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"O grande desafio será mundializar o FSM"

Arão Valoi

Jornalista

Cândido Grzybowski, Director Geral da Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e um dos membros fundadores do Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre, concedeu uma entrevista ao jornal Meianoite, em Nairobi, no Quênia, onde foi realizado o FSM de 2007. Entre outros assuntos, Grzybowski faz o balanço do FSM e explica o seu significado político para África, continente que acolheu este evento pela primeira vez na história. Diferente dos que continuam a dizer que o FSM é um espaço aberto para as massas, Cândido prefere apelidá-lo de uma "elite das organizações da sociedade civil", uma vez que não representa exatamente as bases. Traça os desafios do FSM, como uma organização da sociedade civil global e adivinha dias difíceis, em termos de organização do mesmo. Por isso, em 2008, ainda segundo ele, a ideia é não se organizar o FSM, mas sim manifestações nacionais coincidentes com o Fórum Econômico de Davos.

O que achou do FSM, o primeiro que se realizou em África?

Para nós, estas redes, organizações, movimentos e outras pessoas que adotaram o FSM como seu espaço aberto para um diálogo construtivo para a criação de uma nova cultura, de cidadania planetária, é já algo importante. Sempre foi um grande desafio ver a África. Era difícil a África ir ao FSM, estando longe do seu continente. Daí que o grande desafio que sempre tivemos era de mundializar o próprio fórum. Saímos do Porto Alegre, fomos a Mumbai (Índia) e outras partes do mundo e, finalmente, tínhamos que ir a África. O FSM em África tem um significado bem mais especial. Durante muito tempo, os povos do ocidente pensaram que África era um continente com povos e culturas perdidas. O que nós queremos mostrar é exatamente o contrário. Que a África tem muito a dizer sobre todo o processo político e econômico que decorre no mundo, tem uma história milenar de construção de visões, perspectivas, e isso tudo pode-nos fortalecer no que pretendemos fazer. Isso encontra algum enquadramento, uma vez que o FSM junta diversas formas de pensar, de estar e de agir de diferentes povos do mundo.

Por que optaram por Nairobi e não África do Sul, que tem sido o centro de convergência de muitos eventos?

Não foi fácil, porque nas relações de sociedade civil em todas as partes do mundo sempre existiram tendências nacionalistas muito fortes. Isso também tem algum enquadramento no que são as políticas adotadas pelos seus países. Por outro lado, o colonialismo europeu produziu uma grande divisão no continente africano e no mundo, sobretudo a colonização francesa e inglesa que fez com que atualmente exista um conflito de interesses e de tentativas de hegemonização de uns em relação aos outros. Trata-se de uma herança pesada, mas que o FSM está a tentar criar uma ruptura. Mas também existe uma hegemonia da África do Sul que é sentida desde a região da Comunidade para Desenvolvimento da África Austral (SADC) e em quase toda a África. Além da divisão das colônias francesas e inglesas, há uma sensação de existência de uma mentalidade de tipo "todos juntos contra a África do Sul".

Durante muito tempo, todos os grandes eventos com participação da sociedade civil foram realizados ou na República da África do Sul (RSA) ou, alternativamente, em Dakar, no Senegal. Para nós,  a escolha de Nairobi é uma tentativa de romper com algumas relações que nos levam predominantemente à África do Sul. Quando falamos de África, não só estamos a falar da RSA. Existem muitos outros países e que são a maioria, cerca de 53.

Há, para já, alguma comparação que se possa fazer entre este FSM e aqueles que, habitualmente, acontecem em Porto Alegre, no Brasil, quer em termos de número de participantes, quer em termos de organização?

Em termos do número de participantes, o Brasil sempre registrou cifras crescentes. Começou com 20 mil, passou para 50, até cerca de 150 mil. Em África, ainda não nos forneceram os dados reais sobre o número de participantes, mas nos últimos dias, os organizadores falavam de 60 mil. Ele já é algo significativo e acho que é um grande sucesso nesse sentido. Em segundo lugar, é importante saber que cada fórum é um fórum e é bem diferente dos outros. Um aspecto salutar que vejo neste FSM é uma grande presença de jovens. Os fóruns sempre tiveram muitos jovens, mas aqui a coisa foi diferente. Também é maior a presença de igrejas, o que também é uma característica interessante, porque as igrejas, hoje em dia, estão como grupos organizados e têm um papel determinante na divulgação das mensagens do FSM. São aspectos marcantes.  Outra coisa a destacar são alguns temas que foram debatidos. A dívida foi frequentemente debatida, mas ela já não é um assunto novo por isso não traz tanta novidade, assim por dizer. Mas o assunto que diz respeito à água é fundamental. Fiquei impressionado por saber que existe uma rede africana de água. Isso é louvável, uma vez que a água é um elemento vital e ela está no centro de buscas de alternativas, portanto, não é só resistência. A água é um problema, mas também é uma solução. Não estamos a falar de uma coisa que não queremos, como é o caso da dívida. A água pode ser um problema quando falta e pode ser uma solução quando for abundante. A água é a expressão máxima da sobrevivência e a sua ausência seria o limite da globalização ou por outras, seria o fim do fim. A perspectiva nova que a África nos dá tem um grande problema a enfrentar que é o HIV/SIDA. Trata-se de uma dimensão que não é de classe. Ele é um problema que não é criado, tem a ver com relações de higiene e de poder, em última análise, e de como isso se exprime numa sociedade desigual, onde não há tratamentos e outras formas de prevenção.

A Carta de Princípios do FSM proíbe a participação de partidos políticos, governos e organizações militares. Como é que se explica a presença, em Nairobi, do Partido Trabalhista do Brasil, do Partido Socialista da Itália e de algumas figuras políticas emblemáticas ao nível do continente africano?

O que a Carta diz é que os membros natos desses partidos políticos são organizações da sociedade civil. O que não pode é a organização política se inscrever oficialmente. Os que estão aqui e assumem a identidade de partidos, não se inscreveram como partidos políticos. Essa é uma questão difícil porque a opção partidária também parte da nossa diversidade. Existe, por exemplo, uma organização sindical chamada ETA, da Espanha, que nos deu um grande problema ao longo do tempo e continua a nos dar porque voltou a usar violência.  A Carta de Princípios do FSM é contra a violência, ou por outras, qualquer organização, mesmo não sendo partidária, se adota a violência não é permitida a sua participação no FSM. Em Porto Alegre, mais de 50% dos participantes estavam filiados aos partidos políticos, mas nunca se encontrava nenhum partido registrado. Isso era feito via sindicatos, associações e outras denominações que nada têm a ver com partidos políticos. E acho que foi o mesmo que se passou aqui em Nairobi. Os Governos podem ser convidados, mas não podem tomar iniciativa. As organizações multilaterais não podem participar, uma vez que são eles que defendem o mundo globalizado. Mas ouvi que havia ali representantes do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional que devem ter participado a convite de uma outra organização. O que eu acho fundamental é manter a ideia de que o FSM não é espaço para ser partidarizado. É, isso sim, um espaço de sociedade civil para sociedade civil. É uma diversidade de posições, de pensamentos e de outras formas de estar. O FSM deve ser visto como aquele espaço para os que não têm formas de se exprimir. É verdade que temos uma grande contradição no FSM. Na minha avaliação, baseada nas pesquisas que o Ibase fez, o FSM é uma elite das organizações da sociedade civil, não é um movimento das bases onde as pessoas debatem seus problemas e isso deriva de um fato que a língua e o alcance dos temas que são debatidos.

Há já alguma ideia do que vai ser o FSM do próximo ano?

Olha, o FSM "tem que ir à escola". Já passam sete anos de idade. Acabou uma etapa e tem que começar outra. Ele tem que aprender com essa experiência. Já deu uma certa volta ao mundo, embora não completa. Mas já esteve nos três principais continentes, do ponto de vista do grande sul. Mas há sempre uma certa dificuldade nestes eventos. Há um problema de recursos, de complexidade e por isso temos que pensar. Decidimos, finalmente, não ter mais um evento anual, sem deixar que o processo seja continuado e fortalecido. Neste momento, estamos a juntar as propostas. A ideia é que não haja, em 2008, uma concentração desta dimensão, no entanto se estimular o máximo de iniciativas nacionais possíveis em todo o mundo. Pode não ser na mesma data, mas será na mesma semana do Fórum Econômico Mundial de Davos (FEM).

Enquanto o FSM não toma decisões, o FEM, quando se reúne, decide sobre a vida de muitas pessoas. Não estarão a caminhar em contrassenso. Não acha que é chegado o momento de se conversar com o FEM?

Olha, a nossa Carta de Princípios é clara quanto a esta matéria. De princípio, não há conversações possíveis, mas também não existe uma declaração final sobre isso. Se se tomar essa decisão, ela será legítima para aqueles que a tomarem, mas o FSM é uma rede e tinha que ser esta a decidir. Caso contrário, qualquer decisão será no âmbito do FSM, mas não será dele enquanto rede, porque outros podem estar contra a decisão. É importante notar que aqui a divergência é uma virtude e não um problema. Mas também isso vai contra a nossa cultura política de esquerda que é um pouco de pensamento único. O Fórum de Davos é uma associação que promove a globalização. A intenção deles é chegar e tomar decisões porque pensam que são o centro do "pensamento único". Contra o "pensamento único", nós não queremos formar um outro "pensamento único". São vários pensamentos. Até seria melhor se o nosso slogan fosse: "Outros mundos são possíveis", em vez de singularizar a ideia.

Publicado em 13 de março de 2007.

Publicado em 13 de março de 2007

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