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João Cabral, nas águas do idioma pedra

Luiz Alberto Sanz

Diálogos Poéticos

A Soledad Barrett, Gregório Bezerra
e Luiz José da Cunha, o Comandante Crioulo,
memórias que vivem na pedra e na alma.

João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, capital de Pernambuco, em 9 de janeiro de 1920, na Rua da Jaqueira. Vinha da elite econômica e intelectual, primo de Manuel Bandeira e de Gilberto Freyre. Embora urbano de nascimento, viveu até os dez anos em engenhos de açúcar, nos municípios de São Lourenço da Mata e Moreno. O que ali aprendeu se entranhou em sua poesia e em sua vida.

No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(Trecho do poema "A Educação pela Pedra", que dá título ao livro do mesmo nome)

Só em 1930, de volta ao Recife, entrou no curso primário e iniciou a caminhada que o levaria à erudição e ao domínio das normas "cultas" do idioma, sem se desligar do popular, sem se afastar do "idioma pedra". No entanto, não fez o curso superior. Considerava-se formado pelos mestres Willy Lewin e Joaquim Cardozo (com quem haveremos de dialogar).

Aos 15 anos, campeão juvenil de futebol pelo Santa Cruz (1935); aos 49, membro da Academia Brasileira de Letras (1969); aos 52, embaixador de carreira. Mas o que nos interessa, aqui, não é sua biografia, que pode ser facilmente encontrada na internet (p.ex. em Releituras, ou no sítio da Academia Brasileira de Letras, bem como nas bibliotecas).

Meu prazer é convidá-los para um encontro com esta poesia abundante em metáforas e, no entanto, rigorosa e econômica com as palavras. Coerente, pois foi Cabral quem ensinou, nos versos de "O sertanejo" falando que:

A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

2.

Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

(Publicado em A educação pela pedra - 1962-1965)

Nesta viagem-diálogo não será o homem, sertanejo ou urbano, o aparente, mas o mundo árido e duro que forja pedras e consciências. Afinal, vivemos tempos em que volta a predição de Antonio Maciel, o Conselheiro de Belo Monte: "... o mar vai virar sertão...". Proponho-lhes encontrar os homens nas margens e no espelho dos rios, imaginar seus reflexos, mesmo que as águas, ausentes, indiquem a retirada. Nesta viagem, ele é coadjuvante de si mesmo, amoroso antagonista da natureza, numa relação que os afasta e aproxima.

E nós? Observamos e usufruímos versos e imagens. Dá vontade de lembrar o anarquista Rafael Barrett, cidadão ibero-americano, quando perguntava, no século XIX: "Teremos o valor de ir à miséria com os braços abertos, e de gritar, como Jó, não a partir de nossos livros, mas a partir de esterco humano fecundador do mundo?". Mergulhemos no seco rio, nadando na secura dos versos.

Na morte dos rios

João Cabral de Melo Neto

Desde que no Alto Sertão um rio seca,
a vegetação em volta, embora de unhas,
embora sabres, intratável e agressiva,
faz alto à beira daquele leito tumba.
Faz alto à agressão nata: jamais ocupa
o rio de ossos areia, de areia múmia.

2.

Desde que no Alto Sertão um rio seca,
o homem ocupa logo a múmia esgotada:
com bocas de homem, para beber as poças
que o rio esquece, e até a mínima água;
com bocas de cacimba, para fazer subir
a que dorme em lençóis, em fundas salas;
e com bocas de bicho, para mais rendimento
de seu fossar econômico, de bicho lógico.
verme de rio, ao roer essa arei múmia,
o homem adianta os próprios, póstumos.

Mas é em um longo poema anterior que o percurso se faz mais claro. Diferentemente de seus versos mais famosos, os de Morte e Vida Severina - um auto de Natal pernambucano (1954-55), não é o homem que vai a Recife em O Rio (1953), mas o Capibaribe. Esse mesmo que tantos poetas contemplam e contemplaram todos os dias, só que menos poluído-assoreado e mais abundante.

Desço, agora, o Capibaribe embarcado num exemplar que já tem 52 anos - mais do que muitos dos que eventualmente me leem. Ele se me desmancha nas mãos, e traz, na folha de rosto, em caligrafia de um azul desbotado, a dedicatória para meu pai:

"A José Sanz, com um abraço afetuoso do João Cabral de Melo Neto. Rio, 1955"

Apesar da precariedade física da embarcação, na qual já naveguei segura e repetidamente, garanto que não haverá naufrágios, só banhos e mergulhos, num aprendizado de palavras para serem rebuçadas e, por fim, ditas. Palavras que ensinam a ler e a escrever. Palavras que me ajudaram a me tornar jornalista e com as quais aprendi a desvelar a realidade.

DA LAGOA DA ESTACA A APOLINÁRIO

Primeira jornada de "O Rio" ou
"Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife"
João Cabral de Melo Neto

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar.
Sei que se sente o mesmo
exigente chamado.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará
entre caraibeiras
de que sei por ouvir contar.
Pois também como gente
não consigo me lembrar
dessas primeiras léguas
de meu caminhar.
Desde tudo que lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que das margens me vigiavam.
Rio menino, temia
aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras buscava
que não leito de areia
com suas bocas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da mata.
Por detrás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada.
Deixada, não vazia,
mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra ou de cabra.
o céu perdia as nuvens,
derradeiras de suas aves.
As árvores, a sombra
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava.

Publicado em 13/03/2007

Publicado em 13 de março de 2007

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