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Abrindo a "caixa preta" do poder judiciário
Karla Hansen
Recentemente, os jornais noticiaram a prisão de uma empregada doméstica por ter roubado um pote de manteiga de uma pequena mercearia em São Paulo. Sabendo, nem que seja por ouvir dizer, das condições de nossas delegacias, casas de custódia, penitenciárias e tais, para onde são levadas pessoas acusadas de terem cometido crimes, a notícia ganhou ares de absurdo. Afinal, a mesma imprensa tem publicado casos de roubo, em muito maior escala, que ficam totalmente impunes, só porque acontecem na esfera do poder. Aí, nos perguntamos, que justiça é essa?
Justiça", o filme de estreia de Maria Augusta Ramos, pretende responder a esta pergunta. Ou pelo menos, mostrar uma realidade "invisível" para muitos brasileiros, e deixar as conclusões por nossa conta.
Através de sua câmera, ela nos leva a observar, de forma isenta - quase como um cientista que examina o comportamento de suas cobaias, sem fazer qualquer julgamento -, o poder judiciário no Rio de Janeiro. "Justiça" ficou pouco tempo em cartaz e não foi nenhum sucesso de bilheteria. Mas trata-se de uma peça fundamental para entendermos o que se passa no interior dessa verdadeira "caixa preta" que é o poder judiciário no Brasil, e em particular, a justiça penal.
O documentário acompanha casos tão ou mais absurdos que o da moça presa por ter roubado um pote de manteiga. Já na cena inicial, um jovem, numa cadeira de rodas, é levado a uma sala para audiência com o juiz, que lê o processo. O rapaz foi acusado de ter participado de um assalto a uma casa, num dia de carnaval, assalto este que obrigou os assaltantes a pular um muro e correr da polícia. Sem se dar conta do estado físico do réu, o juiz encaminha o processo, fazendo-lhe perguntas e questionando a versão dos fatos, com base nas informações do processo. O rapaz ainda pede para ser transferido da cela que divide com mais 79 homens para outra em que possa ter assistência médica ou apenas tomar banho e "fazer suas necessidades", sem precisar se arrastar pela cela. Para isso, o magistrado diz que terá de conseguir, por intermédio da defensora pública, um atestado médico. É incrível, mas até esse momento, o magistrado não havia percebido o óbvio - o réu é deficiente físico, não pode andar -, e ainda assim, ele prossegue com os trâmites normais do processo, indiferente, sem qualquer surpresa, ou alívio de pena para o acusado.
O filme poderia acabar nessa primeira cena, tal a riqueza de informações que ela apresenta, extremamente reveladoras de um sistema que está longe, muito longe de promover a justiça. A própria configuração física do espaço é um exemplo evidente da brutal verticalidade do sistema. O juiz fica no alto, atrás de uma mesa, e, o réu, sentado numa pequena cadeira, em baixo. Também é notável o discurso impessoal, protocolar do magistrado, ignorando o fato de estar diante de uma pessoa, dotada de sua singular subjetividade. É apenas mais um caso, mais um réu (mulato, pobre, de baixa ou sem escolaridade), mais um processo. O rapaz, por sua vez, mesmo sabendo da total impossibilidade de ter cometido o crime pelo qual é acusado, comporta-se de forma resignada e ainda pede, com extrema humildade, um tratamento menos vil a sua condição.
Para revelar outros aspectos do sistema judiciário, o documentário enfoca o cotidiano no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com suas rotinas, seus ritos, destacando alguns de seus personagens - dois juízes, uma defensora púbica, dois acusados, enfocando, em especial, um rapaz de 23 anos, preso por roubo de carro, sua mãe e sua mulher, que está grávida.
De outro lado, o filme entra no sistema penal propriamente dito, com suas celas superlotadas, por uma esmagadora maioria de jovens, pretos, ou quase pretos, ou quase brancos (como já disseram Caetano Veloso e Gilberto Gil, na canção "Haiti"), todos pobres, como já mostrado em filmes como "Carandiru", a diferença é que em Justiça, a câmera não tem qualquer filtro, nem os personagens são maquiados. É assustador pensar, ainda, que esse sistema pretende "recuperar" pessoas para o convívio social, colocando-as nesses espaços imundos, em que mal se pode respirar, e onde os jovens passam o dia inteiro sem ter qualquer atividade.
A justiça que o documentário mostra é um dos reflexos, talvez o mais cruel, de uma sociedade desigual, excludente e estratificada. É a justiça que pesa sobre a população mais pobre, destituída de direitos básicos, em todos os sentidos, marginalizada. O filme é o retrato de um país que, nas suas profundas raízes culturais, ainda não se libertou do sistema escravocrata.
Diferente de como foi apresentado nas telas do cinema, o DVD do documentário traz, além do filme, um segundo disco com material gravado das audiências e depoimentos extras, de personagens e da própria diretora, Maria Augusta Ramos e entrevistas com especialistas, como o antropólogo e ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, Luís Eduardo Soares, da deputada federal e juíza Denise Frossard e da socióloga e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, Julita Lemgruber, além de um debate promovido pelo jornal Folha de S. Paulo.
Ficha técnica do filme:
- Título: Justiça - O filme
- Direção: Maria Augusta Ramos
- Gênero: Documentário
- Produção: Selfmade Filmes, NPS e Limite Produções
Publicado em 21/3/2006
Publicado em 21 de março de 2006
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