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Amores Virtuais

Pablo Capistrano

Felice querida, o que dizes de uma vida conjugal na qual o marido, pelo menos alguns meses por ano, sai do escritório às duas e meia ou às três horas, almoça, deita, dorme até as seis ou sete horas, engole rapidamente alguma coisa, vai caminhar por uma hora, depois começa a escrever e continua até uma ou duas da manhã?

O amor tem suas grades e suas armadilhas e uma visão de um cotidiano conjugal desse tipo pode destroçar os sonhos românticos de qualquer mulher. Apesar disso, o escritor Tcheco-judeu-alemão Franz Kafka, autor das linhas acima, não teve pudor em expressar à sua noiva Felice Bauer a ideia de um futuro muito pouco atrativo para quem acredita no amor. Na verdade, o interesse de Kafka parecia ser justamente dissuadir sua noiva da esperança de construir uma vida a dois. A história de amor entre Kafka e Felice Bauer é curiosíssima. Os dois se encontraram uma única vez, na casa dos pais de Max Brod (amigo íntimo e guardião póstumo do espólio literário de Kafka). Era o dia 13 de Agosto de 1912, e Franz anota em seu diário as impressões muito pouco instigantes sobre aquela senhorita. "Rosto ossudo e insignificante, que suportava francamente sua insignificância". Essa não parece de modo algum uma descrição de um homem apaixonado, no entanto, um mês depois do encontro, Kafka inicia sua correspondência com Felice, mantendo-a intensamente por mais ou menos quatro anos.

Sempre achei estranho o universo dos amores virtuais. Nunca compreendi muito bem o motivo pelo qual alguém se apaixona por uma foto num desses sites de relacionamento e começa a entabular uma conversa com uma imagem borrada que aparece na tela de um computador. O curioso é saber que esse não é um fenômeno recente, derivado do incremento de uma mídia informatizada. Muito antes de Turing equacionar sua máquina e pensar na raiz lógica que iria gerar os futuros computadores, homens como Kafka se apaixonavam pela linguagem e usavam moças como Felice Bauer para deixar vazar todo seu potencial afetivo através das próprias palavras. Os dois só se encontraram pessoalmente duas ou três vezes depois do contato inicial na casa dos pais de Max Brod. Todo universo afetivo que move o virtual amor sem fim de Kafka ocorria no universo estreito de sua linguagem, no campo minado de suas cartas, na ansiedade louca das suas idas à caixa do correio atrás de um pacote qualquer ou de um envelope vindo de Berlim. Quando o negócio era partir para o efetivo, o velho Franz se esquivava.

Difícil imaginar se um amor virtual pode ser mais forte, intenso ou sincero do que um amor sensorial. Complicado saber se é o amor que é uma invenção da linguagem ou se é a linguagem que se alimenta de um amor real e mais amplo, para se duplicar e se perpetuar. Se o vazio das palavras pode substituir o calor do corpo de alguém e a força magnética do seu cheiro. Parece que não estamos diante de um mesmo tipo de experiência. Nunca acreditei que existisse alguma coisa que pudesse ser chamado de "amor". Para mim, o amor é um nome que se refere a uma grande quantidade de sentimentos díspares. Às vezes pode ser amor a dor física de quem sente a ausência de quem se ama. Às vezes, pode ser amor o prazer que eu sinto em tocar o corpo que eu amo. Às vezes, pode ser amor a calma que toma conta da cozinha na hora do café, quando dois amantes de muitos anos se olham como fazem todos os dias. Às vezes, pode ser amor a fúria cega de uma paixão que consome a carne a o equilíbrio dos amantes, lançando-os no limite de suas próprias vidas.

Não acredito nesse singular, que usamos como forma para justificar e padronizar todas as formas por meio das quais nós, humanos, solitários e presos a nossa própria e irredutível alma, nos relacionamos. Essa é uma das palavras que só deveria ser dita no plural. Para não macular seus labirintos e não excluir do campo de sua influência histórias de amor como a que uniu Kafka, um jovem escritor, e sua noiva fantasma.

Pubicado em 26/3/2007

Publicado em 27 de março de 2007

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