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A Hora do Sermão - A arte de se fazer sermão segundo Padre Antônio Vieira

Mariana Cruz

Padre Antônio Viera nasceu em Lisboa em 1608, veio para o Brasil aos sete anos e, em 1623, entrou para a Companhia de Jesus. Vieira destacou-se como missionário na defesa dos direitos indígenas contra os colonizadores portugueses. Além disso, declarou seu apoio ao fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, e lutou pela abolição dos escravos.

A despeito de tais feitos merecedores de honra, a face de Vieira que analisaremos aqui nada tem a ver com seus atos heroicos, mas com outra qualidade sua também louvável: o uso peculiar da linguagem. Em seus sermões, a hábil lida com as palavras traz à tona a complexidade do espírito português externado no dinamismo da língua, no uso diferenciado de seus verbos e no grande valor sentimental que este idioma carrega. Antônio Vieira é, por isso, considerado um dos maiores expoentes da língua portuguesa de todos os tempos.

A fim de entendermos esta "complexidade do espírito português", utilizaremos trechos do "Sermão da sexagésima", onde o religioso fala sobre as características que uma pregação deve apresentar e do dever de semear a palavra do evangelho. Trata-se, assim, de um meta-sermão, pois fala da arte de pregar, da função do pregador e da natureza da pregação.

O que parece ocorrer nos sermões de Vieira é uma elevação do "temporal" (mundano) para o "atemporal" (divino). No momento em que o sermão é proferido e no fato dele ser dirigido a um determinado público, está o "temporal". O "atemporal" aparece na constatação de que, devido ao magnífico trabalho de interpretação do padre, seus sermões possam ser lidos independentes de qualquer contexto histórico, religioso ou político. Vale é a riqueza literária presente na linguagem que ele utiliza.

Um leitor crítico talvez torça o nariz para a constância com que certas palavras e ideias aparecem, como podemos notar neste trecho do "Sermão da Sexagésima":

...«saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.

O cuidado com que o religioso lida com as palavras nos mostra que tal repetição vocabular é algo de seu pleno conhecimento. Isto ocorre não só pelo fato do sermão ser algo feito para ser ouvido - e não lido -, como também pela ausência de interrupção na fala do pregador. Assim, vemos a necessidade de tal repetição.

Ao nos afastarmos um pouco da forma e nos atermos ao conteúdo do trecho destacado, percebemos que Vieira faz uma comparação entre o ato de semear e o de pregar e, por extensão, passa a considerar o pregador, um semeador. Neste exemplo vemos que as palavras são para ele como um organismo vivo e dinâmico de onde ele extrai tudo o que pode.

O sermão da Sexagésima é dirigido aos pregadores e também, é claro, a todos os fiéis a quem estimula exercerem escuta ativa. Ele utiliza diversas analogias para falar do papel do pregador, do discurso e do ouvinte, e traça os percursos para a obtenção de uma transformação plena da alma provocada pela força do verbo:

Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento.

Mas o pregador não é um mero porta-voz da doutrina; ele deve tê-la entranhada na alma. A crença no discurso é condição mais que necessária a ele. Pregar não é apenas falatório, é ação. Um semeador é diferente daquele que semeia. Um rei é diferente daquele que reina. Aí está a diferença entre o nome e o verbo:

A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que saneia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.  (...). Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras.

Apesar do rico vocabulário utilizado por Vieira, seus sermões são claros e acessíveis aos ouvintes. O padre, porém, não poupa críticas ao estilo rebuscado de uns contemporâneos seus que utilizam um excesso de pompa nas pregações, mas que não se fazem entender por quem os assiste:

esse desventurado estilo que hoje se usa, os que querem honrar chamam-lhe de culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda assim lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português e não o havemos de entender o que diz?!

Mas não basta apenas o pregador despir-se do discurso gongórico: Vieira também dá uma aula, ou melhor, dá um sermão sobre como se fazer sermão. Assim como uma semente deve ser semeada por vez, também o sermão deve tratar somente de um tema:

O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo

Se de um lado o sermão deve ser monotemático, de outro ele deve ser dividido em partes. Isto é, um só assunto tratado sob seus diversos ângulos, com as palavras bem escolhidas, que irão formar boas sentenças, que por sua vez devem estar bem ordenadas para que assim se possa colher os frutos.

Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore.

Nesta semente chamada palavra, no desnudamento e na descoberta da essência de cada vocábulo, encontramos a força, o virtuosismo de Padre Antônio Vieira. É tal complexidade linguística lusa que possibilitou o surgimento de oradores, poetas e escritores portugueses e brasileiros como Camões, Pessoa, Guimarães Rosa, Machado de Assis, entre muitos outros, que assim como Vieira entenderam a densidade, a utopia e o lirismo dessa língua e não se rogaram em dela fazer uso, até conseguirem transformar seus textos em obras clássicas.

Publicado em 3 de abril de 2007

Publicado em 03 de abril de 2007

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