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Creio porque absurdo
Pablo Capistrano
Amanheci o dia procurando uma edição do livro de Edgar Allan Poe, "Histórias Extraordinárias". Tudo porque queria lembrar o nome de um conto. A história é a de um assassino que, perseguido pelo fantasma de sua vítima, acabava enlouquecido, confessando seu crime ao primeiro policial que via na rua, suplicando para ser preso. Esse é um tropo recorrente na literatura. Shakespeare teve seu MacBeth, de cujas mãos o sangue não saía. Dostoievsiki produziu Raskolnikhov, o mais humano dos assassinos, para defender a tese de que não é possível fugir dos sentimentos morais que nos constituem.
Toda essa reflexão me pegou desprevenido na sexta feira à noite. Estava em Acari (Cidade do Seridó, norte riograndense), numa pousada de frente para o açude Gargalheiras, quando vi na TV uma notícia assustadora. No Ceará, um homem havia matado sua mulher com 29 facadas. Infelizmente não há, no Brasil, nada de muito fantástico nisso. O problema é que o sujeito foi ameaçado de morte pela família da vítima, fato que, no nordeste do Brasil, equivale a um passe livre só de ida para o inferno. Desesperado, o homem foi até a delegacia da cidade se apresentar.
Como o personagem do conto em questão, cujo o título eu não me recordo, o sujeito implorou para ser preso, obviamente mais por medo do que por culpa. Até aí nada de novo. Mas no Brasil, os tropos literários sofrem suas metamorfoses e a história de Poe começou a ganhar contornos kafkianos quando o delegado se recusou a prender o assassino confesso. Motivo? Já havia passado o tempo do flagrante e não havia ordem judicial que autorizasse a prisão. Desesperado, o assassino viajou para Fortaleza e pediu a outro delegado que o prendesse. Sem chance. A lei é clara. Nada de prisão, meu amigo. Considere-se um homem livre em nome da Lei!
Mas o segundo delegado foi bonzinho e deu um conselho: "fuja!". Sim. O sujeito poderia fugir. Ele fugiria, mas antes ligaria para a delegacia fazendo uma denuncia anônima sobre o próprio paradeiro e esperaria ser preso. Só aí a prisão poderia, quem sabe, ser efetuada na forma da lei. A matéria acabou com o homem chorando na sala do delegado, implorando para ser preso e dizendo, em profunda aflição e angústia sem fim: "será que ninguém pode me ajudar?".
A história de Edgar Allan Poe ganharia contornos distintos se tivesse sido escrita nesses trópicos sem pecado. Um dos grandes mistérios que envolvem a ciência jurídica no Brasil é saber por que o direito não funciona por aqui. Esse é um problema para ser pensado e repensado, teorizado e objetivado por vários ângulos e diversos pontos de vista. Sempre achei que "O Processo" de Franz Kafka deveria ser leitura obrigatória em qualquer curso de direito, junto com ao menos duas tragédias de Shakespeare, uns três ou quatro contos de Edgar Alan Poe e com "Crime e Castigo" de Dostoievski. Não é possível se produzir um profissional jurídico que não tenha um mínimo de consciência literária num país como o nosso. Afinal, se o direito é mesmo uma ficção, é preciso aprimorar o estilo narrativo para suportar seus desníveis e suas reviravoltas.
Acabei não encontrando o livro do Poe. Tem vezes que a minha estante engole meus livros e me deixa na mão quando eu mais preciso de um título e uma referência, só para que os meus detratores se animem a depreciar meus textos. Mas tenho certeza que o conto existe e está dentro desse livro, em algum lugar dessa minha biblioteca, assim como tenho uma profunda fé que a história que vi na TV na última sexta-feira, nas margens do Gargalheiras, defronte os desfiladeiros do rio Acauã, era real. Creio nisso, porque no universo do direito, como já nos ensinou Franz Kafka, as histórias mais reais muitas vezes são as mais absurdas.
Pubicado em 13/3/2007
Publicado em 13 de março de 2007
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