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JORGE DE SENA
Luiz Alberto Sanz
"EU SOU A MINHA PÁTRIA"
Este encontro é com Jorge de Sena, cidadão do mundo e um dos poetas e críticos mais importantes da Língua Portuguesa, da qual diz: "Eu sou, eu mesmo, a minha Pátria. A pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci".
O mesmo que, em Carta ao jovem poeta, aconselha:
A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é? Por ela, o senhor será egoísta, sendo altruísta; será mesquinho, sendo nobre; trairá tudo, para ser fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de horror, penetrar lá onde supõe que o "si mesmo" está para lhe fazer companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe, ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu, sim, mas também ele o senhor vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como abstracção do que o senhor pensa e escreve, e que, por sua vez, é já uma abstracção do que o senhor viveu ou não. Medite um pouco no significado terrível deste ou não, e nunca mais escreva versos ou prosa poética, ou lá que é que escreve para se julgar poeta.
Se for um poeta de verdade, meu caro, o melhor é com efeito não escrevê-los, e deixar de o ser. Porque a única alternativa é pavorosa: ou prostituta, dando à cauda, entre as madamas; ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva, ainda quando só tenha visões de anjos tocando flauta, numa apoteose (ou epifania, que é mais elegante, e era o que o Joyce dizia). Guarde os versos, rasgue os versos, esmague os versos, arrase com eles. É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo resto da vida? Se é, meu caro amigo, então não mande os seus versos a ninguém, não peça opiniões que ninguém pode dar-lhe, não espere conselhos de uma experiência que é pessoal e intransmissível, não solicite uma atenção que não haverá quem lha conceda. A menos que, para fim de festa, pretenda tirar, para seu uso, a contraprova de que a humanidade como humanidade, os povos como povos, as nações como nações, as classes como classes, os grupos como grupos são sempre colecções mais ou menos numerosas de infames bestas. Ou a contraprova de que, individualmente, ninguém vale para além do orgasmo, ou do olhar de simpatia, ou do gesto de ternura. Ainda quando sejam poetas, meu caro, ainda quando o sejam.
Para, ao final, despedir-se como uma adaga libertária: Sempre seu (que o manda para o Inferno que é nossa província).
Foi em Lisboa, em 1919, que se deu o acaso do nascimento de Jorge de Sena. E morreria longe do ponto de partida, em Santa Bárbara, Califórnia, Estados Unidos, em 1978. Inimigo da ditadura salazarista, exilou-se em São Paulo, entre 1959 e 1965, tornando-se professor das Faculdades de Filosofia, Ciência e Letras de Assis e de Araraquara. Então, uma nova ditadura, a da burguesia e dos militares brasileiros, obrigou-o a mudar para os Estados Unidos. Lá, deu aulas na Universidade de Wisconsin até (1970) se transferir para a Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, onde chefiaria os Departamentos de Literatura Comparada e de Português e Espanhol. Hoje, a Universidade de Santa Bárbara sedia o "Jorge de Sena Center for Portuguese Studies", núcleo internacional de excelência.
No Brasil, de Sena escreveu parte importante de sua obra ficcional, embora alguns livros só fossem publicados bem mais tarde: os contos Andanças do demônio (1960) e Novas andanças do demónio (1966); e os romances Os grão-capitães (1976), Sinais de fogo (publicado em 1979, depois de sua morte) e O Físico prodigioso (1977). É dessa época o livro de poesias Metamorfoses (1963). Destacam-se ainda em sua obra poética Perseguição (1942), Fidelidade (1958), Arte de música (1968), Conheço o sal (1974), e Sobre esta praia(1977).
No sítio As Tormentas, que recomendo, Luís Rodrigues afirma com propriedade: "Embora dividida por diversos gêneros, a obra de Jorge de Sena constitui uma teia de relações em que se cruzam, em múltiplas abordagens, temas recorrentes, que definem a sua personalidade literária e crítica".
A obra de Jorge de Sena nunca pertenceu a escolas literárias, porém apropriou-se de todas as influências que bem lhe pareceram. Recolhi poemas que ilustram a diversidade e a unidade dialética de sua poesia. Mas representam, sobretudo, a força libertária em que forma e conteúdo se alimentam mutuamente e que banem a ferina idolatria (Fere-me esta idolatria mais do que todos os crimes: /tanto fervor desviado e perdido! /Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo/e tão poucos lutando para lhe abrir caminho! - "Panfleto"). Jorge de Sena assume seu Eu e expõe a visão de um indivíduo liberto por ele mesmo. Tão liberto que é capaz de cantar, no próprio 25 de abril de 1974, a liberdade, ainda que fugaz, alcançada quando povo e soldados, juntos, derrubaram o salazarismo remanescente (Saem tanques para a rua, /sai o povo logo atrás:/estala enfim, altiva e nua,/com força que não recua,/a verdade mais veraz - "Cantigas de Abril"). Para isso, usa como epígrafe e mote dois versos de poema em que anuncia o dia em que saberia a cor da liberdade (Não hei-de morrer sem saber/qual a cor da liberdade - "Quem a Tem"). Mas, dois dias depois (27 de abril) retorna ao papel para chamar os protagonistas à fala (E tu povo, em nome de quem sempre se falou,/ouvir-se-á a tua voz firme por sobre os clamores/com que saúdas as promessas de liberdade?/Tomarás nas tuas mãos, com serenidade e coragem,/aquilo que, numa hora única, te prometeram?/E agora, povo português? - "Nunca Pensei Viver...")
Só para começar:
A Portugal
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.
Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço.
És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Cantiga de Abril
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
e conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essa paz de cemitério
toda prisão ou censura.
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim, altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
MORRA O BISPO E MORRA O PAPA
Morra o bispo e morra o papa.
maila sua clerezia.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!
Morram frades, morram freiras.
maila sua virgaria.
Ai rosas de sangue e leite.
que só a terra bebia!
Morra o rei e morra o conde.
maila toda fidalguia.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!
Morram meirinho e carrasco.
maila má judicaria.
Ai rosas de sangue e leite.
que só a terra bebia!
Morra quem compra e quem vende,
maila toda a usuraria.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!
Morram pais e morram filhos.
maila toda filharia.
Ai rosas de sangue e leite.
que só a terra bebia!
Morram marido e mulher.
maila casamentaria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morra amigo, morra amante.
mailo amor que se perdia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra tudo, minha gente.
vivam povo e rebeldia.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!
Para ler sobre Jorge de Sena e mais poemas seus:
- Quarenta poemas. Editora 7 (Sete) Letras;
- Biblioteca Municipal de Famalicão;
- & As Tormentas;
- Jornal de Poesia;
- Triplov.org.
Originalmente publicado na coluna Mosaicos Mouriscos da revista letralivre (letralivre@gbl.com.br) nº 46, Rio de Janeiro, 2006.
Publicado em 20 de março de 2007
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