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Descortinando um novo mundo
Rosemary dos Santos
Há muito tempo que eu desconfiava. O mundo não terminava onde céus e montanhas se encontravam. A extensão do meu olhar não podia determinar a exata dimensão das coisas. Existia algo mais, existia o desconhecido, existia o lugar do sol se aconchegar, enquanto a noite se fazia. Existia um abrigo para a lua enquanto era dia. E meu coração de professora afogava-se de esperança.
Sim, existia algo mais. Existia o noturno. Os Jovens e Adultos. Sua sabedoria popular. Seu Severino, o pedreiro, Marinalva, a costureira, Nelson, o mecânico e a vontade e o desejo de aprender e continuar. Os dedos trêmulos no teclado de quem não teve a oportunidade de ser e viver cidadania.
Logo eu que não era internauta, cibernética, nem tão pouco astronauta, sem nave, sem barco, sem asa, acreditei nas possibilidades, na ousadia. Afinal, sou somente professora que aprendi a aprender. Teimosia.
Então um dia eu trouxe meus alunos da EJA à tela do computador para decifrar as letras e o mundo, o caminho, o conhecimento, a descoberta, a internet e o navegador. E a palavra-imagem se mostrou como caminho poderoso para encurtar distâncias, alcançar onde só a fantasia suspeitava, permitir silêncios e diálogos e derrubar muros e preconceitos.
Com a Internet meus alunos ultrapassaram as linhas do horizonte e o meu coração de professora transbordou de alegria e ansiedade. Ao clicar num link eles dobraram uma esquina, escalaram uma montanha, transpuseram uma maré.
Ao passar uma página eles frequentaram o fundo dos oceanos, transpiraram em ânsias para em seguida vagarem pelos cantos do Brasil e fizeram-se hóspedes de outros corações.
Pelo computador, meus alunos de 30, 40 e até 70 anos investiram em sua pátria, percorreram suas entranhas, refletiram seus males, conheceram sua miséria, provaram da sua família, beberam da sua cidade, temperaram seu bairro, mudaram a escola e a cada um de nós. Enquanto pacientemente degustavam dos seus desejos e limites na alfabetização da sua vida.
Assim, meu trabalho com a EJA passou a ser o meu porto, a minha porta, o meu cais, as minhas descobertas. O desejo de fazer algo, mudar a realidade daqueles jovens, senhores e senhoras, fez-me ver o ofício de mestre como filosofia de vida, pois através deles, eu soube da História e criei os seus avessos, soube dos homens, seus disfarces, seus medos, suas derrotas, vitórias e sua falta de oportunidades na vida. Por eles eu soube de cidadania, fome, velhice, simplicidade e amor, tudo pela tela do computador.
Soube das várias faces da política, do poder e dos outros tantos lugares para se olhar. Soube do Gênesis e do Apocalipse com as senhoras evangélicas, dos preços e do custo de vida, nas conversas longas antes da aula começar. Aprofundei-me em Paulo Freire e em cidadania e nas coisas mais simples que envolvem alguém que nunca teve oportunidades, mas que são tão sábias.
Com a Internet, meus alunos da EJA souberam das várias facetas do imenso Brasil, sua linguagem, geografia, sua história, sua cultura, seu português brasileiro, variado, indígena, africano, brejeiro. Lá, eles leram novos testamentos de percurso, novas possibilidades e aventuras, um jeito novo de acreditar, construir, sonhar. Eu desconfiava. Agora tenho certeza: é possível transformar aprendizagem significativa em cidadania, quando acreditamos que podemos.
Publicado em 12/12/2006
Publicado em 12 de dezembro de 2006
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