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A ficção do cotidiano

Ieda Magri

João Gilberto Noll, gaúcho de Porto Alegre, escritor do mundo, lançou seu primeiro livro em 1980, O cego e a dançarina. A partir daí, não parou de escrever em jornais e de publicar seus livros: A Fúria do corpo (1981); Bandoleiros (1985); Rastros do verão (1986); Hotel atlântico (1989); O quieto animal da esquina (1991); Harmada (1993); A céu aberto (1996); Canoas e marolas (1999); Berkeley em Bellagio (2002); Lorde (2004); A máquina de ser (2006). Teve a obra reunida em volume único pela Companhia das letras em 1997 e publicou também Mínimos múltiplos comuns, em 2003, reunião de contos curtos publicados na Folha de São Paulo.

O que me impulsiona a indicá-lo para leitura é o fato de que seus romances estão repletos de personagens que assumem uma atitude de deserção do mundo: A céu aberto trata do tema da deserção em si. O personagem, a propósito de salvar o irmão enfermo, sai em busca do pai num campo de batalha e ali se torna uma espécie de refém, soldado que não pediu para sê-lo e de onde, mais tarde acaba por fugir; já Canoas e marolas é a narrativa de um homem depauperado, consciente de sua condição de anonimato e que, através da contemplação e do pensamento, e não da ação, se debate contra o encarceramento de uma promessa de salvação da modernidade pelo progresso. Inerte, ele se recusa a se inscrever nas leis do tempo do consumo e do lucro.  Recusa-se a viver no seu momento histórico, pleno de descrença. 

Não estamos, nós também, os leitores de Noll, vivendo, hoje, esta vontade concreta de nos entregarmos à apatia? Não queremos, como o protagonista de Bandoleiros, "sair da jogada"?

Tal qual no mito de Perseu, em que este sai em busca da cabeça da Medusa para salvar a mãe das garras do rei Polidectes, os personagens de Noll parecem buscar alguma salvação em suas perambulações pelo mundo.  Mas, enquanto Perseu, com suas sandálias aladas, e apoiado sobre uma nuvem e o vento mira a Medusa através do reflexo do seu escudo e assim consegue decepar-lhe a cabeça, os personagens de Noll, ao contrário de Perseu, não conseguem vencer a grande luta com a Medusa: petrificam-se ao receber as imagens do mundo.  Essa imagem de um herói condenado que luta durante boa parte da narrativa e revela-se sem ação ao final dela, aparece em quase toda sua obra. E, enquanto a lemos, somos co-heróis ou, para diminuir o peso da implicação, como que testemunhas oculares de um herói que diante de um peso/mundo maior, imenso mesmo, o da razão, sucumbe, desertando da luta ou virando estátua, imagem concreta do mito. Estaríamos, nós também, condenados a sucumbir na nossa luta diária por um mundo melhor?

Na nossa própria viagem e luta, a da leitura, somos levados, então, a rever nossas crenças e a pensar nas saídas caseiras para a "sinuca de bico" em que nos encontramos.  Nos identificamos com o herói que vê uma realidade trágica e que, diante de um horizonte sombrio, em Canoas e Marolas e em Hotel Atlântico, por exemplo, fica paralisado sem nos dar nenhuma pista de para onde correr, de o que fazer, como se estivesse dizendo: não há saída a não ser deixar-se levar até a morte. Mas essa é uma saída muito dura para um homem que não é o do papel e ficamos dias remoendo a narrativa com uma pergunta: o que fazer? Em Berkeley em Bellagio e em Lorde, romances mais recentes de Noll, o protagonista descobre a esperança num gesto de afeto e de troca capaz de minimizar a tragédia pessoal diante da tragédia maior, a do sistema.

Parece-me ser essa a grande luta.

Publicado em 19/12/2006

Publicado em 19 de dezembro de 2006

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