frituras? Participe!

11/12/2006

Publicado em 12 de dezembro de 2006

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