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Leia Kant!
Leonardo Soares Quirino da Silva
Como um princípio simples pode mudar o dia-a-dia
Início de noite na cidade. O trânsito avança lento. Chego ao cruzamento. Na transversal, dezenas de carros esperam sua vez para cruzar. A minha frente, depois do cruzamento, não há espaço. O sinal passa do verde para o amarelo. Avançar mais seria bloquear o caminho de outras pessoas que em seus carros também querem chegar rápido em suas casas, tirar o dia do corpo debaixo do chuveiro, jantar, ver TV... Paro, então, na barra, antes da faixa de pedestres.
O motorista no carro de trás solta a mão na buzina! O som agudo entra rápido em meus ouvidos. Mais depressa ainda a adrenalina circula. O sangue sai das vísceras e sob a cabeça. De forma automática, viro-me para trás e grito: leia Kant!
Kant? Pergunto-me, surpreso comigo mesmo. De onde veio isso? Bastaria levantar alguma dúvida sobre a paternidade ou a real ocupação da mãe do motorista buzinador, como qualquer um faria.
E aí vem a lembrança da conversa que tinha tido no trabalho com uma colega, a Mariana. A discussão surgiu quando falávamos sobre a existência ou não de um bom senso geral, absoluto. Acabamos entrando na ética e a conversa passou por Aristóteles, de quem ela trata alhures (ver link no fim da página), e... Kant!
Entre outros temas, o filósofo alemão tentou responder a pergunta de como se construir uma moral universal e independente. Para atender a estes dois requisitos - universalidade e independência - essa moral não poderia basear-se nem na ciência, nem na arte, nem na religião, nem no poder político e tampouco ser movida pelas paixões. A razão seria o motor da moral.
Como isso é possível? Bem, a solução kantiana começa com a distinção entre heteronomia e autonomia. Segundo o dicionário Houaiss, em Kant, a primeira significa a:
... sujeição da vontade humana a impulsos passionais, inclinações afetivas ou quaisquer outras determinações que não pertençam ao âmbito da legislação estabelecida pela consciência moral de maneira livre e autônoma.
Já a segunda é a:
...capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível.
Pelo texto das definições, pode observar-se que Kant punha grande ênfase não só na razão, como dito antes, mas também no indivíduo. Ele acreditava que uma pessoa seria capaz de elaborar qual era seu dever diante de uma situação ao usar a razão.
Então, a moral universal e independente a que o filósofo alemão chega, na verdade, é um princípio, o Imperativo Categórico, que estabelece que:
Age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal.
Mas por que um princípio e não uma lista de obrigações, como se vê em geral? Bom, primeiro, uma lista não obrigaria o sujeito a usar sua razão, condição necessária para Kant. Depois, por mais extensa que fosse, não daria conta de todas as situações presentes e muito menos serviria para guiar nossas ações ante um fato novo.
O Imperativo Categórico, por sua vez, é autônomo e pode ser empregado de antemão em qualquer situação. Com base nele uma pessoa pode orientar sua decisão de forma a escolher uma solução que nem sempre a beneficie diretamente, mas que sempre respeita o bem comum.
Por exemplo, você chega na fila do banco para pagar uma conta e encontra um conhecido. Um sujeito desavisado poderia aproveitar a situação para sair antes do banco.
Alguém se guiando pelo imperativo categórico poderia pensar assim: se pedir para meu amigo para furar a fila, pago e saio logo. Contudo, se isso valesse para todas as pessoas, não haveria fila, seria uma louca corrida para o guichê do caixa. Depois, mesmo que só valesse para alguns - para mim, por exemplo - de qualquer forma seria um desrespeito com quem chegou antes na fila e não tem esse direito, que poderia protestar contra esta regra. Se estivesse nessa posição, seria o que faria. Bom, sendo assim, o melhor é respeitar a ordem de chegada, porque a universalização desse princípio - o de furar a fila - não seria proveitosa para todos.
Desenvolvendo esse exemplo, digamos que você esteja com pressa por uma razão qualquer e verdadeira - posto que mentir, com base no exposto até aqui, está fora de discussão - e vê seu amigo na fila. O que fazer? Uma solução seria pedir ao amigo para pagar e ressarci-lo depois. A outra seria negociar uma exceção com o resto da fila e passar à frente.
Diante disso, alguém poderia dizer: mas uma exceção não é contra uma lei universal? Sim, se é uma exceção, não é universal. Contudo, o princípio aqui é negociar. Se houve acordo, a excepcionalidade da situação foi reconhecida pelas pessoas da fila que decidiram, de comum acordo, ceder ou não a vez.
Voltando ao início, da mesma forma que na situação inicial no banco, avançar, mesmo que o sinal esteja aberto, e fechar a rua para quem vem na transversal também seria uma norma que não valeria a pena ser generalizada. Transformaria as ruas em um engarrafamento permanente, provocaria acidentes, etc.
Sabendo disso, seguro minha raiva e espero o sinal abrir.
Leia também: Prudência, ação e virtude
Publicado em 17 de abril de 2007.
Publicado em 17 de abril de 2007
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