Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Cidades reversíveis: caminhos urbanos em Benjamin, Guattari e Janice Caiafa

Laura Zúñiga

Bacharel em Português-Literaturas de Língua Portuguesa pela UFRJ

Para o presente estudo, usei como base os seguintes textos: Caosmose, de Félix Guattari, Mil platôs 5, de Félix Guattari e Gilles Deleuze, Charles Baudelaire:  um lírico no auge do capitalismo, de Walter Benjamin e Jornadas urbanas, de Janice Caiafa.

Jornadas urbanas consiste em uma leitura da cidade através do transporte coletivo. Para entendê-la é preciso antes entender a complexa relação entre cidade e Estado. Caiafa retoma a seguinte história, do capítulo "Aparelho de captura" de Mil platôs, de Deleuze e Guattari: a cidade foi, primeiramente, local de encontro e enterro de pessoas, lugar de passagem e visitação. O Estado nasce no berço da formação das cidades, criando uma hierarquia entre elas, elegendo centros e periferias. O Estado e o capitalismo necessitam um do outro para triunfar, mas é dentro do vasto espaço das cidades que surge algo para lutar contra o capitalismo. Caiafa distingue a expansão das cidades e a evolução do Estado - aquela se dá horizontalmente e esta, verticalmente. Dessa forma, ainda que o Estado alcance o ritmo de desenvolvimento da cidade, não será capaz de asfixiá-la (exatamente por sua estrutura): a cidade escapa continuamente do Estado, traçando linhas de fuga horizontais que se libertam da verticalização estatal.

Esse assunto retoma a oposição forma-cidade e forma-Estado, formulada por  Deleuze e Guattari: a cidade tem seu funcionamento em rede, com seus fluxos se interligando sobre as linhas horizontais. A cidade mantém constante relação com as outras cidades. Ela possui poder central, mas este é forçosamente coordenado com outros poderes. Já o Estado funciona estratificando as relações, impondo operações necessariamente verticais e hierarquizadas. Ele se concretiza pela sobrecodificação de fluxos, que, ao serem sobrecodificados, produzem também fluxos descodificados, que fogem ao controle do código estatal. São como dois corredores, forma-cidade e forma-Estado, que continuamente se alcançam. Quer dizer que estão sempre coexistindo, cada um à sua forma e ao seu passo. A forma-cidade se espacializa em zonas de dispersão e concentração. Os corredores de dispersão do trânsito e das vias públicas se opõem aos espaços domésticos, familiares, reclusos. A forma-Estado está sistematicamente querendo privatizar o espaço público da forma-cidade. Assim, o trancafiamento familiar está para a forma-Estado como o transporte e a dispersão estão para a forma-cidade.

O funcionamento desse mecanismo urbano é sutil. A concepção original da expansão capitalista foi alterada: o capitalismo não se expande mais verticalmente, mas em rede. Isso significa que domina mais facilmente, pois se camufla como '3ª via', como a alternativa para a eterna dicotomia entre direita e esquerda. Faz uma proposta aparentemente inovadora, mas tem como objetivo o fortalecimento do funcionamento estatal. O controle se torna mais eficiente e quase imperceptível, embrenhando-se em quase todos os aspectos da vida privada e familiar. Nos momentos em que acreditamos estar mais "protegidos" de influências externas, resguardados em casa, ainda assim somos alvo de aparelhos tecnológicos, como comerciais e programas de televisão, telefonemas com ofertas de cartão de crédito, etc.

Ao tratar da interioridade, toca-se no assunto da "função subjetiva das cidades", também formulado por Deleuze e Guattari. Caiafa diz ser a subjetividade não um resultado, mas um processo. Não é apenas interior, ou somente exterior. É produzida por componentes heterogêneos (elementos materiais, sociais e sexuais, por exemplo). Deleuze, lendo Foucault, vê a subjetividade como "uma interioridade feita de fora, ao concebê-la como uma 'dobra'" (p. 35).

A Barra da Tijuca é usada como exemplo para ilustrar que, para além do status buscado na utilização da língua inglesa, há uma referência (ou evocação) do jeito norte-americano de construir as freeways. É uma arquitetura comum nesse país, que privilegia o movimento particular, ou seja, de veículos particulares, em detrimento das pessoas que não têm poder aquisitivo para tal e são dependentes do transporte coletivo. Curiosamente, teóricos, governadores e especialistas norte-americanos já debatem (e tentam convencer os habitantes) da falência dessa way of life dependente de carro. Assim, o que é público possui uma relação direta com a interioridade, por preservação de valores. Já o privado, o particular, pressupõe uma relação de exterioridade, de individualismo com o resto, com as outras pessoas.

Dessa forma, percebemos que há uma relação entre a oposição público/privado e os movimentos de interiorização e exteriorização. A interioridade, tal como ela é definida por Caiafa, não pode ser confundida com a privacidade; não é o conforto do lar, longe do caos urbano. Da mesma forma, a exterioridade não pode ser confundida simplesmente com o espaço público. A interioridade revista e afirmada aqui não remete à estrutura do sujeito clássico cartesiano. Ela consiste muito simplesmente em revestir os espaços públicos de afeto, em olhar de novo aquilo mesmo que esquecemos de ver com cuidado redobrado, desautomatizando a nossa experiência urbana cotidiana. É, por exemplo, o sentimento de identificação com algo que pode ser uma vista da cidade, uma esquina da qual se guarde uma lembrança, ou aquilo que nós poderíamos chamar de carioquice. É isso que Guattari vai denominar "função subjetiva da cidade". Por outro lado, a exterioridade é o que uniformiza e esteriliza, desmembrando a nossa relação afetiva (interior) com as coisas, esvaziando-as de sua singularidade, conferindo uma influência uniformizante, estéril. Mas é também o que nos obriga a sair de nós mesmos, introduzindo a dimensão do 'fora', e assim nos toca, nos tornando estrangeiros a nós mesmos. 

Walter Benjamin, em "Sobre alguns temas em Baudelaire", estuda as relações do homem com a cidade sob a forma do flâneur e do transeunte. O transeunte se infiltra na multidão. O flâneur precisa de seu espaço e preserva sua privacidade. O tema da multidão tornou-se o centro das atenções dos pequenos burgueses no séc XIX. "Para Engels, a multidão possui algo de espantoso, suscitando nele uma reação moral; paralelamente, também entra em jogo uma reação estética; a velocidade com que os transeuntes passam precipitados o afeta de forma desagradável" (p. 115). Engels acha a multidão desagradável, Hegel se distancia dela, Baudelaire sente-se imerso na multidão, sente-se dentro dela.

Segundo Benjamin, Valéry via a civilização como síndrome, e acreditava que o homem dos grandes centros urbanos se aproximava de seu estado de selvageria, de isolamento. A necessidade do outro foi perdendo lugar para a tecnologia, que distancia as pessoas e suas vivências, ainda que aproxime os beneficiários da mecanização.

O que temos aqui é o enfraquecimento da experiência. O homem progressivamente foi deixando de experimentar a vida por ter alguém (ou alguma coisa) para fazer por ele. Ocorre um distanciamento de elementos intrínsecos à condição humana e sua relação com o meio. A vivência, os sentidos, as aquisições adquiridas através da experiência, representados pela figura do transeunte, está perdendo lugar para uma memorização de esquemas, usada pelo flâneur.

Benjamin diferencia vivência e experiência. Vivenciar algo é vivê-lo isoladamente, sem qualquer relação com outras pessoas, podendo ser um conhecimento obtido às pressas. Experimentar algo é conhecer sem a intervenção da consciência, algo que demanda tempo e vagar. A vivência do choque que define a vida urbana, o trauma que Freud identifica nos sobreviventes da Primeira Guerra Mundial, a automatização da linha de produção nas fábricas, a audiência de cinema, definem todos, para Benjamin, uma perda da possibilidade da experiência (Erfahrung, em alemão), substituída pela simples vivência (Erlebnis). Nós vivenciamos as coisas e não as experimentamos mais. Benjamin propõe uma conscientização subjetiva: uma incitação à experimentação dos elementos urbanos, e não meramente uma vivência previamente estipulada, a fim de se impregnar de uma consciência 'afetiva' da urbe, do público, da interioridade. No aparelho consciência/inconsciência de Freud, a consciência está na razão inversa da memória. As lembranças mais profundas são justamente aquelas que passaram ao largo da consciência, toda ela mobilizada pelo mecanismo da defesa contra o choque, que vivenciamos mas não experimentamos. Proust chama de "memória involuntária" o que acredito estar ligada a uma ressensibilização da cidade, uma memória profunda das coisas que não passou pela vivência, mas que está intimamente ligada à experiência com as coisas (p.108).

Félix Guattari, em Caosmose, defende que o homem contemporâneo não tem mais elementos de fixação na terra. "A subjetividade entrou no reino de um nomadismo generalizado" (p. 169). É a globalização dos elementos de conexão e fixação. A abrangência e a velocidade da circulação de informações chegou a um estado tal que tudo parece permanecer no mesmo lugar. E, de fato, a importância e unicidade das coisas encontram seu declínio, ameaçando a subjetividade de paralisia.

A fim de impedir essa paralisia, o homem deve reinventar sua relação com as coisas, "(...) com o cosmos e com a vida" (p.169), buscando uma singularidade intrínseca à vida humana. Essa seria a restauração do que ele chama uma Cidade Subjetiva. Uma 'nova' compreensão das relações, do habitat, das coisas em si, englobando e envolvendo o individual e o coletivo. Afinal, a globalização que vemos nos dias de hoje não significa apenas uma homogeneização do mercado. Em uma mesma cidade vemos um centro financeiro desenvolvido e próspero e pessoas na mais absoluta miséria. Ao que parece, as relações de poder, com o tempo, se redimensionaram. Quero dizer que, se antigamente o inimigo estava na forma de uma capital financeira e política (como os EUA), hoje em dia está dentro de cada cidade, aumentando a responsabilidade de cada habitante/cidadão. Também, se antes o inimigo era 'concreto' e contável, agora foi espargido e fragmentado. Guattari explica melhor aqui o que ele considera essencial para o bom funcionamento do projeto da Restauração. É preciso mais do que originalidade: é preciso pensar o projeto para todos, em sua heterogeneidade. É alterar a ordem de adaptação: ao invés de exigir dos habitantes uma adaptação à estrutura e arquitetura da cidade, adaptar a cidade às necessidades dos habitantes, por exemplo, às dos deficientes físicos.  Resumindo, é necessário instigar a ousadia, coragem e consciência crítica  nos moradores.

O próprio Benjamin exercita ou põe em prática essa atitude em relação às cidades. "Como na descrição das galerias parisienses, dos corredores urbanos de Paris ligados a uma nova forma de circulação e a novos padrões de percepção e experiência, sendo essa espacialidade inseparável da produção da modernidade" (p.104). Essa observação de Caiafa demonstra a postura de Benjamin em relação às estruturas das cidades. Moderna e instigante, encontra reflexo até hoje em pessoas sensíveis às mudanças estruturais urbanas.

Como um exemplo a se pensar, Guattari usa a URSS, que funcionou com a mobilização de grupos extragoverno, "grupos de autogestão" que criaram cooperativas e se detiveram sobre assuntos de arquitetura, urbanismo, meio ambiente etc. Aqui acontecem duas coisas: uma é a abertura (e negociação) para elementos além do governo para o bom funcionamento das relações políticas. A outra é a conscientização das pessoas para uma nova forma de relacionamento, sem mandante e mandado, mas em uma cooperação, com uma relação entre iguais. Na verdade, uma abertura para a experiência da autogestão como nova forma de gerir a cidade.

Junto com uma nova forma de se relacionar com a cidade, poderia vir uma sedução maior para a experiência de habitar. Vemos as cidades recebendo construções habitacionais cada vez menores e mais compactas, a fim de abrigar o maior número de pessoas em menor espaço possível. Apenas que o cuidado estético com a arquitetura dessas moradias está aquém do que vemos em construções históricas. Essa prática não incentiva à experimentação urbana. Morar em um lugar atraente é prerrogativa para a experimentação. A experiência urbana é única e rica, mas tem de ser incentivada. A 'pobreza estética' é uma forma de exclusão.

O momento de tensão, de doença, era funcional para Benjamin. Proporcionava à ocasião uma urgência da qual não se podia recuar. O problema estava exposto e alguma ação teria de ser tomada. É o que acontece atualmente com respeito a uma nova relação com a cidade.

É, em suma, preciso ressensibilizar as cidades, fazê-las voltarem a se tornar palco de experimentações. Isso pode ser obtido, por exemplo, por meio de uma maior transdisciplinaridade das áreas de trabalho. É preciso cuidado na projeção de objetivos e de produções nas cidades. A sobrevivência humana depende da preservação do meio.

Podemos entender melhor o que chamo de reversibilidade intrínseca à experiência urbana se examinarmos o automatismo com que seguimos nosso caminho cotidianamente na cidade. Ao não prestarmos atenção ao caminho que fazemos, ao andarmos instintivamente pelas ruas, agimos ao mesmo tempo de forma interiorizada e exteriorizada. A interioridade está no hábito de a pessoa trazer para si o ir para o trabalho. A exterioridade está lá pelo mesmo motivo: ao seguir um caminho instintivamente, ao aparentemente estarmos imersos em nossos pensamentos, habitamos na verdade um mundo exterior a nós mesmos.

A fim de recuperar ou lembrar a alteridade ou exterioridade da cidade, é válido fazer uma incursão pela 'velha cidade' (no caso do Rio de Janeiro, o centro da cidade, o subúrbio) onde a arquitetura é mais preservada e as ruas conservam - ainda que subjetivamente - a aura de sua criação. Esta mudança de tratamento é um auxílio, em alguns casos, para a revitalização de áreas da cidade mais ermas e/ou violentas - caso da área portuária da cidade do Rio de Janeiro e do bairro da Lapa, por exemplo. Durante o dia, foi possível observar nos últimos anos ocupações no bairro de São Cristóvão por artistas plásticos, músicos e performáticos, entre outros, em um galpão abandonado. Uma verdadeira 'tomada da cidade'. Estes eventos levaram um grande número de pessoas a locais provavelmente nunca antes visitados por eles. Coincidentemente (ou não), os exemplos mencionados se situam em áreas antigas da cidade.

Uma outra forma de se perder ou se achar na cidade - já que as ações se equivalem - deu-se com a descoberta de um cemitério de negros novos. No ano de 1996, fazendo uma reforma, a dona de uma casa na rua Pedro Ernesto, na Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro, percebeu que sob seu assoalho havia cerca de cinco mil corpos enterrados. Descobriu ser um grande cemitério de negros africanos que vieram para o Brasil e morreram antes de serem escravizados. Era o Cemitério dos Pretos Novos. A memória enterrada, ou soterrada, perdida em uma cidade que se moderniza às custas de perder o seu passado, pôde ser achada em uma viagem contingente pelo acaso e através do tempo.

Há um decreto da Prefeitura, de abril de 2004, que firma um convênio entre a Secretaria Municipal das Culturas e a Sociedade Brasileira de Arqueologia, com o intuito de realizar pesquisas e escavações arqueológicas nos locais onde foram encontrados vestígios do antigo Cemitério. O principal objetivo é demarcar as influências da cultura negra no território da cidade do Rio, em especial nos bairros da Saúde e Gamboa, utilizando-se do conceito de "Museu a céu aberto". Essa é uma forma de "desenterrar" a história carioca que, por costume, sedimenta história sobre história, encobrindo épocas preciosas da cidade. Só por meio desta "anamnese" (este antídoto contra a amnésia cultural brasileira) podemos retomar o que se esqueceu.

Dessa forma é feita uma homenagem aos que faleceram, ressaltando os traços da cultura que deixaram. Esse é um exemplo de uma atitude imprescindível para uma nova perspectiva histórica, realçando a interioridade urbana. Essas novas atitudes são necessárias, e esse é um exemplo de como ela é possível.

A dona da casa, aceitando dar continuidade à escavação sob seu lar, permitiu a si mesma se perder na cidade, ao mesmo tempo resgatando um capítulo da história que agora permite a outras pessoas a mesma experiência. É uma via de mão dupla, exemplo do que é possível ser feito para um novo experimentar e conhecer da alma carioca e da cidade do Rio de Janeiro, um perder-se que pode ser uma descoberta de uma memória sepultada. Seja em incursões por morros, pelo subúrbio ou até pelo centro do Rio, há caminhos a se redescobrir para um novo habitar, ao mesmo tempo interior e exterior, mais carioca e mais humano, em que se resgata a memória daqueles que aqui viveram, que constituíram os alicerces desta cidade, e que jazem esquecidos em cemitérios ocultos. Isso recriaria uma ligação com a cidade (mesmo que sob o foco comercial). Retomando ainda Deleuze e Guattari, é uma forma de fazer com que o corredor forma-cidade ao menos temporariamente ultrapasse o corredor forma-Estado. Curiosamente, a descoberta deste cemitério retoma os alicerces inaugurais da urbe, este local de encontro e enterro de pessoas, de passagem e visitação.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CAIAFA, Janice. Jornadas urbanas: exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

______ e DELEUZE, Gilles. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.5. São Paulo: Ed. 34, 1997 (1ª reimpressão, 2002).

DOCUMENTO ELETRÔNICO

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Decreto N.º 24088 de 05 de abril de 2004.  Dispõe sobre a criação do Portal dos Pretos Novos. Rio de Janeiro, 26/04/2004. Disponível em: http://doweb.rio.rj.gov.br...e=_recs. Acesso em 07/11/2004.

Publicado em 03 de Abril de 2007.

Publicado em 03 de abril de 2007

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.